domingo, 7 de junho de 2015

Bons Dias

Que dias bons tenho tido. Dias em que sorrio, em que estou presente em mim, em que consigo viver apenas tudo o que me rodeia sem pensar no fim de nada. Dias em que sinto que estou vivo e sereno. Dias em que a serenidade tem tons de rebeldia e emoção, não se sabe como. Dias em que paro a Bicicleta, respiro fundo, fecho os olhos um bocadinho e penso “Estou aqui. Eu estou aqui. Agora mesmo”. Dias em que não me esqueço de viver, dias em que existo tanto, tanto, que me faz querer chorar.

Hoje.

Hoje cheguei a considerar ir até à Namíbia. Mas ia chegar tarde, e decidi ficar-me pelo velho costume de passar fronteiras longe das horas da escuridão. Segui então em direcção a Ondjiva, nas calmas. Ao almoço cometi o luxo de cortar umas cebolas e uns pimentos em vez de mandar só lata de sardinhas e polpa de tomate. Comi ali debaixo daquela árvore, sentado naquela tronco cortado, com o pessoal que não falava português a aparecer de vez em quando.

Depois, mais tarde, a estrada para Ondjiva não era a que ia para Santa Clara, a fronteira. Davam as duas, soube mais tarde, mas decidi prescindir da capital de província e vir pela que seria a fronteira na certa. A ideia era acampar numa povoação qualquer. Não tão certo de que haveria povoações andei uns quilómetros e olhei com novos olhos para aquelas espécies de aldeamentos que apareciam às vezes. A toda a volta troncos de árvore ao alto, lá dento cubatas com telhado de capim. Estava reticente. Talvez fosse malta tanto à margem da sociedade que me rejeitassem a estadia, não por mal mas por receio.

Meti a Bicicleta pelo areal, aproximei-me. Uma porta estreita mostrava um longo corredor de mais paus ao alto. Sem saber se deveria entrar ou não, esperei um minuto, e nas minhas costas apareceram o senhor de chapéu de couro e chiba longa, a senhora sem dentes da frente em cima, touca africana e sorriso onde cabiam marinheiros e a outra que se esquecia e falava comigo na língua local. Expliquei-me e perguntei se podia montar a tenda lá dentro, alegando que lá fora podia sempre aparecer um animal. Percebo agora que o que eu queria era conhecer este tipo de espaços, este tipo de gentes, os animais eram as menores das minhas preocupações. Com a pergunta veio a surpresa. Reparei que a senhora da touca africana era quem teria algo a dizer. Sem nunca deixar de sorrir deu-me a entender que não percebia muito bem porque é que eu haveria de lá querer ficar e no segundo seguinte disse “Claro que sim”.

Entrei, passei o corredor e ao fundo, um pouco à esquerda, dois pequenos jangos. À direita o canto onde pedi para meter a tenda. Eles disseram que sim mas queria alisar o terreno. “Não é preciso, obrigado”. Perguntei se havia água enquanto montava a tenda. Estava a acabar de montar o meu palácio quando o senhor de chapéu de couro me disse, quase pedindo desculpa: “Você quer água agora? É que nós estávamos ali a conviver”. “Não, não, é na boa, não se preocupe”, respondi, ficando-me no ouvido a bela palavra: Conviver.

Meti as coisas dentro da tenda e passou a senhora com uma grade de N'Gola, perguntou se queria uma. Aproximei-me e ela passou-me uma garrafa, dizendo que não estava tão fria, “ali” é que estava fria, apontando para lá do embondeiro, lá fora. “Eu vou já lá ter, obrigado”, respondi.

Passei o embondeiro e encontrei-os sentados em cadeiras de plástico ao lado do estabelecimento da senhora, uma divisão com chapa de zinco. Lá dentro um balcão, cervejas em baldes de água fria, vinho, salsichas, latas de atum e pastilhas elásticas. Comprei uma N'Gola e sentei-me com o pessoal. Lá atrás putos jogavam à bola. Olhava para eles e via as balizas de pau e ao fundo todo um cenário de árvores. Onde é que eu estava? Passei duas horas com os meus amigos. Depois de ter bebido um copo de vinho de palma, a senhora veio com uma garrafinha de vinho português (O Magnata) e quando perguntei quanto era disse que era oferta.

