quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Luang Prabang



No dia onze apanhei uma minivan de volta a Vientiane. Tinha ficado mais tempo do que tinha planeado em Vang Vieng, e agora só ia dar para ir a Luang Prabang. Sentia já de antemao que ia ter de voltar brevemente, pois o Laos é um país muito especial, com muito para oferecer, e sinto risquei apenas um bocadinho da superfície.
               
Quando cheguei à capital liguei ao Noy, que me veio buscar às seis e tal. Disse-me para dizer o mesmo a um espanhol chamado Firmin que estaria à espera no mesmo sítio que eu. Nao foi difícil perceber quem era o Firmin. É um miudo de dezoito anos de Almeria, calmo, porreiro, estuda biologia. Ficámos um bocado à conversa até que apareceu o Noy.
               
Quando chegámos a casa sentámo-nos à mesa a comer. Um pote ligado à corrente eléctrica e mandar peixe, especiarias e vegetais lá pra dentro. Curto. Curto a maneira de comer no Laos. E a comida era sublime. O Firmin batalhava um bocado, tanto com os pauzinhos chineses como com as especiarias. Já eu, à conta destas voltei a estar com a Manuela. É uma cena um bocado embaraçosa, mas que se lixe. A Manuela é uma hemorróida que eu conheci uma vez, algures numa queima das fitas qualquer em que tive a audácia de p;or tanto piri-piro no arroz que ficou cor-de-laranja. Nunca mais a tinha visto, mas nestes dias apareceu para dizer “olá”. Mas está tudo sob controlo, à data em que escrevo já está quase de partida.
               
Depois do jantar sentámo-nos fora de sua casa juntamente com o irmão do Noy, dois amigos e a sua irmã,  e estivemos umas horas no convivio.

No dia seguinte, a custo, acordei cedo para ir buscar o meu passaporte. O Noy levou-me até ao consulado, mas tinha de pagar em dolares. Ou seja, deixou-me no centro, tive de trocar dinheiro, alugar uma bicicleta e voltar. Andar de bicicleta com a Manuela – muito giro. Tão giro que fui de bicicleta sentado para lá, mas andei a pedalar em pé o resto do dia.
               
Já com o passaporte com o meu vistinho autorizado fui até casa. Não me estava a sentir muito bem. Tinha sono, a Manuela queixava-se da bicicleta e além disso tinha, e tenho ainda, duas feridas nos nozes dos dedos grandes dos pés que me provocavam uma dor lancinante ao caminhar. Sò hoje é que comecei a ver algum progresso.
               
Dormi um bocado, vi umas cenas na internet e bazei. Entretanto já tinha comprado o meu bilhete para Luang Prabang, uma viagem de dez horas que me ficou por cerca de treze euros. O Noy queria pagar, mas desta vez não aceitei. Antes de apanhar o autocarro, às sete, andei a ver mais um bocado da agradável, mas longe de espantosa, cidade de Vientiane.
               
Apanhei o autocarro às sete, se não me engano. Correu tudo fixe, até que às quatro da manhã paramos.
               
-Sabes porque é que parámos? – perguntou-me uma rapariga.
- Não sei... talvez uma pausa para um cigarro... – tentei adivinhar. Voltei para o autocarro e dormi descansadinho até que acordei, lá prás nove, com alguém a dizer “se calhar o melhor é irmos agora, porque só vai começar a ficar mais e mais quente”. “Hã, que se passa?, pensei, e perguntei”. E não é que tinha havido uma derrocada e estávamos ali à espera há cinco horas? E o plano do pessoal era atravessar a pé e apanhar um autocarro do outro lado. “Perfeito, mais nota que vou ter de largar, depois de todo o guito que tenho gasto”, foi o que me passou pela cabeça. E o pior é que só tinha um dólar e mais o equivalente a um euro.
               
Fui ver se dava para passar pela estrada, normalmente. Imaginei que estivesse só parcialmente bloqueada ou algo assim. Muito me enganei. Estava um desastre. Nem dava para ver onde era suposto a estrada estar. Nunca tinha visto uma cena assim. E pelo menos duas casas, ou bungalows, foram-se. Do tipo que teria provocado algumas mortes, se alguém estivesse ali à hora errada.
               
Voltei para trás, e fui atrás da outra malta, que subia um monte para dar a volta. O dinheiro laociano que tinha e que era equivalente aí foi-se logo quando tive de o usar para poder usar um pequeno escadote logo no início do percurso. Eu sei que o pessoal é pobre e tem de fazer pela VIDA, mas este tipo de oportunismo provoca uma reacçao visceral em mim. Mais do que até é suposto, nao sei porquê.
               
