domingo, 20 de abril de 2014

Guelmim

Hoje foi um dia intenso, daqueles que se sente cá dentro. Visto de fora, como se um filme fosse, não parecia haver nada de especial. Mas é por detrás dos olhos que tudo se passa.

Quando acordei tinha uma mensagem de um rapaz no couchsurfing a dizer que me podia albergar em Tighmert, um oásis a quinze quilómetros de Guelmim. Isso implicaria um desvio de trinta ou quarenta quilómetros, mas até estava a fim. Troquei algumas mensagens com ele e, a dada altura, fiquei meio confuso, porque ele dizia para telefonar ao amigo dele porque era ele que me podia albergar. Apontei o número dos dois e, depois de arranjar as malas, lavar a louça e me despedir do Hassan e do Ibrahim, pus-me a caminho.
               
A viagem começou tranquilamente, e parei logo ao quilómetro vinte cerca de uma hora, para ir ver a praia de Legzaira, com as suas interessantes formações rochosas. Daí passei por Sidi Ifni e foi ao sair desta cidade que começou o penar. A estrada levou-me para cima, fez-me atravessar alguns montes e presenteou-me com belas vistas. Mas dava por mim em subidas de quase uma hora para fazer seis ou sete quilómetros, depois descia a sessenta ou setenta à hora um chisco, andava uns metros em plano, e lá voltava a subir. Ao início ia-se fazendo mais ou menos bem. Mas começava a ficar cansado. Acho que, sem querer, estabeleci a regra de não fazer menos de oitenta quilómetros a menos que o destino seja mais perto do que isso. Passava o quilómetro sessenta. A vinte dos oitenta mas a trinta e cinco de Guelmim. Tinha planeado mal as coisas... perdão... como não tinha planeado as coisas, não tinha comida, por isso ia ter mesmo de ir até Guelmim. E quanto ao oásis em Tirghmet, zero.
               
Ainda não estava no quilómetro setenta quando comecei, mais uma vez, a questionar a minha capacidade. Tenho de me transportar para aquele momento, pois agora, aqui na cama, tudo parece muito mais fácil. Mas, a verdade é que naqueles momentos em que tenho mesmo que dar o melhor de mim, é quando não sei se tenho estofo para isto. Sempre me considerei um gajo muito forte mentalmente. Acho que tenho um bom controlo da minha mente e das minhas capacidades, e tanto uma quanto as outras já foram postas à prova algumas vezes e tudo correu bem. Mas a verdade é que não sei se consigo ir até lá abaixo sempre de bicicleta. Foda-se, que cena estranha! Bem, se por um lado digo que tenho controlo da mente, por outro tenho de dizer que ela anda um pouco por todo o lado ao desgoverno. É que, ao escrever a frase anterior tentava transportar-me para aqueles momentos em que realmente sentia a dor e o sofrimento e questionava o meu sucesso. Mas dei por mim agora a não acreditar no que eu próprio escrevia. Porque agora, neste preciso momento, acho que sim, que sou capaz! Que, se depender de mim, consigo! Pouco a pouco, consigo. Ah, não me entendo...
               
Quando andei pela Ásia, lembro-me de comparar a boleia a ir correr. A ideia disso custa um bocado, o durante também custa, seja nas pernas ou nas horas de seca, mas o depois, quando tudo correu bem, é altamente! Ou tomamos um bom duche e depois temos aquele cansaço fixe, ou então chegamos ao nosso destino sem gastar um cêntimo e achamo-nos os maiores! Parece que viajar de bicicleta é um bocado isso... Nem sempre a ideia disso custa, pois há dias fixes em que só nos apetece pedalar, e nem sempre o durante custa. Atravessar montes verdejantes com cabras ao fundo e casas e pessoas de outra cultura, deslizando por um liso alcatrão que não faz por subir muito é altamente! Tal como o durante na boleia nem sempre custa, quando realmente apanhamos a boleia...
               
Há algumas diferenças, mas o depois parece ser a fase mais parecida entre estes exemplos todos.