Só havia sorrisos ali. Apareceu o António, camionista, que amanhã ia buscar cebolas à fronteira para levar para Benguela, o filho da senhora, o filho da outra, os futebolistas cansados. E eu sentia-me bem. Encostava-me para trás e apreciava o facto de falarem entre si em português só para eu perceber, saboreava o vinho que deixava borra no fim e ia sentindo o ar arrefecer, o sol a desaparecer.

Quando voltei a senhora veio perguntar se eu queria água quente para tomar banho. Disse que não mas quando fui para o quarto-de-banho que me improvisou entre uma cubata e a parede com dois lençóis de cada lado percebi que me aqueceu a água de qualquer maneira. Tomei banho com uma linha cor-de-laranha e azul escura lá ao fundo dando lugar ao negro, e tudo estava bem, tudo estava calmo. A noite sentou-se à mesa e eu sentei-me no tijolo que me dera à frente da tenda para cozinhar. Nem tudo é perfeito e o meu fogão deixou funcionar. Jantei duas cebolas cruas, dois pimentos crus e seis ou sete salsichas. Mas tudo bem, pode ser que amanhã dê.

E agora estou na tenda, a curtir tanto esta simplicidade de VIDA. Sem qualquer tipo de condescendência aprecio a simplicidade desta gente, que dorme em casas de madeira e me pergunta se vou acordar às quatro da manhã quando digo que vou acordar cedo amanhã. Sinto que vivo plenamente as razões pelas quais viajo, pelas quais existo.

20h05, 4ª, 3 de Junho 2015
Lucando, Ondjiva, Angola




segunda-feira, 25 de maio de 2015

Sinto-me só.

Ouço as trágicas músicas do Moby nesta praia deserta e sinto-me só. Não sei bem que hei-de fazer comigo mesmo. À minha volta só escuridão e um mar que vai enchendo, que vai esvaziando, que me vai dando uma banda sonora ao menos apaziguadora. Nem a lua me faz companhia. Mandou tudo às favas e não se passeia por estes lados.

Irónico... esta é daquelas situações que eu idealizei... eu, sozinho na praia, a cozinhar, a olhar para o mar, algures numa costa africana, sentado depois a ouvir música, a escrever... Mas este dia em que a vivo sinto-me distintamente só. Não sei se por ter passado ontem e hoje na companhia de um grupo neste mesmo cenário, se por não falar com a Graciete há uns dias, ou se por mera casualidade. Pois este sozinho que hoje me deixa a sentir só já várias vezes me assaltou sem só me fazer sentir. Assim sou, assim somos, mais ou menos... uns mais constantes, previsíveis ou controlados, outros mais tempestuosos e relâmpago, mas assim somos, assim andamos, cada um à deriva tentando aprimorar o nunca perfeito leme.

Quando me sinto assim, só, assalta-me a mente as limitações da minha VIDA. Aquele desespero de saber que acabará um dia afunda-me o estômago um pouco e penso em coisas bonitas para não me deixar levar. Penso em tudo o que já aconteceu, em tudo o que acontecerá e procuro um significado qualquer que una isto tudo. Não o encontro mas espero que me vá distraindo na procura.

São sete da tarde e a noite é escura e estelar. Com esta música que não ajuda, assaltam-me desejos assim de querer chorar um bocadinho, e sinto uma falta enorme dela. Penso no que fará neste preciso momento, em que pensará, penso que podia estar aqui, que eu podia estar lá.

Acho isto tudo profundamente, tristemente bonito. Estes sentimentos que aparecem inesperados, que não são apreciados, estas ideias e pensamentos que são imprevisíveis como sempre, todos estes bailares que me deixam, por vezes, estafado.

Mas agora estou aqui. E é só isso. Agora podia estar em quase qualquer canto do mundo, mas estou aqui, a ouvir os caranguejos à cata de possíveis restos de comida, o Moby e o mar. Sinto-me só e não me queria sentir assim. Mas é aqui que eu estou, e é assim que me sinto.

