segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O Primeiro Fim - De Volta a PT Por 2 Meses



Véspera de Natal.
Sentado numa cadeira de vime à porta do meu quarto cor-de-rosa em Brazzaville a ouvir Stranger Things Have Happened dos Foo Fighters vezes sem conta, escrevo o meu último texto desta viagem para os próximos tempos.
Vou a casa. Vou ter de ir a casa.

Ontem tive talvez o dia mais stressante desta jornada. Do início ao fim, sempre aos tropeções em problemas e complicações. Acordei às seis e tal da manhã, Kinshasa avizinhava-se. Tomei banho, meti as coisas nas bicicleta, despedi-me da família do Gauthier e saímos. Sentámo-nos lá fora, na beira da estrada de terra, a comer um iogurte e um pão com chocolate enquanto esperávamos o táxi que nos levaria ao cais. Quando chegou tirei o pneu da frente da Mónica, metemo-la na mala e seguimos. Atravessámos a cidade, parámos na garagem onde o meu amigo trabalhava e atravessámos os campos à beira-rio que o pessoal cultivava, saíndo do outro lado no cais. Kinshasa sorria do outro lado do Rio Congo.

O Clovis, um homem magrito de t-shirt vermelha que falava inglês, abordou-me, eu disse que queria levar a bicicleta, ele disse que o barco maior que a podia levar viria daí a uma hora. Geralmente trato eu das cenas, não costumo ir com a malta, muitos deles estilo-abutre que nos vem vender bilhetes inflacionados ou permissões das quais não precisamos, mas decidi ir na onda do homem. Esperámos uma hora, duas.

- Onde tiraste o teu visto para Kinshasa? - perguntou-me, estávamos encostados ao muro. Choviscava e ele fumava um cigarro.
- No Benim.
- Ui... isso vai dar complicações... - respondeu, com má cara.
- Porquê?
- Porque eles exigem que o visto tenha sido tirado no país de residência.
- Mas... o meu visto é válido.
- Pois, mas eles lá do outro lado são duros... espera, eu ligo a um conhecido meu do outro lado. Posso ligar do teu telemóvel? - passei-lhe o meu Samsung branco e ele disse que o conhecido pedia duzentos dólares para me deixar entrar.
- Nem pensar! O meu visto é válido! - atirei, sem pensar duas vezes.
- Pois, mas eles do outro lado são assim... - ia dizendo. O homem em Kinshasa, um tal de Henry, deu um toque, ligámos, e ele pediu cento e cinquenta dólares. Eu sabia que este tipo de coisas acontecia. Muita da polícia e outras autoridades em África aproveitam-se para fazer dólares extra em qualquer situação. E como eu tinha um visto perfeitamente válido, não quis ceder e fazer parte desse sistema sujo. Teria de resultar, desse por onde desse. Mas tinha ficado em mim um nervoso miudinho. E se não desse? Que faria? Enviei mensagem aos meus pais, pedi-lhes para me enviarem o número da Embaixada de Portugal, talvez eles me pudessem ajudar. Entretanto o Clovis ia sempre falando acerca do quão maus eles eram do outro lado e que, quando eu chegasse, tinha de ser forte, firme, e corajoso. Ele queria ajudar, mas estar sempre a bater na mesma tecla não me estava a ajudar muito... só meu deixava mais apreensivo.

O tempo continuava a passar e eu não percebia exactamente do que estava à espera. Entrei pelo portão que dava acesso ao cais e fui dar os meus dados e levar o carimbo de saída do país. Voltei e o Clovis disse que eles estavam a pedir cinquenta euros para levar a Bicicleta. Nem pensar. “Eles estão a dizer que a bicicleta não pode ir, que precisa de autorização”, disse. A situação ia mudando, como se tivesse VIDA própria. Havia donos de barcos a mandar preços para o ar, trabalhadores do cais e pessoal que trocava dinheiro, todos tinham algo a dizer. Para tentar resolver pelo menos o problema da autorização levámos a bicicleta aos escritórios da alfândega e eles disseram que não era preciso nada. Voltámos ao cais mas ninguém a queria levar. A menos que pagasse cinco bilhetes. Ou seja... a cena da autorização só era um problema caso eu não quisesse pagar um preço estúpido, como não queria. Andámos para trás e para a frente, falámos com doze ou treze pessoas. Foi de cinco para três bilhetes. “Mas a bicicleta é bagagem!”, tentava dizer, “As pessoas podem levar bagagem sem pagar! Se eu comprar dois bilhetes há espaço de sobra! Para mim, para a minha bagagem, para outra pessoa que não vai e para a bagagem dessa pessoa!” Mas as palavras caíam no vazio de quem queria fazer mais uns francos. O sol apertava, as horas iam passando e não encontrávamos uma solução. “Vamos à alfândega outra vez”, disse o Clovis. “Trazemos um papel qualquer”. Mas, quando lá chegámos, eles disseram que uma autorização custava cento e cinquenta euros, e não era preciso para a Bicicleta. “Mas não podem só escrever num papel à mão a dizer que estivemos aqui e que vocês disseram que a Bicicleta não precisa de autorização?”. Não. “Então podemos dizer para eles telefonarem para confirmar?” Podem.

Voltámos e o Clovis disse para irmos esperar o chefe a um restaurante improvisado encostado a uma rede de arame. Estivemos lá uma hora, ele bebeu uma cerveja, não apareceu chefe nenhum e voltámos para a beira do Gauthier, que pacientemente guardava a Bicicleta. Entrámos pelo portão para quem vai embarcar, o Clovis falou com alguém que lhe deve ter oferecido uma opção que parecia mais viável. “Pagas um bilhete pela Bicicleta, ela vai num barco de carga e espera-te do outro lado!”, disse. Okay, tudo bem. Não adorava a ideia de me separar assim da Bicicleta, indo ela com alguém que eu nem conhecia mas, apesar de toda a corrupção africana e de muitas vezes o pessoal querer o dólar extra, ainda não tinha sido roubado nenhuma vez, por isso alinhei. Iá, e estava farto daquilo. Comprei o meu bilhete, despedi-me do Gauthier e passámos para o outro lado do portão. Tinham passado mais de três horas desde que tínhamos chegado. “Dá-me então onze mil francos para eu levar a Bicicleta ao barco”, disse o Clovis. Não tinha trocado, dei-lhe quinze mil. “Tive de pagar quatro mil ao guarda do porto”, disse, quando voltou. Fiquei com bastantes dúvidas e, mais tarde, quando falei com o Gauthier, ele assegurou-me que ele não tinha pago nada quatro mil. O que era irónico, sendo que o Clovis estava sempre a criticar o pessoal que só queria dinheiro, só queria dinheiro. “Porque lá do outro lado em Kinshasa eles só querem dinheiro!”