Então, quando penava para subir aquilo tudo, pensava que este é um tipo de viagem que não tem nada a ver com a viagem da boleia. É cedo para dizer se gosto mais, ou menos, e acho que nunca o vou dizer, por ser tão diferente. Há mais tranquilidade e eficácia de deslocação à boleia. Txi, já estava p’ra no Senegal! Mas de bicicleta sentimos os quilómetros que passam a sair-nos do coração. É bom saber que saí de minha casa, em Vale de Cambra e que, tirando o barco em Algeciras, vim sempre, sempre até aqui com o meu próprio esforço. É gratificante. Além disso também sentimos um bocado mais de bicicleta. Um bocado mais de tudo por onde passamos. Pasamos nas vilas e temos tempo para reparar nos detalhes e cumprimentar os milhares de pessoas que nos cumprimentam. Uma desvantagem é a bicicleta propriamente dita. Temos de estar de olho na miúda sempre, o que é uma seca. À boleia, só com a mochila há uma certa liberdade de que sinto falta.
               
Tenho de ter cuidado com isto tudo, no fundo. Tenho de ter cuidado e perceber se chega a um ponto em que estou a continuar de bicicleta porque disse que o faria. Se o fizer, é uma fortaleza mental que acaba por ser uma fraqueza... Pois a mais ténue das linhas é aquele que separa a resiliência, espírito de sacrifício e vontade do puro orgulho. Pois se chegar a um ponto em que realmente me desagrada a ideia de pedalar, tenho de sentar-me à mesa comigo mesmo, e dizer-me que não tenho de fazer nada de nada. Não há nada pior que ser refém de nós próprios, e eu tenho tantas certezas e tanta desinibição cmo certas afirmações que corro o risco de me aprisionar, por vezes.

Esta minha atitude de agora, em que já acho que vou conseguir, contrastando com quando subia aquelas montanhas, começou ao quilómetro setenta e um desta viagem. Sei porque vi uma grande descida e lembrei-me de reparar quantos quilómetros seguidos ia descer. Desci bués. Aliás, desde aí até chegar, ao quilómetro noventa e seis, devo ter vindo a uma média de vinte e tal, comparando com a média de quinze até então. Iá, dá um certo gozo apanhar um terreno porreiro e dar-lhe. O que não dá tanto gozo é olharmos para o pneu de trás e vê-lo a chorar. Parei, escassos quilómetros antes de Guelmim, enchi-o, enganando-me a mim próprio, e segui. Parei para tentar ligar aos gajos do couchsurfing, não consegui. Jantei por dois euros, peixe! Pela primeira vez desde que saí de Vale de Cambra, peixe! Paguei, parei num café para um chá e quando ia pegar na bicicleta... vazio. Ah, pá! “Vou enchê-lo outra vez e deve dar para sair da cidade e acampar aí num sítio qualquer”, pensei. Mas não dava. Quanto metia para dentro, quanto saía.
               
Uns rapazes, vendo-me no meu esforço, ofereceram-se para ajudar, e indicaram-me uma loja de bicicletas. Já era de noite, estava numa cidade, podia adiar mais dois mil quilómetros a minha estreia na mudança de pneus. O homem lá o mudou e vim procurar um hotel, onde agora me encontro. O primeiro era cinco euros, bazei. Estou agora a pagar três euros por um quarto, num hotel que é quase tão mau quanto um onde fiquei na Síria aqui há uns anos. Mas... ‘tá-se bem.