A custo lá subi e desci aquilo, com muito cuidado para não escorregar, ao longo de prai meia hora. Do outro lado estava outro pessoal na mesma situação que nós, e diziam que ninguém os levava de graça. Ainda assim, decidi tentar a minha sorte. Caminhei um pedaço para baixo, comecei a acenar aos carros que passavam. Parou logo o segundo, uma pick-up que me levou sem ter de pagar nada. Andei com eles prai uma hora, até que me deixaram no meio de uma localidade prai de trinta pessoas. Estava um calor abrasador, e pus-me a caminho. Estava a quinze quilómetros, tinham-me dito. “Isso s;ao três horas a pé”, pensei. Mas n;ao foi preciso. Em meia hora apareceu um chavalo que me levou de scooter. Estava em Luang Prabang à uma da tarde.

Dei umas voltas à procura de um sítio barato, e depois de perguntar a uma russa com sotaque italiano, fui para onde ela me mandou. Decidi voltar ao modo super-poupança, por isso almoçei uma baguete e seria a única refeição “decente” que teria nesse dia. Cheguei a pensar que estava tramado, porque todos os hostels onde perguntavam levavam no mínimo oito euros. Foi por isso que fiquei contente quando descobri o sítio que a russa tinha indicado, e que levava quatro euros por um quarto individual com chuveiro. Tirando o hotel na Síria onde paguei quinze euros, acho que foi o melhor quarto onde estive em toda a viagem. E tirando o quarto de hotel do meu irmão em Phuket, claro.
               
Descansei um pedaço e fui ver a cidade. É super chill-out, como de resto todo o Laos me parece ser. Não tem prédios ou edifícios com mais de dois andares. Casinhas harmoniosamente distribuídas ao redor de dezenas de templos em plena actividade. É a localidade mais budista onde estive, porque havia templos em todo o lado, e estavam cheios de monges jovens. E passear por volta das seis da tarde a ouvi-los meditar é uma sensaçao única. Gostaria de voltar, e deixar-me ficar mais algum tempo. Poder jantar sem problemas à beira-rio, alugar uma scooter e ir às cascatas. Escrever.

Era para me encontrar com a Mellany nesse dia, mas acabou por não dar. Desencontramo-nos na internet. Mas foi bom, porque tirei o serão para pesquisar sobre os vistos russos e mongolianos. Deu-me um bocado a volta à cabeça, tudo aquilo, e já estava farto de ler cena e mais cenas sobre sítios onde se pode fazer isto, outros onde se pode fazer aquilo, excepç:oes e essas cenas. Conclusão: após pesquisar em vários sítios e obter informação de diferentes fontes, parece que posso tirar o visto da Mongólia no mesmo dia, em Erlian, cidade chinesa fronteiriça – isto faz com que não tenha de passar cinco ou mais dias em Pequim à espera do mesmo. Quanto ao visto russo, segundo o que aprendi, posso tirá-lo em Ulaanbator. Compro um bilhete de comboio por um preço inferior ao esperado (em Julho houve quem comprasse, na hora, um bilhete de Ulaanbator para Moscovo por duzentos e tal euros, e não trezentos e setenta como tinha visto(( e, parece, pago menos de um euro por uma declaração a dizer que vou sair do país dentro do previsto. Com estes documentos vou ao consulado ali ao lado e está feito. Só se as cenas mudaram é que não dá, porque eu li isto em mais que um sítio, e por pessoal que o fez.
               
No dia seguinte, acordei e fui comer uma baguete a um sítio no centro que tinha internet, algo que tinha deixado de funcionar no meu hostel. Enquanto me punha a par das notícias, combinei encontrar-me com a Mellany às duas no meu hostel. A Mellany era do couchsurfing, não me podia albergar, mas podia encontrar-se para irmos dar uma volta, conversar, e para me mostrar alguns sítios.
               
Quando paguei a baguete atravessei a rua para comprar um batido.
- És a Mellany? – perguntei a uma rapariga ao meu lado.
- Sou – respondeu.

Estava a almoçar também – um crepe. Perguntou-me onde queria ir, mas eu não tinha nenhum desejo em particular.
               
- Importas-te de caminhar duas ou três horas? – perguntou.
- Nada! – e lá fomos. A Mellany é uma miuda deveras interessante. Tal como a grande parte dos outros americanos que conheci, fala pelos cotovelos. Reparei que usa muito o “eu” e isto, para mim, costuma dar alerta vermelho, porque acho que é o pessoal que acha que o mundo roda muito à volta deles que costuma assim falar. No entanto, ela não é assim. A cena é que com os seus vinte e dois anos tem uma experiência do caraças, e isso faz com que, de certa forma, quase que tenha de usar a palavra “eu” para falar do que já viveu. Não sei se isto faz algum sentido...
               