- Estou sim?
- Sim, fala da Embaixada de Portugal?
- Sim!
- Viva. Eu sou um português que está em Brazzaville prestes a embarcar para Kinshasa. Eu tenho um visto válido mas estão aqui a dizer-me que se o visto não tiver sido tirado no meu país de origem não posso entrar. Isso é verdade?
- Ah, pois é.... então porque é que você não o tirou em Almada? Tem lá um consulado... e eles nem são muito chatos.
- Pois... o problema é que eu saí de Portugal em Fevereiro... e se o tivesse tirado lá já tinha expirado – respondi. A senhora passou-me o cônsul. Perguntei-lhe o mesmo.
- O seu visto foi tirado num consulado oficial ou num consulado honorário? É que há consulados honorários em África que passam vistos e não podem... e se for esse o caso não posso fazer nada por si.
- Não, foi numa embaixada mesmo!
- Então pode entrar, pode!
- Não preciso de pagar nada?
- Não, seja firme! Diga que já falou com o cônsul e diga que ele falou com o Joe Cottongolo e que não há problema. Diga esse nome! E se for preciso ou vou lá buscá-lo! - respondeu. Sentado na minha mala olhei para Kinshasa, lá ao longe, e senti-me mais aliviado. Esperei mais uma hora e tal. Levantava-me, ia dar o passaporte para o manifesto do barco, voltava a sentar-me. Levantava-me outra vez para ir ao escritório para verem a minha cara, voltava. Depois o Clovis vinha chamar-me para pagar uma taxa nem sei bem de quê. Mais mil e quinhentos francos e mais um bilhete na mão. Depois desaparecia e aparecia pedindo quinhentos francos para pagar o saco que ele tinha trazido para meter as minhas malas que tinha todo o aspecto de ter sido apanhado do lixo. Desaparecia e chamava-me outra vez e dizia-me, pela enésima vez, para eu ser firme do outro lado e para ligar ao embaixador se fosse preciso. Eu dizia que já tinha falado com ele mas ele repetia-se tanto que era quase como se não acreditasse em mim. E entretanto a Bicicleta já estava do outro lado.

O sol dava o seu melhor para nos fazer sofrer quando alguém finalmente gritou “La Liliane”, o nome do meu barco. Dei dois mil francos ao Clovis, despedimo-nos, ele pediu o meu correio electrónico, e entrei na lancha. A corrente era tão forte que seguíamos na diagonal, como se subíssemos o rio, para andar sempre em frente.

Tinha lido acerca daquela passagem de fronteira. Tinha lido que era o caos total mas que, se uma pessoa mantivesse a cabeça fria, era uma experiência pela qual valia a pena passar. Como mantenho quase sempre a cabeça fria, achei que podia ser algo interessante. Contudo, ao que parecia, os maiores tumultos eram quando havia o ferry que levava mais gente de cada vez e uma pessoa chegava do outro lado como se de um mar desembarcássemos num oceano de gente a pedir para levar as nossas malas, para nos vender isto ou aquilo. O ferry já não existia e, segundo o Gauthier, também não havia mais possibilidades de passar de um Congo para o outro, sendo que todas as outras fronteiras estavam fechadas. De todo o modo, pela experiência ou não, eu precisava mesmo de ir a Kinshasa para fazer um passaporte novo.

“Okay, hora da verdade”, pensei, quando vi o cais do outro lado já perto, lendo “Kinshasa, Capital de la Francophonie”. Saí do barco e vi a Mónica encostada a um muro a quatro metros. Fui buscá-la e estacionei-a frente à La Liliane, recusando simpaticamente a ajuda dos rapazes de bata branca que queria transportar as minhas malas. Meti tudo na Bicicleta e entrei pela ponte de ferro onde um polícia só com um dente em cima e dois em baixo, de boina azul, ao fundo, inspecionava os passaportes. Pegou no meu.

- Tens carta de residência do Benim? - perguntou.
- Não.
- Tu tens de tirar o visto no teu país de residência! - aqui vamos nós!
- Sim, mas eu deixei Portugal já em Fevereiro... eu já falei com o cônsul e ele falou com o senhor Joe Cottongollo e ele disse que não havia problema – respondi.
- Não... há problema, sim – respondeu, secamente. Mandou-me descer as escadas e quando o fiz apareceu um méne a vender não sei quê e outro a pedir-me o cartão de vacinas. Dei o meu cartão, ele passou-lhe a vista e eu percebi que ele estava à procura de alguma coisa, para me dizer algo do género de “Ah, mais não tens a vacina contra quistos no queixo” e tirei-lhe o cartão da mão.
Fui encaminhado para um escritório onde uns esperavam para ser expulsos e outros tentavam explicar-se para evitar tal desígnio. O guarda que estava responsável por mim devia ter défice de atenção ou algo do género porque tratou do meu caso aos poucos em p'rai vinte tentativas. O pessoal era simpático e senti que ia correr tudo bem. Expliquei que se tivesse tirado o meu visto em Portugal ele teria explicado e que, no fundo, o meu visto tirado no Benim era válido. Se alguém tinha cometido um erro tinha sido a malta de Cotonou em dá-lo. Esperei duas horas, vendo pessoal a entrar e sair, vendo o meu guarda a sair com o meu passaporte três ou quatro vezes. Pediu-me para escrever o meu trajecto e assim o fiz, referindo que de seguida iria para Angola. Talvez se tivesse dito que ia para Portugal as coisas tivessem sido diferentes.

Liguei para a embaixada às três da tarde para perguntar até que horas podia ligar caso as coisas dessem para o torto.

- Pode ligar a qualquer hora.
- Então posso ligar tipo às seis ou sete? - perguntei, sendo que não me admirava que o meu processo se arrastasse.
- Não, ligue até às três e quarenta e cinco – respondeu.
Esperava, esperava, e o homem não me dizia nada. Estava cá fora a comprar um cartão para o telemóvel quando ele me perguntou o que é que eu tinha para fazer em Kinshasa. “Bem... além, de querer conhecer a cidade e de ter de lá passar para seguir viagem, tenho de fazer um passaporte novo na embaixada e depois fazer o visto de Angola”, respondi. Ele voltou a desaparecer e apareceu passado dez minutos a perguntar como é que ia para Angola se não tinha páginas para o visto. “Eu vou fazer um passaporte novo na embaixada”, voltei a dizer. Pensava se deveria ligar ao cônsul e pedir-lhe para vir lá de qualquer maneira, mas as coisas não pareciam estar más e chamar o cônsul podia ser visto como hostil.

Voltei para o escritório, sentei-me na cadeira de plástico e ele voltou, desta vez com cara de quem já tinha uma resolução. “Pronto para seguir?”, perguntou-me um colega dele com um sorriso. “Fixe, estou livre, e nem sequer me pediram nenhum suborno”, pensei. Este pensamento atravessou-me de uma forma muito breve e esbarrou de frente num muro quando percebeu que o guarda que tinha o meu passaporte deu um breve olhar ao seu colega que dizia algo como “Não digas isso!”