22h21, 3ª, 11-3-14

Hotel Merdoso, Guelmim

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Mirleft

Apesar do chão cheio de pedras, estava a dormir a minha primeira noite de campismo a solo com alguma tranquilidade até que comecei a ser acordado com a parede da tenda a bater-me na testa. Pouco a pouco, cada vez mais forte, até que já não dava para dormir, eram sete e tal. Levantei-me, a Bicicleta ainda lá estava, lavei os dentes, arranjei as cenas com tranquilidade e meti-me a caminho. O Vento estava a dar-me pelas costas e estava com uma média de 25 quilómetros por hora! Altamente! Vrrum, lá segui! Até que fui ter ao mar. Aí, em vez de seguir para Oeste, comecei a seguir para Sul, e em vez do poderoso Vento me dar pelas costas, dava-me de lado ou de frente. Deus, que frustração. Ora a ser mandado estrada fora, ora a esforçar-me ao máximo para andar a oito ou nove quilómetros por hora. Só me apetecia mandar tudo pelo caralho! Desfazer-me da Bicicleta e apanhar a próxima boleia. Acho que cheguei a estar meio triste com aquilo tudo. Ia-me convencendo que às vezes é assim, e que depois passa e essas cenas todas, mas estava difícil.
               
Felizmente, só tinha de fazer cerca de cinquenta quilómetros.
               
E assim, pesadas horas depois, lá cheguei a Mirleft, que se avistava no topo de uma falésia. Contente por ter acabado o suplício, perguntei a um senhor se havia campismo ou algo assim na Vila e ele disse-me que não. Vim na mesma, dei uma volta, nada. Não se passava nada. Até que fui interpelado por um rapaz que me queria alugar um quarto por dez euros. Se eu encontrasse outra pessoa pagava o mesmo. Eu disse-lhe que acreditava que era um bom preço, mas como ia estar a viajar um ano, não queria estar a pagar tanto. Perguntei-lhe se dava para acampar em casa dele, que estava disposto a pagar por isso, e apesar de inicialmente renitente, disse depois que não ia dar. Lá disse que ia ligar a um amigo a ver que preço ele fazia, e eu perguntei se havia algum campismo. “Há um ali ao fundo, é de um francês”, respondeu o méne. “Então eu vou lá ver enquanto ligas ao teu amigo”. O campismo tinha internet, tinha máquina de lavar roupa por 3€ e parecia dar para cozinhar. Tinha de pagar 2,5€ para mim e outro tanto pela tenda. Pá, não era péssimo. “Vou ficar aqui”, pensei. Mas, apesar de querer entrar e descansar um bocado, tinha dito ao outro méne que voltava, por isso lá decidi voltar só para lhe dizer que afinal ficaria no campismo. Acontece que o rapaz já não estava lá, e quem estava era o Ibrahim e o Karim, que me disseram que tinham um quarto por cinco euros. Ainda hoje não percebi se algum deles era o amigo a quem o outro disse que ia ligar, ou se tinha coincidência. O que é certo é que lá fui ver o sítio e era demais! Fiquei contente por, ao decidir fazer o correcto e ir dizer ao outro que já não estava interessado, acabei por te sorte. Nisto tudo aparece uma coreana a sair de um táxi que eles fisgaram de imediato.
               
Lá seguimos os três. Era um apartamento com três quartos enormes, cozinha com frigorífico e gás e quarto-de-banho com água quente (assim-assim, e às vezes) e papel higiénico. Tinha um champô e tudo! Deixei a miúda ficar com o quarto com a cama e eu fiquei num daqueles que tem umas almofadas estilo sofá sem pernas a toda a volta, e fomos ao terraço. Lá era o apartamento do Hassan, dono também daquele onde ficaríamos, e onde estava o router da internet, que chegava na boa ao nosso apartamento! A cereja no topo do bolo foi uma máquina de lavar roupa que podíamos usar pela módica quantia de NADA! Era bastante simples, abrir, meter a roupa e o Tide, meter água e carregar num botão que fazia aquilo girar, mas era suficiente. E tudo por cinco euros! Estava contente.
               
Bebemos um chá e comemos uma sanduíche no apartamento do Hassan e depois fui tomar banho e descontrair um bocado no meu quarto. Quando me vi ao espelho reparei que tinha mares de sal espalhados pela minha cara. Os esforços de um ciclo-turista.

               
Fui dar uma volta, indo parar a uma praia porreira ao lado de uma mesquita. Ainda tentei ir à beira-mar, mas o Vento metia-se nos olhos e espancava-me a cara.
               