A Mellany, americana de tão tenra idade, já viveu um ano na Costa Rica, um ano no Uganda, um ano na China, e estudou algum tempo, não sei quanto, em países como o Taiwan, o México, Índia e Turquia. Estudou, claro, Estudos Globais, e agora trabalha no Laos há dois meses e meio. Dois meses e meio e já fala Laociano. Fiquei muito impressionado. Veio fazer voluntariado mas agora ganha um guitito para se aguentar, tipo cem dolares por mês mais casa, qualquer coisa assim. Trabalha numa ONG responsável por, basicamente, meter a canalhada na escola. No Uganda esteve num projecto de investigação criado por si, que visava analisar a resolução de conflitos numa vila, como aquela onde viveu, que tem quatro religi:oes diferentes. Descobriu que a paz que reina entre a malta de lá prende-se com o facto da canalhada aprender na escola sobre todas as religi:oes. Caminhámos, caminhámos, e conversámos acerca da import;ancia do respeito das culturas locais, da import;ancia de nos oferecermos outras vi:oes que não aquelas de todos os dias.
               
Caminhámos até que abancámos à porta do meu hostel e ela esteve a contar-me acerca do que se passa na Tail;andia e da indústria sexual deste país – contou-me factos, sendo que esteve lá a estudar precisamente isso. É certo que não os verifiquei, mas confio nela. Como sabemos, a Tail;andia é um dos países com maior indústria sexual. É impossível caminhar mais que meia hora em qualquer rua concorrida sem ver uma prostituta, quando o sol começa a pensar em se por. Ora como princípio não tenho nada contra a prostituição, desde que seja por livre e espont;anea vontade da mulher, ou do homem. Isto é raro. Há sempre alguém por trás que se está a aproveitar. E claro que se alguém perguntar a uma prostituta, ela não vai dizer que preferia estar em casa a bordar. Mesmo que não seja raro, mesmo que até metade, digamos, das mulheres estiverem de livre e espont;anea vontade, é um número demasiado elevado para correr o risco de se enrolar com alguma e estar a contribuir para um esquema que promove o abuso e tráfico humano. As situaç:oes são de todos os tipos. Desde raparigas que s:o suportadas pela família e coagidas, por professores e outra figuras de autoridade, nas localidades mais rurais, a mudaram-se para Bangkok para fazerem dinheiro, e depois acabam algures na Birm;ania sem papéis, e daí entregando o seu destino às mãos gananciosas de uma rede que não destingue entre a justiça e o crime, entre a polícia e o v;andalo. Está tudo, de uma forma ou doutra, metido nisto, e se alguma rapariga se aventura a fugir e pedir auxílio à polícia, o mais provável é que este a devolva ao bordel de onde ela fugiu.
               
O mundo tem muito de negro se conseguirmos ver bem. Mas é complicada a escolha das lentes. Eu quero ter lentes que vejam muito, e geralmente curto porque vejo toda a beleza que há por aí, desde pessoa a ajudarem velhos a atravessar a passadeira a adolescentes a dar um primeiro beijo; mas isso implica ver também pessoas cujo único pecado foi nascer no sítio errado, putos às três da manhã a vender rosas. Outra rede. Nunca dou dinheiro a estes putos porque não quero contribuir para o abuso que adultos perpretam por detrás dos mesmos. Disse-me a Mellany que se eles não entregam a totalidade do dinheiro que fazem, não comem durante dias. E isso faz-nos querer dar-lhes dinheiro.
               
- Mas se tu não dás dinheiro, ou não compras, podes fazê-lo por bons motivos, mas há toda uma primeira geração que vai sofrer com isso... – dizia-me.
- Sim, é verdade... isto parece horrível de se dizer, mas se toda a gente deixasse de comprar rosas e essas merdas todas, essa primeira geração de crianças se calhar ia sofrer muito, mas quem sabe seria a última – se, se, se, se...
               
Só que geralmente preferimos lidar com algo na hora e fazê-lo desaparecer por uns momentos, e até ficarmos a sentir-nos bem, do que pensar mais à frente. Será assim tão mais confortável?

Nessa noite fomos jantar a casa de uns amigos da Mellany, todos americanos. Sushi, talvez a primeira refeição decente de sushi da minha VIDA. Curti, mas soube a pouco. O serão foi tranquilo, porreirinho.

Não dormi nessa noite. Tinha de acordar às cinco e muito porque vinham buscar-me para me levar à estação às seis da manhã. E eu não tinha telemóvel para me despertar – não queria correr o risco de perder aquele autocarro caríssimo de quarenta e três euros!

Então, dia seguinte - siga p’rá China.

18h32-4-17-8-11
Kunming, China




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