- Bem... - disse, com o meu passaporte na mão e uma folha dobrada em dois dentro do mesmo – Tu vais voltar para Brazzaville – voltar para Brazzaville? Com aquele olhar de “Não digas isso” percebi que talvez houvesse algo mais. Mas, ainda assim, aquela notícia foi como se eu estivesse a chegar à meta da maratona e de repente alguém me agarrasse pelos cabelos com tanta força que eu desse uma cambalhota para trás.
- O quê? Mas... não pode ser... o meu visto é válido! - disse, incrédulo. Não acreditava naquilo! Eu tinha tirado dois vistos para Kinshasa! Dois! O primeiro expirou, fui tirar outro, foi o cabo dos trabalhos, mas no final tirei-o e ele era válido! Duzentos e vinte e cinco euros pelos dois vistos! Mas que se foda isso, se eu voltasse para Brazzaville tinha de voltar a Portugal!
- Sim, vais voltar para Brazzaville. Por duas razões. Porque não tiraste o visto no teu país de origem e porque não tens páginas no teu passaporte para o visto de Angola. Se ao menos tivesses o visto de Angola... mas não tens.
- Mas eu... mas eu disse-lhe que ia fazer um passaporte novo e que depois tirava o visto! Espere, espere um minuto... - disse, tirando o telemóvel do bolso. Saí do escritório, marquei o número da embaixada.
- Sim?
- Eles estão a dizer que me vão mandar de volta para Brazzaville! O cônsul pode vir vá? - pedi, a adrenalina a dançar sete valsas no meu sangue.
- Ai, espere aí que ele já vai buscá-lo! - disse a senhora, afogueada.
- Por favor, espere só dez minutos, o cônsul vem aqui e podemos conversar! - pedi, em desespero. Não, eles não me podiam mandar de volta! Que é que eu ia fazer? Não tinha embaixada para fazer um passaporte novo, não podia fazer nada!
- Não, você tem de ir já, o barco está à espera – disse, e levantou-se, pegando-me gentilmente no braço. Eu pedia para esperarem mas apareceram mais dois guardas para me escoltarem. Pegaram na Bicicleta, saímos para fora. Uma mulher saiu de um escritório onde anteriormente eu tinha visto o meu guarda entrar com o passaporte.
- É esse o português? Tens de ir! Nem tens o visto de Angola! - atirou, como se tivesse um prazer mórbido qualquer naquilo. Liguei de novo.
- O cônsul já vai a caminho, aguente aí, espere aí! - gritava a senhora do outro lado, enquanto os guardas me tentavam empurrar para seguir caminho. Estava tudo a acontecer a mil à hora. O cônsul tinha de aparecer e salvar-me no último minuto, tinha de ser, era esse o desfecho espetacular que eu merecia, não aquilo! Ia correr tudo bem!

Ou será que ia?
Ia caminhando devagarinho, sempre pedindo para esperarem só cinco minutos, só dois minutos!
Quando chegámos à ponte de ferro que dava para o barco deixei a Bicicleta tombar de propósito, aqueles segundos podiam ser preciosos. Demorei o meu tempo a levantá-la mas eles disseram a um velho de bata branca para me ajudar. Estava na ponte, o barco estava ali. Entrei no barco. Lembrava-me dos filmes, quando alguém está prestes a morrer e pede que não o matem. Nos filmes penso sempre “Ele sabe que não tem hipótese, porque é que ao menos não aceita isso com dignidade?” Eu não ia morrer... e é certo que não quero estabelecer, de forma nenhuma, qualquer tipo de comparação com o desfecho... Mas o que é certo é que as minhas palavras, os meus pedidos de espera, era também completamente em vão. Mas temos de tentar, sempre.

Entrei no barco. Não, o cônsul não chegaria a tempo.
- Vais ter de pagar pelo transporte disto! - atirou um rapaz.
- Não! - lancei-lhe. Puta que o pariu! Esse barco era o que levava o pessoal que era expulso do país. Muitos deles sem um tostão no bolso. Mas como eu era branco, talvez tivesse dinheiro comigo, e o méne queria ficar com ele.
- Então vou ficar-te com a bicicleta! - disse.
- Vamos ver... - respondi, entre dentes.
E o barco partiu.
Andou dois minutos ao longo da costa, deixou os polícias que me tinham escoltado e largou em direcção a Brazzaville. Sentei-me encostado à janela. Uma rapariga apenas. Perguntei-lhe porque é que não tinha podido entrar, ela disse que não sabia. Mais tarde, quando chegámos, percebi que era porque ela não tinha visto. Dantes não era preciso visto nenhum para as pessoas do Congo-Brazza, agora era preciso um visto de quase cinquenta euros, uma fortuna. Perguntei-lhe se o rapaz lhe tinha pedido dinheiro pela viagem e ela respondeu vagamente, dizendo que alguém a esperava do outro lado.

Via Kinshasa a ficar mais pequena e percebi que tinha mesmo acabado. Encolhi os ombros e sorri. Não estava contente, mas pensei no dia que estava a ter e achei tudo tão incrivelmente extenuante e potente que tive de sorrir perante aquela merda toda. “Se ao menos tivesse ligado ao cônsul mais cedo”, pensei. Mas não teria feito diferença nenhuma. Porque ele ligou-me passado uns minutos, depois de chegar ao cais e falar com o pessoal, estava eu a chegar ao lado de Brazzaville. “Pois, parece que é mesmo a lei, não poderia fazer nada, desculpe...”, dizia. “É ridículo, eu sei, mas é assim... de todo o modo eu submeti o seu caso para o Ministério de Negócios Estrangeiros. Já agora, se não é indiscrição, quanto é que pagou pelo seu visto? Setenta e cinco mil francos? Sinceramente, pensei que tivesse sido mais. Bem, boa sorte”.

Não teria feito diferença ter-lhe ligado mais cedo. Podia arrumar essa. Mas havia todo um número de erros e acidentes que não podia arrumar de forma tão ligeira. Arrumei-os na mesma, é certo, mas munido de estratégias mentais que me permitiam ver a realidade e não me focar em tudo o que podia ter sido. Toda uma série de erros que tinha levado a isto...

Estive na Nigéria dois meses, um desses meses a escassos quilómetros da fronteira camaronesa à espera que a mesma abrisse, todos os dias a não fazer nada. Podia ter aproveitado a espera para ter dado um salto a Abuja e fazer um passaporte novo na Embaixada de Portugal. Mas, enquanto esperava, a fronteira poderia abrir a qualquer altura, e se abrisse eu passaria para os Camarões, Gabão, Congo, e teria espaço suficiente no passaporte para chegar a Angola, onde faria um passaporte novo. Quando tive de voltar ao Benim por não conseguir entrar nos Camarões podia ter feito um visto do Togo de um mês em vez de chegar à fronteira, fazer o visto de uma semana, gastando uma página, e depois prolongar para um mês, gastando outra página. Mas não sabia que os serviços de emigração do Benim iam estar baixo, que ia lá ficar preso uma semana, e que precisaria de uma página extra para um visto de saída do país... Podia também ter descolado esse mesmo visto no Togo e ter ficado com uma página extra. No Togo descolei-o todo mas voltei a colá-lo, pensando que era melhor usar esta estratégia só quando fosse mesmo necessário. Não pensei que a cola fosse mudar de ideias e agarrar-se de tal maneira que, quando tentei retirá-lo novamente no Gabão, levasse partes da página do passaporte consigo, impossibilitando tal empreitada. Podia ter dito que pagava os tais duzentos ou cento e cinquenta dólares para que me deixassem entrar no Congo-Kinshasa... mas não faz parte da minha natureza ceder à primeira a estes avanços por detestar este tipo de sistema. Tenho de dizer que, se soubesse que o desígnio seria este, tinha pago esse dinheiro, por mais que deteste a ideia. Porém, resisto sempre até ao fim. Acontece que, neste caso, o fim passou por mim e eu nem dei por ele.