O Ibrahim tinha dito que mais logo podíamos jantar juntos, e assim o fizemos, quando ele nos veio chamar. Comemos umas sanduíches enquanto ele preparava o jantar e íamos conversando. O Ibrahim tinha vendido um terreno por quatro mil euros e tinha-se mandado para a Europa meio ano. O irmão dele vivia em França, estando casado com uma francesa, mandou-lhe o passaporte dele e o gajo andou com o passaporte do irmão até ser apanhado. Meteram-no num avião de volta para Marrocos e agora está cá outra vez. Um gajo muito porreiro e o primeiro, juntamente com o Hassan, que não praticava o Islão. “Se és boa pessoa, já és muçulmano”, dizia o dono do apartamento.
               
Entretanto apareceu o Karim. Pareceu-me que eram amigos recentes pelo Ibrahim não saber ao certo a idade deste rapaz, e confirmei-o mais tarde, num momento muito interessante. Falávamos do Ramadão, e o Karim contava um episódio que se passara quando estivera três ou quatro meses em Friburgo, na Alemanha. “Além de não podermos comer nem beber, também não podemos olhar para mulheres...”, dizia, “Pois uma vez eu estava num parque, e passei por uma rapariga com uma gabardine. Ela devia saber que era o ramadão, porque chamou-me, eu olhei, e ela abriu a gabardine, e estava toda nua! Eu virei-me e desatei a correr para casa”. “O Karim vai para o paraíso”, disse o Ibrahim, ironicamente. O momento interessante foi quando o Karim disse que toda a gente vivia o ramadão e eu disse que o Hassan e o Ibrahim, por exemplo, não o praticavam. Já tínhamos falado disso.
               
- Claro que praticam! – disse, cheio de certeza.
- Não, não pratico... – disse o Ibrahim.
- Mas é muçulmano... tens de... tens de praticá-lo – respondeu o Karim, nitidamenete confuso, e com dificuldade em assimilar aquilo.
- Mas eu não sou muçulmano! – rematou o Ibrahim. Pá, a reacção do Karim foi como se eles fossem todos polícias e o Ibrahim acabasse de confessar que usava o dinheiro das multas para comprar heroína. Assim uma traição total. Não a ponto do gajo se pôr a andar, mas embasbacado que estava, disse que ia fingir que não tinha ouvido aquilo, como que se negando a evidência o ajudasse a não ver o amigo sob uma luz menos positiva. E é em cenas destas que entra a minha dificuldade em entender estas cenas.
- Mas é a tua cultura, a tua tradição!
- Mas, – disse eu – há pessoas que escolhem ter a sua própria cultura, e fazer as cenas à sua própria maneira... e isso não tem de ter mal nenhum, desde que sejam boa onda e se respeitem uns aos outros...


O jantar foi sublime, bem como a sobremesa que o Ibrahim preparara. Passei o serão com os rapazes, ora na conversa, ora a ver um excerto de um filme qualquer. Foi uma boa noite.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Agadir

Quando chegámos a Agadir, aqui o Tóino ficou um bocado a olhar para aquilo de lado. Então eu tinha ideia que Agadir era uma vilita tranquila com umas praias e uns barezitos relaxados à beira-mar e aquilo era uma cidade e peras! Iá, eu sabia que tinha aeroporto e tudo, mas ainda assim podia ser um aeroporto todo podre que tivesse só alguns vôos.

Enviei mensagem ao Sofian e ele disse para irmos ter à estação de autocarros. P’rai uma hora depois, e tendo perguntado p’rai a dez pessoas, lá chegámos. Enviava mensagem e o gajo não respondia, até que pedi a um casal que passava para usar o telemóvel deles e lhe liguei. O gajo lá apareceu. Apareceu com o Samir, e fomos para sua casa. Deixámos as cenas no seu quarto e fomos tomar chá para a sala e comer uns pasteizitos. Estivemos lá p’rai uma hora e devo ter feito vinte perguntas sobre Marrocos e o Islão. A minha experiência em Marrocos não é muito extensa. Estou, neste momento, aqui há três semanas. Mas tenho falado com pessoas e também o facto de andar de bicicleta permite-me ver muitas, muitas localidades, e apreender mais do que se andasse de autocarro. Por isso, posso dizer que a minha experiência em Marrocos é diferente da dos outros países muçulmanos por onde passei, e pode ser por isso que eu ache que Marrocos é o país mais muçulmano onde já estive. Note-se que já passei pela Turquia, Síria, Líbano, Iraque, Irão, Paquistão e Índia.
               