19h10, d, 17 Maio 2015
Cabo Ledo, Angola


quinta-feira, 14 de maio de 2015

Amor

Como é que tu consegues?”, ouço tantas vezes. “Como é possível ir viajando e manter uma relação tanto tempo?”, o pessoal vai dizendo. Às vezes, em vez de perguntarem, exclamam qualquer coisa. Eu penso um bocado e analiso. Valerá a pena explicar ou dever-me-ei ficar pelo normal de “Ela é mesmo fixe”? Vou dentro e fora no pensamento e explico algo que sai na altura. O pessoal na maioria das vezes dizendo que sim com a cabeça, entendendo eu que não percebem realmente.

Como os posso julgar se eu próprio não o percebo assim tão bem?

Quis-me eu ser um rapaz lógico. Não pensando eu nisso, a lógica que me quis sempre me disse que haverá sempre um lugar melhor, um momento melhor... haverá sempre algo melhor para o lado de lá. E eu sempre fui andando, sempre à procura de algo melhor, algo mais bonito, algo mais fascinante. Nunca procurei uma namorada melhor, e ainda bem, pois tampouco a encontrei. Mas a lógica com a qual posso conversar diz-me que não tem grande sentido as milhares de raparigas que eu conheci não serem melhores do que aquela que encontrei num baile de finalistas do nono ano. Não, a lógica alia-se à lei da probabilidade, e depois àquela minha velha amiga que é a minha própria razão, o meu próprio sentido de ser que diz Tu não assentarás por comodidade.(Que alguém se livre de tal)

A minha razão. Aquela que me impele a ir, aquela que me impele a conhecer o mundo todo, aquela que me fode a cabeça de manhã à noite por não saber o que quer mas que o que quer estará naquela linha do tudo o que existe. Essa razão que eu tenho tem poucas certezas. Das poucas que tem, algumas são parvas, algumas meramente histórias. Outras tão fortes quanto o sentimento da beleza de ter um ser tão colado ao meu que me deixa perder os limites da minha própria pele.

Lógicas e leis matemáticas e razões perdem-se na inevitabilidade da realidade que vivo. Agora bêbedo, tantas vezes bêbedo, questiono os meus desígnios, a minha sorte. E depois tudo o que é real chove em mim e eu percebo que, não obstante tudo, o meu Amor não é o mesmo que naquela noite do nono ano. Que é algo que se vai alimentando de si mesmo, através de sorrisos, tropeções ou frases como “És um riquezo” que vão acontecendo e atropelando-me pelo caminho. Que a pessoa que me veio pedir para dançar nessa noite é a matéria prima da alma que a partir daí se formou. Que o que existe aqui existiria de qualquer maneira mas, quem sabe, e espero eu, sem a mesma graça.

E perguntam-me como é possível, podendo eu apenas questionar-me como seria possível desligar-me de alguém que me mantém vivo de tal forma. Como seria possível ter tudo na mão e decidir que preferia só um pouco de cada coisa?



Há noites em que adormeço e estou em casa. Outras em que adormeço tão longe. Neste tão longe de Luanda não há noite em que não ansiasse pelo conforto daquela perna de seda em cima da minha.

Villa Sul, Luanda, Angola
2h47, 4ª, 14-5-15


[Zé, desculpa a razia às Nocal's]

terça-feira, 12 de maio de 2015

Apreensão

Méne, méne, méne...

Estou em Matadi, na República Democrática do Congo. No Auberge Nationelle, o mais barato que encontrei, depois de uma noite naquela albergue de luxo onde se pagava um extra para dar um mergulho. Estes quinze dólares de hoje deram-me para uma cama bem larga, uma televisão que não funciona, duas cadeiras e um ar-condicionado que parece uma besta indomável. São oito e vinte e uma da noite e escrevia sobre a minha entrada neste país. Mas depois começou, aleatoriamente, a Creep, dos Radiohead, e os sentimentos afloraram. Decidi tentar por no “papel” a sinceridade de sentimentos que me têm visitado.