Podia ter feito isto tudo, mas não fiz nada, e estou em paz com tudo. A única coisa em que me desleixei mais foi em não ter feito o visto de mês para o Togo no Benim. De resto, são todas circunstâncias que só se tornam evidentes quando tudo já aconteceu. Mesmo essa possibilidade não parecia tão premente quando eu achava que podia contar com a descolagem do visto do Benim e da Nigéria.

Por isso não me massacrei nem castiguei sobejamente. Faz parte da minha natureza retirar aprendizagens de más experiências, mas não de sofrer com elas desnecessariamente.

Agora faltava voltar a entrar no Congo-Brazza, se já tinha um carimbo de saída.
Quando atracámos peguei na bicicleta e segui um homem que tinha o meu passaporte. De acordo com as tradições circenses da África-Burocrática, andámos de escritório em escritório, voltando algumas vezes para o mesmo, e ninguém sabia o que fazer. O homem que tinha o passaporte conseguiu livrar-se de mim, entregando o meu documento a um colega seu e fiquei com o pequenito, que dizia que não sabia o que fazer.

- Aqui diz “número de entradas” - dizia eu – e à frente está em branco, ninguém escreveu nada. Pode querer dizer que são entradas múltiplas. Nesse caso podiam meter-me um carimbo novo de entrada no país e estava feito.
- Não... este visto é só de uma entrada, não podemos fazer isso...
- Então que fazemos? - perguntei. Ele estava confuso. Primeiro falou em eu ter de pagar algo porque tal situação era um prejuízo para o estado do Congo. “Prejuízo em quê?”, perguntei. Ele desconversou e levou-me a outro escritório onde, após explicar a situação, o seu interlocutor ficou em silêncio, contemplando. Foi quando me ligou a senhora da embaixada em Kinshasa, para me tentar dar o número da cônsul honorária em Brazzaville, altura também em que entrou uma mulher aos berros no escritório. Saí para ouvir melhor a minha compatriota e só vi uma data de gente a entrar atrás da mulher, os berros a subirem de volume e punhos a elevarem-se no ar. Não estava fácil. Quando voltei o pequenito disse para eu esperar lá fora um bocado porque ele precisava de reflectir acerca do que fazer. Foi quando eu percebi que não tinha comido nada o dia todo. Comprei um copo de meio litro de amendoins e fui manjando enquanto falava com o meu irmão. Já que teria de voltar a Portugal, achei que podia fazer surpresa, pelo menos, aos meus pais e à Graciete. Não sabia se ia conseguir, porque imaginava a Graciete a ligar e eu a não resistir não desabafar com ela. Mas, pelo sim, pelo não, dei um toque ao meu irmão, que seria o meu cúmplice, e quando ele ligou discutimos hipóteses. Ele ficou de ver alguns voos na internet e desligámos, para eu ir perguntar ao pequenito como é que era esta VIDA. Ele levou-me para outro escritório e disse que eu deveria pagar um valor simbólico para facilitar a situação e que depois estaria livre. Entra aqui a dialética do princípio, novamente. Noutras alturas eu não pagaria nada. Só que tinha tido o dia que tinha tido e estava entre fronteiras e achei, na altura, que o mais sensato para me desenvencilhar de uma forma que fosse minimamente imediata e confortável era não fazer ondas e pagar. Considero-me uma pessoa de princípios a tal ponto que percebo que muitos dos princípios seja de quem for dependem apenas do quão longe eles estão dispostos a ir para os defender. Salvaguardando raras excepções, acredito que qualquer pessoa possa abdicar de um princípio dependendo da situação que o requer. A única diferença é até quão longe estamos dispostos a ir antes de abdicar deles. Parece uma ideia típica de alguém pobre em ideologia, mas basta pensarmos que quase toda a gente é contra o roubo mas, num clássico exemplo, talvez roubasse medicação necessária para um ente querido se não tivesse dinheiro e, mais radicalmente, quase toda a gente é contra o assassínio mas talvez o cometesse se isso salvasse a VIDA dos seus familiares. Há linhas para tudo. 
 
Dei-lhe dez mil francos, quinze euros, e ele disse que eu podia ir embora e estava tudo bem.
- Então e quando eu quiser sair do país e eles virem este carimbo de saída? - perguntei.
- Não tem problema, não te preocupes... - respondeu. Respostas destas, em África, abundam, e eu sabia mais do que isso.
- Não... não me parece suficiente... imagine que eu compro um bilhete de avião, chego ao aeroporto e eles vêm que, supostamente, já saí do país... vai dar raia!
- Não, não dá nada...
- Mas pode dar!
- Queres que escreva em cima do carimbo que está anulado? Eu escrevo – e escreveu “Annulé” em cima do carimbo vermelho.
- Meta o seu nome, por favor.
- Não é preciso!
- Assim eles podem dizer que fui eu a escrever isso.... qualquer pessoa pode pegar numa caneta e escrever “Anullé” em cima de um carimbo!
- Pronto, está bem... - e escreveu C. Erik à frente.
- Meta o seu número de telefone à frente.
- Não é preciso!
- Então dê-me o número de qualquer maneira. Assim se eles duvidarem eu posso ligar-lhe e o senhor explica-lhes que é verdade. E que é que lhes digo?
- Diga-lhe que você tentou apanhar um barco mas era tarde demais, passava das dezasseis, e teve de voltar a entrar no território e nós anulámos o carimbo de saída.
- Não é mais fácil dizer a verdade? Que cheguei a Kinshasa, não me deixaram entrar, e tive de voltar para trás?
- Não, é melhor dizer o que lhe disse – respondeu. Ia ter de me aguentar sem essa certeza até embarcar.

E estava de volta a Brazzaville. Liguei ao Gauthier, ele ainda estava na garagem, fui ter com ele, passando pelos pequenos campos em cultivo. Precisava agora de um cyber-café para comprar um bilhete de avião para o mais cedo possível. Caminhámos um pedaço com alguns amigos seus que tinham arreado e quando parámos “uns minutos” para esperar por alguém eu decidi ir andando e combinei com o Gauthier encontrarmo-nos no cyber.
Comprei um bilhete de avião para o dia vinte e cinco de Dezembro. De Brazzaville para a Etiópia, daí para a Itália e daí para Portugal, chegando vinte e cinco horas depois. Ah... se tivesse chegado dois dias antes podia, ao menos, passar o Natal em casa. Paciência.

Entrámos num táxi e eu comecei a organizar as ideias.
Foda-se, que dia tinha tido! Primeiro as merdas todas com a Bicicleta ao mesmo tempo em que pensava que talvez pudesse não entrar no Congo-Kinshasa pelo que o Clovis me tinha dito acerca do meu visto tirado no Benim. Depois a resolução com a Bicicleta e a suposta resolução com a entrada depois de ter falado ao telefone com o cônsul. Depois a chegada a Kinshasa e as horas todas de espera e a fatalidade de não poder entrar. Depois os problemas em voltar a entrar no Congo-Brazza. Foda-se!... Um dia inteiro com um nervoso miudinho a remoer cá dentro, como um moinho a dar-me, aos poucos, nos veios do coração, fosse por uma merda, fosse por outra... E tudo em vão. Queimei sessenta ou setenta euros, mais duzentos e vinte e cinco para dois vistos do Congo-Kinshasa, mais seiscentos e noventa euros para regressar a Portugal, dois ou três meses de atraso na viagem e o preço de regresso.