E a conversa que tive com o Sofian no café para onde fomos ver o futebol a seguir foi mais uma pedrita para o edifício desta constatação. Conversámos muito acerca de práticas, regras, imposições e para o Sofian, tal como para o Abdul e o seu amigo em Casablanca, ser muçulmano era a verdadeira cena! Era fixe. Em Portugal, às vezes, quando alguém mais jovem se confessa praticante, pode até levar um bocado de escárnio, porque o que é fixe é não seguir nenhuma religião, parece-me. O que também é estúpido, porque o que é, realmente fixe, é seguir, ou não seguir algo porque pensámos acerca do assunto, e não porque temos vergonha de uma ou de outra atitude. Contudo, aqui em Marrocos parece-me que é ao contrário.
               
Facilmente me apercebi que para quem anda perdido e se deixa embrulhar facilmente em argumentação possa ver no Islão a solução para os seus problemas, ou a verdadeira resposta. Isto porque o pessoal parece ter na ponta da língua sempre argumentos ou exemplos que conhecem e que dá a entender que sabem do que estão a falar. Mas, muitas vezes sinto que fica por aí, o “dar a entender”, porque explorando um pouco, perde-se o fio à meada. Na narrativa senti haver muitas vezes o recurso a ilustrações que não têm sentido. Como o Sofian me falar do Ramadão e dizer que é saudável, porque é como levar um carro à inspecção, algo assim. Ou, quando falámos de céu e inferno e eu digo que acho que não faz sentido haver um inferno se há um deus, ele me dizer que tudo tem de ter um positivo e um negativo, como aquela lâmpada, que tem um polo negativo e um positivo. Pois se há um deus, nada tinha de ter um positivo e um negativo, tinha de ter aquilo que lhe apetecesse. A par destes exemplos, havia exemplos de uma pessoa qualquer que tinha feito qualquer cena ou visto qualquer coisa e depois era tida como exemplo, como se esse evento isolado representasse todo o mundo. É esta falta de análise lógica e científica que eu não entendo. Culminou com o Sofian a dizer que tinha a certeza que nunca nenhum muçulmano se tinha convertido para outra religião. Isto a propósito de, por vezes, outras pessoas se converterem ao Islão e eu dizer que, certamente, acontecesse em todos os sentidos.

- Méne!! Não podes dizer isso! A menos que tenhas conhecido toda a gente do mundo, não podes dizer isso, pá!
- Mas eu tenho a certeza!
- Olha, não podes ter a certeza, porque eu já conheci um gajo que mudou... Uma vez, era Sexta-Feira à noite e eu ia p’rós copos. Passei num super-mercado e estavam lá dois ou três pessoas com um casaco a dizer “Jesus Army” a recolher as sanduíches que tinham passado de prazo para irem entregar aos sem-abrigo. Eu ajudei-os a levar os sacos e depois em conversa com esse méne, que dizia que Jesus era o maior, eu disse-lhe que ele só acreditava em Jesus porque tinha nascido num contexto que o tinha condicionado para isso. E ele disse-me que tinha nascido muçulmano... – e, efectivamente, esse gajo calou-me como eu calara o Sofian nesse momento. Pois tal como esse meu amigo marroquino, também eu muitas vezes falo sem saber...
- A sério? – perguntou, estupefacto.
- A sério.
- Eu acredito em ti... mas de certeza que nenhuma destas pessoas ia acreditar nisso – espero que, também essa afirmação, um exagero.

