segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A Bondade Das Pessoas


Ouço a música que me fez chorar em Mangata. Mas hoje não vou chorar. Não sei que me fez chorar. Foi bom, mas não é o que vai por aqui hoje. Não que na altura sentisse o contrário, mas hoje, neste momento, sinto-me tão calmo, tão sereno, tão cheio da bondade que me ofereceram. Ah, que digo?, sim, às tantas vou chorar um bocadito...

Estou em Hordro Farm, na Libéria, e cheguei aqui há duas horas, mas sinto como se tivesse sido há muito mais. Chovia e eu sentia os 125 quilómetros nas pernas, queria parar. Perguntei lá ao fundo se tinham um sítio abrigado para a minha tenda, e o rapaz disse que o melhor era eu vir aqui perguntar. Cheguei, perguntei pelo chefe da aldeia. Um puto encaminhou-me para dois homens a namorar os quarenta anos que jogavam um jogo de tabuleiro sentados no alpendre de uma casa.

- Será que é possível arranjarem-me um espaço abrigado onde possa meter a minha tenda? – pergunte, depois de os cumprimentar e me apresentar.
- Queres passar aqui a noite?
- Sim.
- És bem-vindo! – respondeu o senhor de bigode, que parecia ser mais velho. Sentei-me, e ele disse-me que eu podia ficar num quarto, que a pessoa desse quarto dormia noutro sítio. Agradeci. O outro, O Ben, perguntou se queria água para tomar banho. Agradeci. Desapareceu, reapareceu com um par de chinelos. Voltou a ir, e vi-o às voltas e percebi que procurava água quente.
- Não é preciso água quente. Não quero incomodar, a sério, qualquer coisa dá.
- Não incomodas nada – respondeu o mais velho. – O prazer é nosso.
                
Quando saí do banho o mais novo lavava as minhas meias. Os putos iam aparecendo e especavam-se a olhar para mim. Íamos conversando um bocadinho e o Ben ia entrando e saindo da casa onde ficaria. Metemos a Bicicleta cá dentro, voltámos ao alpendre onde estavam, contei, quase trinta pessoas, entre elas muita canalha, e passado uns minutos apareceu um grande prato de arroz com duas sardinhas no topo. O Ben continuava a entrar e sair da casa e, sei agora, estava a arranjar-me as coisas. A fazer-me a cama de lavado. Quando me veio mostrar o quarto, uma divisão vazia só com o colchão, tive de lhe dar um abraço. “Muito obrigado, a sério, obrigado”.
                
Já muitos foram muito bons comigo nesta viagem. Mas hoje senti-o mais plenamente, não sei ao certo porquê. Os chinelos, a água quente, o quarto, lavar-me as meias, a comida. E o sentimento. Aquela boa onda calmamente se deixa surfar por todos.
                
Deitei-me nesta cama e sentia-me, e sinto-me, plenamente humano. Sinto-me grato, sinto-me bom. Sinto-me como se estas pessoas, acima de tudo, me tivessem também oferecido bondade com o seu exemplo. “Está aqui, agora faz o que quiseres”. Eu quero ser assim. Eu quero ser como eles. Quero ser humano, quero ser bom como eles. Estes exemplos ficam em mim, pá. E acho que é assim que deve ser. Usarmos os maus exemplos para nos apercebermos de como é mau ser tratado de certa forma e escolher nunca o fazer, usar os bons para nos deixarmos levar por esta onda de bem-estar e querermos ser nós os bons, para a próxima, quando de nós precisarem. Ah, pá, estou tão feliz! Não estou feliz de dar saltos, esta felicidade é diferente. Sinto-a como menos passageira do que aqueles sentimentos de pico espetaculares que às vezes temos, mais como um Verão de São Martinho do um escaldante Agosto.
                
Penso no que nos impede de sermos bons uns para os outros, e tenho pena de não encontrar nenhuma razão válida. Uma das razões, em casos de albergarmos estranhos, darmos boleias, ou outras coisas do género, é o medo de que nos roubem alguma coisa. E vejo isto como profundamente triste. Porque as nossas coisas impedem-nos de ajudar as outras pessoas. Tendemos a ser egoístas, muitas vezes. Metemo-nos à frente de tudo e de todos, e deixamos que as pequenas, ínfimas probabilidades de sairmos lesados de alguma situação façam com que sejamos menos pessoas.
                
Eu não quero ser assim. Não me importa que achem que quero ser perfeito. O meu irmão diz isso, às vezes. Não quero ser perfeito, só quero ser melhor, só quero melhorar. Eu não quero ser assim. Eu quero ser alguém que é. Que é humano de dentro para fora, que faz por sentir o que os outros sentem, que avalia a probabilidade de um mau resultado, e que, sentindo a probabilidade mais alta do que é confortável, não fecha a porta, literal ou metafórica, mas que encontra uma solução diferente.
                
Eu quero ser.

Hordro Farm, Libéria

21h11, 6ª, 13-6-14