Não estava contente, mas nunca dei por mim em real desespero. Sim, quando me disseram pela primeira vez, que ia te de voltar a Brazzaville, pode dizer-se que agi em desespero na medida em que tentei ao máximo ficar. Mas não me ajoelhei no chão a chorar nem me agarrei às grades com todas as forças que tinha. Fora um desespero controlado, se é que tal existe. Porque a verdade é que, e eu nunca me esqueço disto, eu estava ali porque queria. Tudo o que tinha acontecido tinha acontecido porque eu tinha tido o conforto de poder decidir, um dia, que me ia mandar África abaixo. E todas as outras cenitas que tinham acontecido tinham acontecido porque eu, por mais experiente que possa parecer ser, não consegui antecipá-las. Às vezes rio-me um bocado com isto da experiência de viagem... Acho que a experiência de viagem traduz-me, quase exclusivamente, em não bater mal à primeira com o inesperado... de resto, geralmente, sinto que ando tanto aos tropeções como o José que nunca saiu de casa.

Que dia tinha tido... e que mudança de planos tão radical. A viagem ia ser partida ao meio... o que tinha sido uma possibilidade anteriormente. Quando estava em Lagos, na Nigéria, tinha equacionado voltar a casa dois meses... depois quando estive retido no Benim também... mas insisti, queria continuar. E continuei. Mas depois aconteceu-me isto, e não tive mais solução. E por saber que não tinha tido mais solução, estava tranquilo. O que digo é um bocado incoerente, apercebo-me agora. Porque não tinha como não estar tranquilo, sendo que se tivesse opção e decidisse ir a casa, era porque queria ir, então estava tranquilo. Não tendo opção tive de voltar, pelo que estava tranquilo. Méne, estou aqui a embrulhar-me todo. Talvez aquilo que eu queira dizer é que, não tendo opção, sei que não desisti não subir as escadas, simplesmente fui empurrado borda fora. E já que tinha sido empurrado borda fora, ia mergulhar com estilo, foda-se! Comecei a organizar as ideias no meio daquele engarrafamento infernal, dentro daquele táxi verde. Ia estar, no mínimo, dois meses em Portugal. Ia traduzir o Daqui Ali Asiático para inglês e com as vendas pagar, pelo menos, parte da viagem. O que era algo que eu nunca faria se não fosse a casa, sendo que se chegasse de vez era no Daqui Ali Africano que eu me ia focar. Ia começar já a desenhar um primeiro esboço do Daqui Ali Africano, que permitira uma publicação mais breve após o regresso. Ia tentar ir ao 5 Para a Meia-Noite e promover com força o Daqui Ali. O pessoal da televisão é imprevisível e provavelmente nem responderiam a um e-mail meu, mas o que é certo é que já me tinham convidado com data marcada, só que eu estava quase a chegar à Mauritânia e nunca iria a Portugal de propósito. E ia acabar o “Ventre”! O meu longo e grande sonho desde há tanto, tanto tempo... acabar um romance. Tenho três ou quatro romances inacabados, um deles com quase trezentas páginas... a maldição de novas ideias fez-me sempre saltitar. Mas estou a adorar demasiado o “Ventre” e vou acabá-lo! Sei que sim! Já não estou agora sentado na cadeira de vime na véspera de Natal. Estou num avião entre a Etiópia e a Itália a beber copos de vinho e a ouvir música. E sei que, como quero fazer com que estes tempos em Portugal não sejam tempo perdido, vou acabar o romance... a menos que bloqueie totalmente em termos de ideias. Mas não será por falta de horas em frente ao computador. E eis que, com estas ideias todas, estava completamente na boa por ir a casa! Não vou ao ponto de dizer que estava contente por aquilo ter acontecido, não, que se foda isso, mas como tinha já encontrado como não perder aquele tempo, estava na boa.

E todos estes pensamentos e ideias e projectos eram coroados com a certeza de que voltaria. Sim, voltaria, claro que sim! África revelava-se uma amante misteriosa de personalidade fogosa. Dávamos as mãos, subíamos uma árvore e víamos o pôr-do-sol a beber uma garrafa de vinho que tirávamos de um cesto pendurado num ranco. Os seus cabelos dançavam com a brisa à frente da minha cara, às vezes enganchavam-se nas minhas pestanas sem me magoar, outras vezes agitavam-se pacificamente frente às minhas narinas, imprimindo-me um forte aroma a alperce. O ranco partia e o cesto despedaça-se e ríamo-nos, desiquilibrando-nos um pouco. Descíamos da árvore e com o anúncio da noite despíamo-nos e o dia nascia dentro dos nosso corações o serão todo, até trazermos ao nosso olhar a verdadeira noite onde o sonho reinava. Mas doutras vezes África pedia-me que a encontrasse no meio do deserto às duas da tarde e aparecia só às seis. Eu perguntava-lhe porque tinha demorado tanto e ela reagia como se eu lhe devesse alguma coisa ou tivesse feito algo de mal. Mas eu gostava dela, e tolerava isso. Caminhávamos deserto fora e eu, sequioso, desesperava vendo-a verter água sobre os cabelos, como se eles fossem mais importantes que eu, como se tudo fosse mais importante que eu. Chegávamos à estrada, entrávamos no carro e sentávamo-nos em silêncio, eu a pensar no que teria feito de mal.
Mas eu voltaria, sempre. África tinha as mais variadas faces e se as boas, tão frequentes, me faziam sentir bem-vindo, as más, que apareciam apenas de quando em vez, faziam-me sentir posto à prova, fazia-me sentir que ainda não percebia tudo, que ainda não conhecia tudo, que ainda não me tinha testado o suficiente. E, para me conhecer verdadeiramente, preciso de todo o tipo de novas situações. Não quero conhecer nuances de mim que aparecem derivadas de pequenas variações no nível de conforto que experiencio. Não, que se foda isso. Quando alguém atira a minha alma à parede eu quero ver como é que ela cai. Quero conhecer-me todo e isso só me aparece quando abraço tudo o que pode acontecer em situações extremas. Claro que não forço nada disso... porque nos momentos em que me estou a conhecer tudo o que eu quero é que aquilo não esteja a acontecer, tudo o que eu quero é paz e sossego. Porque sou só um humano que, por mais que tenha algum talento em ver o cómico e interessante das vicissitudes da VIDA enquanto elas ocorrem, quer estar bem...

Por isto tudo me lanço em aventuras destas... Porque sei que o mais provável é eu ter experiências incríveis que me deem a volta à cabeça. E porque sei que sofrer um pedaço é o preço que tenho a pagar. E porque esse preço costuma trazer consigo grandes aprendizagens e sorrisos futuros quando em memória. Foda-se, adoro viajar! Conheci uma italiana que vive em Moçambique e fala português há pouco na fila para o raio-x às bagagens. Sentámo-nos a conversar as duas horas que esperámos para embarcar e ela disse que quando falava nas minhas viagens parecia que os meus olhos sorriam. Gostei de ouvir isso.

