domingo, 7 de junho de 2015

Bons Dias

Que dias bons tenho tido. Dias em que sorrio, em que estou presente em mim, em que consigo viver apenas tudo o que me rodeia sem pensar no fim de nada. Dias em que sinto que estou vivo e sereno. Dias em que a serenidade tem tons de rebeldia e emoção, não se sabe como. Dias em que paro a Bicicleta, respiro fundo, fecho os olhos um bocadinho e penso “Estou aqui. Eu estou aqui. Agora mesmo”. Dias em que não me esqueço de viver, dias em que existo tanto, tanto, que me faz querer chorar.

Hoje.

Hoje cheguei a considerar ir até à Namíbia. Mas ia chegar tarde, e decidi ficar-me pelo velho costume de passar fronteiras longe das horas da escuridão. Segui então em direcção a Ondjiva, nas calmas. Ao almoço cometi o luxo de cortar umas cebolas e uns pimentos em vez de mandar só lata de sardinhas e polpa de tomate. Comi ali debaixo daquela árvore, sentado naquela tronco cortado, com o pessoal que não falava português a aparecer de vez em quando.

Depois, mais tarde, a estrada para Ondjiva não era a que ia para Santa Clara, a fronteira. Davam as duas, soube mais tarde, mas decidi prescindir da capital de província e vir pela que seria a fronteira na certa. A ideia era acampar numa povoação qualquer. Não tão certo de que haveria povoações andei uns quilómetros e olhei com novos olhos para aquelas espécies de aldeamentos que apareciam às vezes. A toda a volta troncos de árvore ao alto, lá dento cubatas com telhado de capim. Estava reticente. Talvez fosse malta tanto à margem da sociedade que me rejeitassem a estadia, não por mal mas por receio.

Meti a Bicicleta pelo areal, aproximei-me. Uma porta estreita mostrava um longo corredor de mais paus ao alto. Sem saber se deveria entrar ou não, esperei um minuto, e nas minhas costas apareceram o senhor de chapéu de couro e chiba longa, a senhora sem dentes da frente em cima, touca africana e sorriso onde cabiam marinheiros e a outra que se esquecia e falava comigo na língua local. Expliquei-me e perguntei se podia montar a tenda lá dentro, alegando que lá fora podia sempre aparecer um animal. Percebo agora que o que eu queria era conhecer este tipo de espaços, este tipo de gentes, os animais eram as menores das minhas preocupações. Com a pergunta veio a surpresa. Reparei que a senhora da touca africana era quem teria algo a dizer. Sem nunca deixar de sorrir deu-me a entender que não percebia muito bem porque é que eu haveria de lá querer ficar e no segundo seguinte disse “Claro que sim”.

Entrei, passei o corredor e ao fundo, um pouco à esquerda, dois pequenos jangos. À direita o canto onde pedi para meter a tenda. Eles disseram que sim mas queria alisar o terreno. “Não é preciso, obrigado”. Perguntei se havia água enquanto montava a tenda. Estava a acabar de montar o meu palácio quando o senhor de chapéu de couro me disse, quase pedindo desculpa: “Você quer água agora? É que nós estávamos ali a conviver”. “Não, não, é na boa, não se preocupe”, respondi, ficando-me no ouvido a bela palavra: Conviver.

Meti as coisas dentro da tenda e passou a senhora com uma grade de N'Gola, perguntou se queria uma. Aproximei-me e ela passou-me uma garrafa, dizendo que não estava tão fria, “ali” é que estava fria, apontando para lá do embondeiro, lá fora. “Eu vou já lá ter, obrigado”, respondi.

Passei o embondeiro e encontrei-os sentados em cadeiras de plástico ao lado do estabelecimento da senhora, uma divisão com chapa de zinco. Lá dentro um balcão, cervejas em baldes de água fria, vinho, salsichas, latas de atum e pastilhas elásticas. Comprei uma N'Gola e sentei-me com o pessoal. Lá atrás putos jogavam à bola. Olhava para eles e via as balizas de pau e ao fundo todo um cenário de árvores. Onde é que eu estava? Passei duas horas com os meus amigos. Depois de ter bebido um copo de vinho de palma, a senhora veio com uma garrafinha de vinho português (O Magnata) e quando perguntei quanto era disse que era oferta.

Só havia sorrisos ali. Apareceu o António, camionista, que amanhã ia buscar cebolas à fronteira para levar para Benguela, o filho da senhora, o filho da outra, os futebolistas cansados. E eu sentia-me bem. Encostava-me para trás e apreciava o facto de falarem entre si em português só para eu perceber, saboreava o vinho que deixava borra no fim e ia sentindo o ar arrefecer, o sol a desaparecer.

Quando voltei a senhora veio perguntar se eu queria água quente para tomar banho. Disse que não mas quando fui para o quarto-de-banho que me improvisou entre uma cubata e a parede com dois lençóis de cada lado percebi que me aqueceu a água de qualquer maneira. Tomei banho com uma linha cor-de-laranha e azul escura lá ao fundo dando lugar ao negro, e tudo estava bem, tudo estava calmo. A noite sentou-se à mesa e eu sentei-me no tijolo que me dera à frente da tenda para cozinhar. Nem tudo é perfeito e o meu fogão deixou funcionar. Jantei duas cebolas cruas, dois pimentos crus e seis ou sete salsichas. Mas tudo bem, pode ser que amanhã dê.

E agora estou na tenda, a curtir tanto esta simplicidade de VIDA. Sem qualquer tipo de condescendência aprecio a simplicidade desta gente, que dorme em casas de madeira e me pergunta se vou acordar às quatro da manhã quando digo que vou acordar cedo amanhã. Sinto que vivo plenamente as razões pelas quais viajo, pelas quais existo.

20h05, 4ª, 3 de Junho 2015
Lucando, Ondjiva, Angola