Mas, apesar deste fundamentalismo (não no sentido a que nos habituámos na televisão) o Sofian até era bom tipo, e acho que me curtiu. Tento dizer sempre o que penso e tento não julgar, o que por vezes é difícil para quem pensa muito acerca das cenas e tende a achar-se correcto. E por isso, acho que acabo por conseguir um equilíbrio entre a verdade e respeito. Como quando me perguntou, no dia seguinte, o que eu achava do Islão. Comecei por dizer que comprendo que cada um tem a sua cena e conquanto não a imponha aos outros, ‘tá-se bem.  E que, por ter passado por mutos países que praticam esta religião e por ter sido sempre bem tratado, sinto-me no dever de os proteger de afirmações generalistas. Contudo, acho que é uma religião que tem várias regras sem sentido. Infelizmente, não é uma religião que está sozinha neste aspecto. Ele não teceu grandes comentários acerca do meu, pelo que não sei ao certo como interpretou as minhas palavras.

Daí a duas ou três semanas o Sofian iria viver para a Holanda, onde tinha uma namorada desde há três anos. Apesar de já lá ter passado seis meses, acho que será, ainda assim, um choque cultural enorme. Os marroquinos devem ter um charme especial qualquer, pois pelo menos aqueles com quem falei, ou tinham namoradas europeias ou já se tinham enrolado algumas vezes com turistas do nosso continente. E não me parecia couro de quem se quer armar em garanhão...

Agadir marcou o fim da minha viagem com o Joel. Pedalámos juntos cerca de dez quilómetros, estacionámos na beira da rotunda que nos separaria, demos um abraço, e cada um foi para seu lado.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

até Agadir

Acordámos em Essaouira, tomámos um calmo pequeno-almoço e bazámos. Tínhamos onde ficar mas era a 117km daí, e já estávamos a bazar tarde, pelo que não nos esforçámos por lá chegar. Se inicialmente foi um trajecto bastante tranquilo, com um bom asfalto e sem grandes subidas, depois tornou-se um bocado num desastre, com um Vento ridículo. Praguejei algumas vezes quando o meu caro amigo me soprava para a berma. Uma vez quase caí da Bicicleta. Aconteceu o mesmo ao Joel, e como ele tem uns pneus que parecem fio dental fez um furo. Na verdade dois, um de cada lado da câmara de ar. Desde que saiu de Barcelona já teve sete furos, problemas na corrente e parafusos a desaparecer, problemas a que estamos sujeitos quando compramos bicicletas em segunda mão, talvez.
                
Quando parámos para comer uma sopa vimos os primeiros ocidentais numa grande viagem de bicicleta. Tínhamos visto um cota com pinta de francês no sentido contrário as não falámos com ele. Estes, também indo no sentido contrário, eram da República Checa e iam de Marraquexe até ao seu país. Nesse dia vinham de Agadir, montados nas suas bicicletas caríssimas, e procuravam naquela localidade um quarto. Dissemos ao homem dos seus quarenta e tal, magrito mas com grande pança, para se sentarem connosco, mas mais do que se sentar ele parecia querer assentar. Tanto que meteram as bicicletas na mala de um táxi e foram para Essaouira! Eu e o Joel sentados na nossa mesita a ver aquilo achámos um bocado estranho. Não havia um quarto naquela terra? Talvez o gajo a quem eles perguntaram os tenha mandado para Essaouira para dar negócio ao taxista. De todo o modo os checos estavam demasiado cansados para mais, pois também eles tinham apanhado grandes ventanias no mesmo dia.
                
Pedalámos não mais que meia hora até que o Joel sugeriu encontrarmos um sítio para montar a tenda. Que espetáculo foi! Lá encontrámos um sítio no meio de umas árvores dispersas, e o Vento tornava aquela tarefa numa quase impossível! Estava a acabar de montar a minha tenda, que estava tão torta que ambos os lados tocavam no chão quando apareceu um pastor só de um braço que nos dizia para irmos dormir em casa dele. Já tínhamos montado a tenda, pelo que agradecemos e dissemos que lá ficaríamos. Ainda assim, ele fez o gesto de beber, e apontou para casa dele. Depois apontou para a garrafa de água do Joel e fez o mesmo. “Se calhar está a convidar-nos para ir a casa dele beber água”, comentámos. Tentámos explicar que acabaríamos de montar a tenda primeiro, mas entretanto ele desapareceu.
                