Estou a sentir-me bem, méne! Talvez o vinho já esteja a dar cartas para os meus neurónios que não sabem jogar póker, mas a verdade é que, neste avião onde nunca pensei estar, me sinto bem. Ouço Ornatos agora e amanhã vou-te fazer chorar. Pela melhor das razões.

00h00, 6ª, 26-12-14
A voar sob o Egipto, a caminho de ti.


FIM DA PRIMEIRA PARTE
(nunca imaginei que fosse haver duas)



terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A Grande Viagem no Gabão (e a Surrealidade)

Bem... como escrever sobre tudo isto?

Estou sentado na casa em construção onde encontrei o Ivon primeiramente. Cheguei aqui na Sexta-Feira depois de mais uma estafa, mas consegui. Eram já as quase seis horas e encontrei o meu amigo a cimentar o chão. Vi um estandarte sem bandeira e perguntei-lhe se ele era o chefe.

- Bem, sim, sou o chefe... chefe de família, brevemente serei o chefe desta secção de Ayem, já tenho o estandarte, como vês, mas ainda não tenho a bandeira. Precisas de alguma coisa? - perguntou-me o homem de bigode, pera e uma touca vermelha à Tupac.
- Sim, gostaria de saber se é possível ficar convosco aqui esta noite. Venho de Portugal de bicicleta, a caminho da África do Sul, e estou cansado, e já é quase de noite...
- Sim, se quiseres podes ficar aqui. Mas a verdadeira chefe de Ayem está ali uns duzentos metros, se quiseres ir ter com ela e perguntar-lhe, tudo bem, mas se quiseres ficar aqui, tudo bem também – respondeu.
- Pois muito bem, nesse caso fico então convosco, obrigado.
- Porreiro, vou dizer aos miúdos para te prepararem o quarto.

A aldeia estava a trinta quilómetros da próxima vila ou cidade, Lopé, e uns quarenta da última vila por onde eu tinha passado, Junkville. Tinha acabado de atravessar uma ponte que cruzava um grande rio pejado de grandes árvores pelo seu meio. O sol estava cansado e o céu beneficiava disso, dando telas a quem as quisesse. Receando o eminente último sopro do astro perguntei se podia tomar banho num instante enquanto os miúdos preparavam o quarto. O Ivon chamou o Sylvan, apresentou-o como o seu quarto filho, e mandou-o comigo. Descemos a rua cem metros, entrámos por um carreiro à esquerda e demos com o ribeiro. O Sylvan era um rapaz de vinte anos, corpo de futebolista e rosto de rapaz simpático, e tinha já um filho com a filha da chefe.

Depois de tomar banho e assentar arraiais a noite apresentou-se e preparava-me para me sentar fora do meu quarto quando o Sylvan perguntou se eu queria ir dar uma volta. Descemos até à outra parte da aldeia, mais três casas, e mais umas quantas à frente, muitas delas abandonadas. Sentámo-nos meia hora com a chefe, a filha da mesma, que era namorada do meu amigo, um senhor mais gordo e uma senhora mais velha. Estávamos quase de volta, passando por baixo do mangueiro que os putos costumavam fustigar todas as manhãs à cata de mangas para vender a trinta cêntimos quatro quando o Sylvan disse que era um pena eu bazar no dia seguinte, porque iam ter uma cerimónia da qual eu podia fazer parte e que para eles era um prazer que assim fosse. O meu primeiro instinto foi dizer “Pois, obrigado, mas eu tenho de ir...” Estava ainda filado em passar o Natal em Luanda com a Tânia. Mas a viagem, apesar de estar a correr muito bem, não estava a correr com a velocidade que eu tinha previsto, pelo que Luanda era já uma miragem de qualquer maneira. E aquela possibilidade era uma realidade. Decidi então seguir o meu estilo mais habitual e abri-me a essa oportunidade. Não fazia ideia do que era, mas lembrei-me de Ayem Oboukué, quando uma rapariga me queria falar de uma cerimónia qualquer e a chefe não queria que ela mo dissesse. Tinha de ser, no mínimo, peculiar, se era alvo de sigilo.

- Okay... então se não é abuso da vossa hospitalidade, eu gostava de passar aqui a noite amanhã também – respondi.
- Não, não é abuso nenhum, é um prazer nosso – respondeu. Mas, mais uma vez lembrando-me da chefe de Ayem Oboukué, questionava-me se o Ivon estaria aberto também a essa possibilidade.

Quando chegámos sentei-me com ele na sala de estar. A aldeia, apesar de de completamente deslocada, tinha electricidade, e a sala era uma confortável pequena divisão com sofás azuis a toda a volta, uma televisão pequena com alguns canais franceses e outra maior inutilizada numa estante castanha. Um pouco por todo o lado havia fotografias na parede. O Ivon disse-me que era uma espécie de feiticeiro e explicou-me mais ou menos o que se passava nas cerimónias.

- A propósito... - disse eu – O Sylvan falou-me de uma cerimónia que vocês iam ter amanhã... e que eu era bem-vindo... se não fosse um abuso gostaria de ficar mais uma noite.
- Se tu quiseres... tudo bem – respondeu. Disse-me que na cerimónia toda a gente tomava da “Boire Sacrée”, bebida sagrada, e que isso fazia as pessoas verem cenas, cenas essas que eram, ou podiam ser, manifestações do Buti, Deus. Fiquei com um bocado de receio. Falando em termos ocidentais o que eles iam fazer era mandar drogas psicadélicas. Fiquei com receio porque estava num ambiente novo para mim, não sabia o que era ao certo a Boire Sacrée e por isso não fazia ideia do que me esperava. Mas era uma oportunidade única, que talvez não fosse aparecer tão cedo. “Que se lixe, vou alinhar e ver onde isto me leva...”, pensei.
- Tu és capaz de não ver muita coisa... se calhar vais ver umas estrelitas ou algo assim, mas eu é que vou ver...
- Ah, mas eu gostava de ver... - respondi. Se era para ser, que fosse a sério.
- Ai é? Okay, então tu vais ver – respondeu. Foi depois buscar uma garrafa de whiskey, serviu-me um trago e ficámos à conversa um par de horas, contando-me ele das doenças que curara, do pai que tinha morrido há dois anos, e o seu percurso de VIDA.

No dia seguinte, quando acordei sentei-me fora do meu quarto a tentar escrever, mas o Sylvan e o David, seu irmão, apareceram e estava a mostrar-lhes as fotografias do deserto quando o Ivon veio perguntar aos filhos se não havia trabalho para fazer. Era preciso preparar as festividades. Passei as próximas horas até ao almoço com o Sylvan no mato a cortar tocos para queimar e trazê-los para a aldeia e depois no que eles chamavam de Hangar, a última casa que era um salão de festas, um templo, sítio para córtiré, essas cenas todas, a esfiapar palmeiras para as pendurar no tecto com as folhas a cair em bom estilo. O Hangar era, tal como o resto das casas, de madeira, mas aberto na ponta do lado da estrada e aberto por uma porta do outro lado. Por dentro estava pintado em tons rosa e azuis, alguns peixes e rabiscos grossos como cordas dançantes a acabar num círculo, onde afixariam, mais tarde, espelhos. No canto do lado de lá estava uma poltrona, o sítio do chefe, e para a esquerda da mesma um banco branco onde se sentaria o escolhido para as visões, e depois mais uns bancos onde ficava o resto da trupe. À frente dos banco estava o Buti, quatro ou cinco cestos rica e delicadamente decorados cheios de adereços de couro e guizos brancos, penas, peles de animais e toda uma parafernália como eu nunca tinha visto.