Não sei bem que se passa comigo, mas está a ser interessante a análise. Vejo estes sentimentos e ideias como se fosse um espectador e não tivesse nada a ver comigo. Sinto-os como se tivessem tudo a ver comigo, como têm, mas tento sair um bocado de mim para pensar neles.

Tenho-me sentido como se não tivesse viajado muito. Acho que a RDC é um cocktail de estórias contadas (nunca boas), misturado com a sua intensidade própria, as constantes tentativas de extorsão ao branco, a polícia corrupta e o o facto de eu ter estado quatro meses em Portugal. Caminho pelas ruas de manhã, à tarde, ou à noite, na boa, sem problema. Não me sinto ameaçado. Mas sinto-me atento e vigilante. As primeiras vezes que vi polícia na rua passei para o outro lado. Depois deixei de o fazer, mas esse comportamento primário diz algo. E amanhã vou para o tipo de aventura que, mesmo no melhor dos momentos desta viagem, sempre me geraram alguma apreensão – a passagem de fronteira. Acontece que vou passar a fronteira de dois países manifestamente corruptos. Ora eu até agora só paguei o suborno de entrada neste país, mais uma espécie de gratificação para a segunda entrada em Brazzaville. Mas sinto-me mais perto de quebrar amanhã se tal mo for exigido. Como se as pequenas frustrações ao longo dos tempos se tivessem juntado e me puxado para baixo um pouco... E o mais estúpido é que eu estou farto de saber que se nós temos determinada expectativa acerca do nosso próprio comportamento, é mais provável confirmá-la! Mas ainda assim, assim me sinto. Sinto-me com menos autoconfiança, porque sinto que tenho mais a perder. Estou entre a espada e a parede, na verdade, e isso não ajuda. Se me apertarem os calos e eu resistir e não me deixarem sair deste país, só tenho mais um dia no meu visto. O mesmo se não me deixarem entrar em Angola.

Depois paro de repente. “Foda-se”, penso, “Será que não estou a fazer grande filme?”. E fico sem saber. Penso em relatos que li e não fico muito agradado com as estórias de pedidos de suborno. Anima-me um bocado ler como as pessoas se safaram sem pagar, mas depois penso que talvez quem não se tenha safado não se tenha dado ao luxo de partilhar a estória.

Sei isto... sei que, sinta o que sentir, o que importo é o que faço. E o que vou fazer é estudar a situação e tentar passar para o lado de lá sem dar um chavo. Estou consciente de que as minhas estranhas e talvez raras circunstâncias sentimentais talvez me atrasem um pouco, mas tentarei manter-me à tona apesar dos seus pesos.

É isto a viagem, méne... carrossel do sentimento, foda-se!

Que venham.

20h33, 3ª, 5 de Maio 2015
Matadi, RDC

terça-feira, 21 de abril de 2015

Os Primeiros Dias no Togo

Cheguei a Lomé às cinco da manhã de Sexta para Sábado, depois de ter esperado umas horas em Casablanca. Conheci um Francês no autocarro que vai da gare para o avião que disse que talvez pudesse ir no táxi dele. Não iria. Provavelmente ele já tinha visto por isso não teve de esperar, como eu. Depois, quando pedi o visto, e enquanto aguardava, conheci um Português que trabalhava com o Ventura, que já tinha conhecido por estas terras. Um homem de aspecto vivido, bigode farto, tatuagens cansadas e rugas fortes na cara. Quando passei para o lado de lá e tentava negociar os sete mil francos que me pediam vi-o e perguntei se não se importava que eu fosse no táxi que a empresa dele tinha mandado, caso ele passasse pela minha zona. Ele disse que sim, mas não devia estar com grande vontade pois quando perguntei ao taxista se passava em Avenou o tuga disse um “Não”, tipo “Não, pois não?”, apesar de me ter dito anteriormente que não sabia onde era. Estava com sono, certamente, mas vá, podia ser mesmo a caminho.