Ainda assim fomos lá ter. À porta estava um cão a ladrar, talvez o serviço de campaínha. Por ser um sítio tão deslocado imaginava que o homem vivia ali sozinho num buraco. Mas não, o rapaz dos seus sessenta e tal vivia com a mulher, e tinha lá um bebé e uma miúda p’rai de três anos, talvez seus netos.
                
Tirámos os sapatos (eu tirei as meias também) e sentámo-nos no chão do que deveria ser a sala. Ligou a televisão e rapidamente apareceu com um grande tacho de sopa. Enquanto nos servia sorria abertamenete, num sorriso dificilmente mais genuíno. “Olha como está contente”, comentámos. E isso deu-me um certo calorzinho fixe. Comemos duas malgas, vimos um bocado de televisão, e estávamos a equacionar irmos embora, mas não sabíamos se era má onda, ou se ele ia voltar a oferecer a sua casa para dormirmos. Estávamos um bocado confusos. Ainda bem que não dissemos porque a dada altura levantou-se e voltou com uma bacia de água e um cântaro. O Joel estendeu as mãos e lavou-as, enquanto o velho ia vertendo água. Depois eu. Depois veio o chá e a comida. Três peças de cabrito com molho e cebola para os três, que iam depenicando com o pão a servir de talher.
                
Tínhamos falado da possibilidade de dormir lá e o Joel não queria. Tinha tido outro furo a caminho do nosso campismo (!) e estava sismado com aquilo. “Se não o reparar hoje não durmo em condições”, dizia. Pensei então em eu dormir lá em casa do velho e o canadiano ir fazer o que tinha a fazer.  Contudo, quando ele sugeriu irmos buscar as nossas cenas e nós demos a entender que o Joel podia dormir na tenda e eu podia ficar, o velho, por sua vez, deu a entender que, ou ficávamos os dois, ou íamos os dois, que foi um bocado estranho, mas na boa. Agradecemos, sorrimos, e levantámo-nos então para bazarmos. Ele pôs a sua lanterna na testa, caminhou connosco até à tenda e despediu-se.
                
O Joel reparou a sua bicicleta e deu um jeito na minha. As minhas mudanças da frente tinham alguma dificuldade em entrar no modo fácil. Tinha de as mudar sempre sem estar em esforço nenhum, o que era uma seca, porque se antecipava uma subida tinha de as mudar antes de realmente precisar, ao invés de começar a subir e depois mudar. Já a mudança para dar mais potência raramente entrava. O Joel mudou aquilo para a mais fácil entrar sempre e simplesmente esquecer a mais difícil. Na verdade não é assim tão necessária. Mas ainda vou tentar dar um jeito, quando me apetecer.

Quando acordámos pedalámos até Agadir.  Estava com boas expectativas para esta cidade, simplesmente porque sabia ser um destino comum, e isso dava-me a entender que por alguma boa razão havia de ser. A meio da viagem, quando parámos para comer qualquer coisa, dei uma vista de olhos no couchsurfing e encontrei um perfil com número de telemóvel. “Hei I’m Pedro, from Portugal and couchsurfing. I sent u a request, could u host us? Thanks :)”. “Why not just let me know how many person you are and wich place you are now?”, respondeu o Sofian. Eu voltei a enviar mensagem a dizer quantos éramos, e que ainda demorávamos um bocado pois estávamos de bicicleta e ele não respondeu. Mas fê-lo ao vivo. Isto porque quando um carro me ultrapassa e pára, e de lá sai um gajo que sabe que sou de Portugal, percebo que era ele! Era a segunda vez que o meu anfitrião passava por mim de carro. Entretanto apareceu o Joel, que ia atrás, e o Sofian pediu-lhe o passaporte. O meu amigo estava um bocado confuso e eu fiz-lhe sinal para ir na brincadeira. O marroquino começou a dizer que era polícia e que ele não tinha permissão de bicicleta e cenas do género, no gozo. Eu estava um bocado com medo que o Joel o mandasse à merda, e a dada altura disse que era o nosso anfitrião dessa noite.