Fui descansar um bocado e quando regressei, às três e pico, estava tudo quase pronto. O Ivon disse-me que eu me ia vestir com eles e que para isso tinha de ir ali abaixo comprar um cinto na mercearia. Sem sequer achar estranho uma mercearia vender cintos lá fui com o Sylvan e outro dos quinze irmãos comprar um cinto branco com taxas prateadas, contente com a surpresa de que a experiência ia ser mais à séria. Não fazia era ideia do quanto à séria seria.

De tronco nu com os meus calções azuis o Ivon começou por amarrar-me um grande lenço verde e amarelo à volta da cinta que deu depois a volta por trás e amarrou no fundo das costas. Meteu-me depois uma corda com umas decorações de madeira a tira-colo junto ao tronco, uma touca de tecido vermelho e uma corda com umas missangas e uma ponta a apontar para a frente à volta da cabeça. Enrolou a pele de um animal à volta do meu cinto e deu-me depois um bastão de madeira de palmo e meio com uma cabeça esculpida numa ponta que deveria levar na minha mão esquerda e uma pequena vassoura de um palmo para a mão direita. O resto do pessoal tinha calções vermelhos e no tronco não estavam muito diferentes de mim.

Primeiramente sentámo-nos todos lado a lado, encostados à parede, o Ivon no seu canto de chefe. O Sylvan, que estava numa fase inicial de um processo relacionado com tudo aquilo, ajoelhou-se perante o pai, do outro lado do Buti, comeu uma mãozada do pó que dava origem à Boire Sacrée, passou a mão pela cabeça, disse umas preces e levantou-se. Depois disseram-me para me levantar, pegar num pacote de vinho que estava no meio e passá-lo ao miúdo da ponta. O miúdo de quatro anos esfregava-o de cada lado do tronco, fingia que bebia e passava para a direita, seguindo o pacote assim até ao Ivon. O mesmo se passou com um maço de cigarros, uma cerveja e uma nota de mil francos, que também ia à boca. Depois foi a minha vez de me ajoelhar, foi-me dito alguma coisa, perguntaram o meu nome de família, abençoaram-me e era altura de partir.



 
Seguimos em fila indiana estrada fora, descalços, com dois dos sete irmãos a anunciar a caminhada com urros de cones que levavam e uma sineta. Andámos duzentos metros e metemos para o mato onde assentámos frente a uma enorme árvore com raízes salientes em pirâmide. Fui mandado sentar e à minha frente começou a montar-se um pequeno estaminé com um espelho e algumas bugigangas enquanto o Ivon me espalhava pó talco pelo corpo todo, pálpebras, parte de trás dos joelhos – tudo! Depois de algumas rezas na língua local apareceu um prato com a Boire Sacrée, a substância milagrosa, que era uma mistura do tal pó que eu tinha visto com um líquido qualquer, atribuindo-lhe um aspecto de cevada muito espessa. O pó vinha das raízes de uma planta que eles tinham no quintal. O Ivon foi dando colherzitas a toda a gente menos a mim e, por momentos, pensei que ele achasse que não era boa ideia eu meter-me naquilo. Também não percebia porque é que só eu é que estava pintado de branco.




Até que... percebi.

Ele disse para me levantar e segui-lo. Caminhámos em círculo, com passos ritmados e pequenos, eu atrás dele, e ele virava-se por vezes para me dar uma colherona da Boire Sacrée. Quando eu acabava de comer ele dava-me outra e assim sucessivamente. Depois mandou-me sentar e começou a perguntar-me se via algo. Foi aí que eu percebi. Era eu que ia ver cenas, e só eu! Eu estava de branco porque era o méne que ia ter as visões que os outros depois interpretariam! No dia anterior, quando eu disse que também queria ver, o Ivon deve ter decidido que seria eu em vez dele!

- Olha para a vela, não desvies o olhar, e diz-me se vires alguma coisa - dizia. Mas eu não via nada. “Se calhar sou demasiado forte para isto”, pensei. Passado dez minutos levantei-me outra vez. Mais umas voltas, mais umas colheradas. Sentei-me outra vez. Nada! O Ivon aproximou-se e meteu um cone nos meus ouvidos, perguntando que ouvia.



- O mar?... - respondi.
- O mar? Okay, está a funcionar – respondeu, para minha surpresa, sendo que ouvir o mar num cone é um bocado o que se espera. Às tantas levantei-me uma última vez e desta quase que acabei com o prato. Voltei a sentar-me e ele voltou a dizer para lhe dizer se via alguma coisa. Ia trazendo objectos com padrões, como um pedaço de madeira ou um boneco de missangas, e dizia para olhar para lá sem desviar a vista. Como não estava a ver nada aproximou-se com uma folha enrolada em triângulo e verteu-me o que parecia ser sumo de lima ou algo do género nos olhos para estimular. Doía imenso, mas tudo bem, eu estava todo dentro daquilo, viesse o que viesse! Depois de ele se ter aproximado, perguntado o que via na palma da sua mão e eu ter respondido que via pequenos riachos, comecei a ver padrões nas coisas. Não alucinava, mas ilusionava. Isto é, não via coisas que não estavam lá, simplesmente via padrões nas coisas que já lá estavam. Algumas não tinham sentido nenhum como uma medusa, uma figura humanóide sem sexo ou um cogumelo. Outras eram mais nítidas e significantes como ter visto um homem debruçado sobre uma janela a olhar lá para fora enquanto outro homem olhava para ele sentado numa cadeira a um canto. Nesta o Ivon reconheceu ele e o seu pai e o pessoal rejubilava e gritava “Básê, basê!” com euforia, algo como “Amem”.

Eu sou um céptico. Ser céptico não é não acreditar em nada mas questionar tudo. Tenho cuidado tanto com o que vem ter comigo, questionando a fonte de onde as pessoas souberam tal informação e corrigindo sempre quando as pessoas dizem que em determinado país, por exemplo as pessoas são assim em vez de tendem a ser ou muitas pessoas são, como com o que parte de mim, tentando (por vezes falhando) não falar de coisas que não sei e tendo o cuidado de, se passo algo que que alguém me disse sem verificar, dizer que me disseram que em vez de é assim. Para quem não é céptico, é fácil atribuir explicações e associações a coisas cujo significado não é evidente, associações estas, por vezes, religiosas. Ora em relação a videntes o meu cepticismo permitiu-me ter, neste momento, uma posição de asco por uns, e desdém por outros. Tudo porque já li bastante acerca de tais processos e conheço a história de vários escândalos, mentiras, farsas e embustes, conhecendo também os métodos que são utilizados para ludibriar as pessoas. Alguém que diz a outrém que o filho morto está a comunicar do além para depois lhe extorquir vinte ou trinta euros devia ir preso porque está a mentir e manipular pessoas numa posição extremamente vulnerável. O meu asco é nutrido por pessoas que usam aberta e conscientemente esquemas de manipulação e o meu desdém é nutrido por pessoas que se iludem. Pessoas talvez com baixa auto-estima que veem num pseudo-dom uma maneira de se sentir poderosas ou interessantes.