O Remy veio para o Togo, tal como outros franceses para outros países, numa espécie de voluntariado pago, ensinando a juventude local a trabalhar com computadores e a programar. Devia ter bazado já há um ou dois meses mas este rapaz queria deixar um legado, pelo que vai ficar até Julho. Através de entrevistas aos seus estudantes seleccionou cinco ou seis e dá-lhes aulas todos os dias da semana, aos Sábados e alguns Domingos, sem já ganhar nada. Quando lhe sugeri regressar a França sem voar quando isto acabasse e me disse que não ia ter dinheiro, e lhe perguntei se não podia usar o dinheiro que tinha ganho aqui, disse que não ia ter muito porque ia comprar-lhes computadores e cenas. Para que esse seu legado seja uma empresa registada em actividade que os seus estudantes possam levar em bom rumo.

- Ela diz que eu não devia fazer isso, que é muito complicado – dizia-me, há meses, falando de uma francesa que andava por África a inspeccionar o trabalho dos voluntários – e que não vai resultar. É aquela mentalidade... tipo vem-se para aqui, ajuda-se um bocadito para se sentir melhor, mas mais não, mais eles não conseguem...

Passei o meu primeiro Sábado em casa de volta dumas cenitas enquanto o Remy estava com os seus alunos e depois fomos córtiré. Partiu tudo. Não sei muito bem como deu a volta que deu, mas o que é certo é que, num momento estava num bar a beber cerveja e a ver um rapaz sem perna a dançar espetacularmente num palco com uma música que quase impossibilitava o discurso e no outro estava dentro uma loja de madeira com telhado de zinco com o Remy e mais seis ou sete togoleses a cantar, um méne a fazer de um bidão amarelo ao contrário um djambé, outro com uma faca e uma garrafa vazia a marcar ritmo.

No Winners Bar, esse primeiro do rapaz sem perna, não estava a curtir tanto. Estava com o Remy sentado numa mesa de plástico, íamos vendo o pessoal a dançar no palco, ouvindo música, mas não dava para conversar muito. Entretanto apareceu o Achille e o Coco, amigos do Remy que já conhecia. Bebemos mais umas e quando aquilo começou a dar ares de fechar mudámos de sítio. Daí fomos a pé para um bar onde, não sei bem porquê, nos meteram uma mesa nas traseiras. Ficámos lá umas horas a beber rodeados de vasilhame. Quando bazámos foi quando apareceu a música. Eu já estava bem lançado, e às vezes quando estou assim começo a cantar. Se alguém se junta é o diabo daltónico. Já não sei bem como foi, mas primeiro juntou-se um, depois outro, depois outro, e depois estávamos naquela lojita a dar show. Agora que penso nisso acho que foi um bocado má onda para a senhora que lá estava a dormir, mas paciência, foi o que foi. Daí enfiamo-nos por umas ruas de terra, sempre de terra, como qualquer rua que não seja principal em Lomé, e fomos ver uma malta que estava a acordar para a VIDA. Serviram-nos fufu e shots de uma cena qualquer com gengibre. Eu bebi meio e deixei ficar. Já tinha mandado o greg, discretamente no bar das traseiras, não queria fazê-lo outra vez. O Achille e o Coco, por outro lado, por eles ainda lá estava a mandar shots daquela cena. Já o sol raiava quando bazámos. O Remy mandou também o seu greguezito e apanhámos uma mota. Só tínhamos trezentos francos para os dois mas o senhor foi porreiro e levou-nos.