                
Daí a Agadir foram mais quarenta e tal quilómetros. Chegámos, 104 quilómetros depois de onde tínhamos acordado, e estava um bocado cansado.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Entre Tiznit e Mirleft

Sozinho outra vez. O Universo meteu o Joel no meu caminho para me facilitar a entrada no desconhecido. Num segundo conheci o Canadiano, no segundo seguinte combinámos pedalar juntos um ou dois dias. “Que benção”, disse-me o loirito, no mesmo dia, quando chegámos a Tânger e trocávamos dinheiro, “Ia detestar fazer isto sozinho!... Quer dizer, não ia detestar, mas não ia ser a mesma coisa...”. Fiquei contente de saber que estava tão contente quanto eu por ter alguém.
                
Pensei em acompanhá-lo um dia ou dois porque naquele primeiro dia em que pedalámos até à nossa primeira cidade marroquina achei que não tinha pedalada para o magrito. Mas acabou por correr bem, e de um dia a ideia passou para dois, três. Ele tinha de pedalar todos os dias, eu não tinha obrigação de nada. Mas deixei-me ir. O miúdo adoeceu, eu ajudei-o com isto ou aquilo, melhorou, fomos seguindo. Passámos Essaouira, chegámos a Agadir, mais de mil quilómetros depois de nos termos conhecido.
                
Deixámos juntos a cidade e dez quilómetros depois ele foi para Este, eu vim para Sul. Senti de imediato o aborrecimento de pedalar sozinho, ajudado pela estrada de duas vias para cada lado sem o sal do mar ou o doce das velhas a o vender. Senti logo a falta de ter alguém com quem comentar as coisas, alguém a quem esperar, ou que me esperava. Alguém a quem dar uma bolacha ou de quem receber um gomo de laranja. Mas tem de ser assim. Tem de ser assim porque eu quero continuar, e não posso, não quero, nem me permito, depender de ninguém para o fazer. Sim, sei que há ganhos em viajar sozinho, há coisas que vou viver de uma maneira diferente, talvez vá interagir ainda mais com os locais. Mas não o prefiro. Acho que nunca o preferi. Gosto de ter alguém.
                
Cheguei a Tiznit, noventa e tal quilómetros depois, e já o sol ameaçava pôr-se daí a menos de uma hora. Talvez fosse tarde para sair da cidade e encontrar um sítio onde ficar, pelo que avistei um prédio em construção e equacionei a dormida aí. Fui tomar um café, procurar estadia. Sem sucesso. De repente, com a noite, veio um entusiasmo que apareceu de esquina. Paguei, saí lá para fora, olhei para o céu, e essa solidão tornou-se... engraçada. De repente achei engraçado estar um bocado à nora sem saber bem onde ficar. Fui comer umas sandes de salsicha, voltei à bicicleta, passei pelo prédio e percebi estar tomado, com dois ou três gajos a ouvir música. “Que se lixe”, pensei, “Vou seguir”. E segui. Estrada fora, a lua à minha esquerda e um sorrisito de puto.
                
Dez quilómetros depois da cidade uma estradita convidou-me. Entrei e, atrás de um muro encontrei o meu pouso. Estou neste momento deitado na minha tenda, a ouvir Amiina, e sinto debaixo das minhas costas todos os calhaus que existem neste país. Estou a acampar sozinho, pela primeira vez. Ah, apercebo-me agora que estou a acampar sozinho pela primeira vez na minha VIDA! Não estou desconfiado, mas guardo alguma reticência natural de quem é novato em alguma coisa.
                
O sono pega um pouco em mim. Quero que a Bicicleta ainda lá esteja amanhã de manhã.

23h21, 6ª, 7-3-14

Algures entre Tiznit e Mirleft