Na Segunda-Feira fui prolongar o meu visto. Tinha pago dez mil francos pelo visto de uma semana no aeroporto e podia prolongá-lo para um mês gratuitamente. Habituado a surpresas nem sempre agradáveis, decidi jogar pelo seguro e fui fazê-lo. Fui buscá-lo na Terça e na Quarta fui fazer o visto do Benim. Ou ia, sendo que, como é costume, as regras estão sempre a mudar. Quando cheguei lá a secretária perguntou-me se eu tinha carta de convite. Surpreso, disse que não, e ela mandou-me falar com a cônsul. Esta cônsul, tal como muito pessoal das embaixadas, era a simpatia em pessoa. A mesma pessoa que me tinha dito, anteriormente, com cara de quem lhe tinha cuspido, que eu devia ter escrito “Portugaise” em vez de “Portugais” para a minha nacionalidade, mal olhava para mim ao falar comigo, preferindo olhar para o ecrã do computador, falava de uma forma que me fazia querer dar-lhe um microfone e colunas pelo Natal... e dizia-me que agora precisava de uma carta de convite autenticada pelo notário ou de uma reserva de hotel com o carimbo do mesmo. Saí de lá meio agastado. África a dar-me na cabeça outra vez. E decidi aí que desta vez vai ser mesmo. Se eu não conseguir ir a pedalar sempre até à África do Sul, não pedalo, paciência. Se tiver de apanhar alguns autocarros, apanho. E estou em paz com isso. Porque quero, quero mesmo, estar na Cidade do Cabo dia 7 de Agosto. Não é daquelas cenas que se pode adiar. No dia sete ou oito quero apanhar um avião para o Camboja para encontrar o meu Kidus. Não vou pedalar até à Namíbia, voar para o Camboja e depois voltar outra vez para a Namíbia para acabar. Vai ser assim.
Não queria pedir ao Arthur que perdesse horas de trabalho para ir ao notário por isso tinha de fazer uma reserva de hotel. A minha ideia era partir Sexta, quando eles entregavam os vistos, mas se fizesse a reserva para Sexta e eles não enviassem o carimbo, impossibilitando assim a obtenção do visto, já não dava para cancelar. Assim, jogando pelo seguro, reservei para Domingo. Fiz a reserva e vim para casa, preocupado com o facto de um hotel tão barato provavelmente não ter carimbos e essas cenas. O Remy e a Maryse aconselharam-me a fazer reserva num hotel melhor, ter o carimbo e depois cancelar, mas não me apetecia. Uma coisa era fazer a reserva e cancelar, como fiz para o visto do Gabão, outra coisa era pedir a alguém que se desse ao trabalho de carimbar, digitalizar e enviar e depois cancelar. Não me sentia bem com a cena. Na Quinta fui à net e tinha um e-mail deles a confirmar a reserva. Mas era só um e-mail, sem carimbo nem assinatura como lhes tinha pedido. Ia ter de dar. Fui pedir o visto e deu mesmo! Tinha entrada no Benim para esse Domingo. Não sabia era o que aconteceria aqui com os meus interiores.

Sexta-Feira fui jantar com o Remy ali um tascozito de beira de estrada. Salada com massa, maionese, tudo altamente. Até trouxe um extra para comer em casa. Quando acordei no Sábado um pouquito abananado. O Remy queria ir ver uma palestra sobre o sistema educativo no Togo, mas comemos uma sanduíche, vimos um episódio de Spartacus, depois outro, e depois já era tarde. Ainda assim fomos mais tarde, ia haver rap. Sentia-me estranho. Chegámos, pedimos duas cervejas e sentámo-nos a ver o pessoal com músicas de crítica ao governos e cenas do género. Convenci-me que estava tudo bem e pedi outra cerveja. Sentia-me ourado, ou como se tivesse acabado de acordar depois de quatro horas de sono quando precisava de doze. Estávamos prontos para bazar quando alguém meteu conversa connosco. Durante aqueles dez minutos só me apetecia gritar “Por favor, caralho, vamos embora!!!”, mas a maneira como nos sentimos, seja emocionalmente ou fisicamente, nunca pode ser desculpa para sermos uns trouxas. Mas foi difícil para caramba. Queria bazar. Havia uma portuguesa que tinha contactado o Remy e a ideia era irmos beber um copo com ela. Eu curtia mas começava a perceber que talvez não desse. Quando bazámos e fomos jantar e eu só conseguir menos de metade do meu prato de massa percebi que, definitivamente, algo não ia bem.

Estávamos também com uma amiga do Remy que tinha de ir a casa dele deixar a mala. Fomos na mesma mota e mal entrei, por volta das dez, fui directo à cama. Acordei três ou quatro vezes em duas horas para mandar esguicho pelo rabo e quando cheguei à cama depois da última e comecei a sentir tudo quente percebi que ia acontecer, pela primeira vez, algo que eu pensava que já teria acontecido várias depois de tanto tempo em África. Nunca tinha vomitado! Certo, tinha vomitado no Sábado anterior, mas isso foi por ter bebido um pouco demais. Mesmo assim tinha sido a primeira vez. Esta seria a primeira vez que vomitaria por ter comido algo que me fizeram mal. Provavelmente por ter passado três meses e ter ido logo directo para o Togo, em vez daquela suave transição que tinha feito anteriormente.

Custou como se me pegassem no esófago e o enrolassem à volta da traqueia, mas lá vi a salada do dia anterior a sair. “'Tou fodido”, pensei. “Era por isto que me sentia inchado”. Essa noite foi uma sucessão de viagens ao quarto-de-banho. Talvez vinte vezes. Acordei Domingo e sabia que não ia dar para chegar a Cotonou no mesmo dia. Eram só quatro ou cinco horas, é certo.

Em 2009 fui à Índia duas semanas. A viagem que mudou a minha VIDA. Numa das minhas últimas noites estava em Hampi, na boa, a curtir com os meus recém amigos. Comi dois pratos de carbonara e uma panqueca no fim. Ovos, leite, natas. Acordei a meio da noite a pensar que ia morrer. A minha cabeça pesava vinte quilos e durante essa mesma noite devo ter cagado umas vinte vezes e vomitado umas dez. Não seria tão mau senão tivesse uma viagem de catorze horas num autocarro indiano em estradas indianas. E tinha mesmo de ir. Como tudo o que entrava saía, estive umas 36 horas sem comer e umas 24 sem beber. O autocarro tinha daqueles bancos que vão para trás completamente até ficarem horizontais. Deitei-me e tentava permanecer hirto, como se tivesse em penitência. Se mexia uma perna um bocadito vinha uma cólica que só meu deixava a ver-me a cagar-me no autocarro. Tinha de aguentar. O autocarro sempre aos saltos. Suava da testa, respirava fundo, contraía o esfíncter, não podia cagar-me no autocarro! A meio parámos para o pessoal ir ao quarto-de-banho. Eu estava tão mal que, após ter esperado que as sete pessoas à minha frente se aliviassem e chegasse a minha vez, caguei a um metro da sanita. Não aguentei até à sanita! Verti água para limpar, limpei-me, sequei-me com os boxers e deixei-os lá. De volta ao autocarro, mais sete horas de tormento. Até que cheguei a Panjim! Tinha conseguido! Achava eu.

Entrei numa riquexó, pedi para me levarem a um hotel barato qualquer. Quando chegámos o méne veio comigo ao balcão. A cena da minha estupidez é que em viagem sou tão baixo-orçamento às vezes que até o sou quando estou prestes a cagar-me! Não aceitei o preço que me fizeram e caminhei estrada fora, devagarinho, com as pernas esticadas. “Pode voltar, eu convenci-os a fazerem-lhe um preço melhor!”, dizia o condutor da riquexó, confuso por ver-me parado no meio da estrada com cara de galinha com ovos de avestruz. “Não, vá-se embora, por favor”, supliquei. Não sei se ele chegou a ver, mas o que é certo é que me caguei em pé, no meio da estrada. Uma triste conclusão para todo aquele heroísmo de me ter aguentado no autocarro. Ninguém se caga em pé a menos que não tenha chance, mas talvez eu me tenha aguentado mais no autocarro em respeito aos meus colegas viajantes.

Até ter sido preso no Laos, essa tinha sido a pior experiência da minha VIDA.

O que legitimava a minha renitência em não me querer enfiar num táxi de quatro ou cinco horas até Cotonou estando assim. Passei então Domingo entre viagens ao quarto-de-banho, séries, água, bananas, e um bocado de arroz ao fim do dia. Falei com a Graciete e quando lhe disse que tinha febre desaconselhou-me a tomar imodium o mesmo medicamento que tomei nessa aventura na Índia e que me tapou durante três dias. Porque se tenho febre é porque há uma bactéria, e não se deve interromper a tempestade, parece...


A minha ideia era ir hoje, Segunda. Estou melhor, é verdade, mas ainda não consigo estar três horas sem ir ao quarto-de-banho. E se amanhã for cedíssimo pode ser que ainda consiga chegar a tempo de fazer o visto da RDC, não perdendo assim nenhum dia...

domingo, 12 de abril de 2015

Um Novo Começo

De volta a África. Lomé, o mesmo sítio onde, há pouco mais de sete meses, escrevia sobre estar há meio ano na estrada. Depois disso ainda voltaria uma segunda vez, contrariamente ao que esperava. Saindo dessa segunda vez pensava ainda menos que algures em Abril de 2015 aqui estaria. Mas aqui estou, de volta. De volta.

De volta ao bafo que deixa a pele a reluzir de transpirada, de volta aos saquinhos de água para beber, a comer com as mãos, a tomar banho com um baldezinho, de volta a ter de ir a sítios para ter internet, a deslocar-me com moto-táxis, de volta a dormir com o zunido de uma ventoinha quando tenho sorte ou o corpo húmido quando não tenho.

Onde estive estes últimos três meses?

Num mundo diferente. No meu mundo onde passeei cem dias a fio, entre reencontros, festas, carícias, viagens, alegrias e frustrações. Apreciei a estadia, mas era como se nunca fosse eu a cem por cento. Sim, eu estava ali, e talvez dissesse o que diria de qualquer maneira ou agisse como fosse agir. Mas sentia-me incompleto. Sentia-me a meio. Vivi tanto desta viagem que ela entrou directamente em mim, misturando-se comigo. Como assim foi, deixá-la a meio como deixei durante três meses fez-me sentir, a mim próprio, a meio.

Quando lá estava parecia que África tinha sido um agradável sonho vívido que tinha tido, hoje sinto o mesmo acerca desses três meses. Agora aqui apercebo-me de como falava de África, contando estórias como se fossem episódios, deixando tanto daquilo que é preciso ver para se sentir de fora. Agora aqui, de novo, reparo como falei muito mais da experiência surreal do Gabão, ou de ter sido detido na Serra Leoa, do que a minha travessia da Guiné-Conacri, dos meus dias aparentemente banais em Bissau, da praia de Bureh na Serra Leoa, daqueles dias a chover na Libéria, da Costa do Marfim, do primeiro hotel a três euros no Gana, sei lá... todas essas vivências parece que assumiram um segundo plano perante as mais evidentes. É normal, eu sei, é normal... um gajo acaba por contar as experiências mais marcantes, as pessoas assim o perguntam. O que não sei se é normal é o facto de agora que estou aqui olhar para um mapa ali na sala, ver os países, e ter todas essas memórias muito mais presentes em mim, como se me definissem num novo nível, do que quando estava em Portugal.

Seria demasiado frustrante estar sempre a recordar-me destes pequenos prazeres estando num país que deles me afastava? Não sei.

Mas não quero que isto me aconteça nunca mais. Não quero nunca ter sentimentos ou memórias dormentes. Gosto tanto de viver que me atormenta o facto de me esquecer do que senti. Que digo? Falo como se isso também não me fascinasse.

Quando conheço um novo amigo e passámos dias em harmonia, sinto que seremos grandes amigos para sempre. Contudo, ao despedir-me, apesar de esperar reencontrá-lo um dia, sei que há uma probabilidade de tal não acontecer. Acho isso bonito. Acho bonito tanto a partilha fugaz que acaba em nunca mais como um reencontro passados trinta e seis anos, como um reencontro passado nove semanas. Acho tudo bonito, só é necessário encontrar a janela que me permitirá vê-lo. Assim vejo as experiências. Quando as vivo sinto que me vou lembrar delas para sempre, mas quando parto sei que há uma probabilidade de as perder algures no meu avanço. Se as retiver comigo elas fundem-se comigo. Se só me lembrar que existiram sem ter a precisão de detalhes ou sentimentos, como quem só se lembra do nome de um amigo, guardo isso, sabendo só algures em mim que foi bom.
Sinto, e espero que, acabando esta viagem, uma memória geral de grandes dias vividos se instale em mim. Mas que sei eu, que estou sempre a ser surpreendido por estas terras vermelhas?

16.00, s, 11-4-15

Lomé, Togo