Em relação ao que se estava a passar comigo no bosque, para mim é simples de explicar. Se eu vir dez coisas, é provável que algumas batam certo com alguma coisa. Eu vi uma medusa e eles adoraram porque tinham uma planta no quintal que chamavam de medusa por a tal se assemelhar. Quem tem a mente aberta e predisposta a acreditar nestas associações, descartará tudo aquilo que não se enquadra e agarrar-se-á com força a tudo aquilo que se enquadra.

Agora com tudo isto... que sinto em relação ao Ivon, que acredita que tem poderes videntes? Não sinto asco nem desdém. Não sinto asco porque sei que ele acredita mesmo naquilo. Não sinto também desdém porque, além de o conhecer, o que não deveria valer nada, ele vive num ambiente completamente diferente do meu, uma cultura incrivelmente distinta da minha, como me aperceberia com força ao longo dessa noite e nos dois dias subsequentes. Agora, que interessa que seja uma cultura diferente? Confesso que não sei ao certo.

Tento não julgar seja quem for. Nem sempre é fácil, mas é o que tento. Na nossa sociedade ocidental do tipo de pessoas que é me é mais difícil não julgar são os videntes e espíritas e pessoas do género. Acredito que ganham a VIDA a enganar os outros e não tolero isso. A cena é que é-me mais fácil não julgar se alguém o faz noutra cultura, porque noutra cultura eu já estou numa posição mais longe de não-julgamento. Eu no Gabão, ou no Benim ou no Paquistão assumo uma posição de observador e de interveniente mais ou menos passivo. Como não sei ao certo como as coisas são, e como não é meu dever ou lugar chegar a um sítio diferente do meu e começar a dizer às pessoas como viver a sua VIDA, parto dessa premissa de agir e ver sem intervir necessariamente a menos que tal mo seja requisitado. Além disto ter os seus limites, naturalmente, sendo que não ficaria passivo se visse um marido a espancar a mulher, implica também manter-me fiel a mim mesmo, o que por vezes é difícil. É necessário aí saber o que dizer, como o dizer, sem mentir e sem fingir acreditar em algo que não acredito.

Assim continuei a seguir com as minhas visões sentindo, aos poucos, um quente a apoderar-se de mim. Vinha aí mesmo a Boire Sacrée. Várias cenas começaram a aparecer e quando havia algo que fazia mais sentido a euforia do pessoal era quase contagiante, o que também me fez perceber como alguém pode gostar de estar naquela posição, pois é uma posição central, importante naquele momento. A dada altura a Gina, mulher do Ivon, estava tão contente com algo que eu tinha dito que me veio oferecer uma nota de quinhentos francos, que pousou à minha frente. O Ivon ainda veio mais duas vezes meter-me gotas nos olhos, para minha má sorte. Segundo ele ajudava a ver, eu imaginava que talvez pela visão ficar turva dar aso a mais ilusões ou alucinações.

O tempo foi passando e, depois de uma torrente de visões, umas com mais sentido que outras, era altura de partir. Levantei-me e percebi que tinha dificuldade em caminhar direito. A partir desse momento não estaria sozinho mais minuto nenhum até à manhã seguinte. Fosse para ir apanhar ar ou para ir ao quarto-de-banho, tinha alguém sempre, sempre comigo, o que na altura era um bocado inconveniente mas que, agora, acho que é um pormenor bonito da tradição, sendo que me pareceu evidente que não era por ser eu, mas pelo facto de quem toma a Boire Sacrée ser dado a quedas e acidentes do género.
Cortei o dedo do pé um bocado a subir a ladeira que dava para a estrada, mas tudo bem. Estava a curtir mas o curtir ia passar rapidamente. Quando chegámos à aldeia fomos para o templo e o pessoal dispersou. Eu fiquei sentado no banco do vidente com o espelho à minha frente com um ou outro sentados à minha beira e eu não sabia bem que se passava. Sabia sim que me sentia a explodir de calor. Pedi para ir apanhar ar e o David, o único de todos os irmãos que nunca foi à escola, veio comigo. Sentámo-nos nuns troncos ao lado de onde costumavam ferver a água e eu tentava manter a tranquilidade. Sentia um desconforto estranho e novo. O mundo não era exactamente plano e o pessoal queria que eu visse cenas. Sentia-me um bocado pressionado com o David a dizer “Ali, olha p'ráli, que é que vês?”, apontando para as nuvens ou para as folhagens de uma árvore. Quando não era ele era alguém que passava e mandava o bitaite ou o Ivon, que me dizia pela trigésima vez para lhe dizer se visse alguma coisa.

Eles tinham anunciado a cerimónia e esperavam pessoal a partir das sete. Percebi que era por isso que o pessoal estava disperso e havia um clima de paciência a transitar para a impaciência no ar. Às tantas voltei para dentro e sentei-me no banco do vidente. A moca ia aparecendo de outras formas e as coisas assumiam um tom um bocado de bizarro. Estava escuro, havia velas um pouco por toda a parte, tudo era um bocado pesado. A música que vinha de uma aparelhagem era rápida de um instrumento de cordas africano que parece uma guitarra em forma de pequena harpa e inquietava-me. O resto da família ia aparecendo aos poucos quando o Ivon me levou para uma pequena sala contígua ao templo. Assustava-me um bocado porque era pequena e tinha alguns artefactos que, apesar de, conscientemente, eu saber que a onda deles era boa, me lembrava de magia negra. Afastava tais pensamentos. Ou tentava. Aí sentámo-nos com mais um irmão e ele ia tocando esse tal instrumento enquanto eu ficava calado, tentando manter a calma e estar tranquilo. Apetecia-me fechar os olhos mas sabia que não dormiria. De vez em quando ele dizia-me para me levantar e eu tinha de fazer o que ele dizia, não fosse ele o chefe. Dizia-me para imitar o seu filho e saltava um bocado e baixava-me, e saltava. “Isto refresca-te. Senão adormeces. No último salto cais com força com a palma dos pés e punhos cerrados!”, dizia. A verdade é que me custava tanto fazer aquilo como voltar a Portugal agora de gatas, mas no final sempre ajudava um pouco. Isto tudo sempre com, claro, a pressão de ter de ver coisas que não estavam a aparecer com a frequência que eu imaginava desejada, com a excepção de um anjo que vi num calendário. Fiquei um bocado aliviado porque sabia que era algo que o Ivon ia usar mais tarde.

Quando voltámos ao templo já lá estava a família toda. Sentámo-nos todos em fila e ora esperávamos em silêncio que eu visse alguma coisa, ora o Ivon dava uma palestra sobre o Buti, ou sobre como estava destinado eu estar ali com eles, ora ouvíamos música, ora se cantava. Foi mais ou menos nesta altura que o meu estado de espírito deu uma grande volta. Para pior. Os meus pensamentos começaram a formar-se à volta de conceitos exasperantes. Não estava no meu meio e não estava confortável e isso talvez me fizesse pensar em demasia. Pensava em morte. Muito. Muito mais do que alguma vez, e com muito mais força do que alguma vez. Abanava o cérebro para expulsar aquilo que se avizinhava mas não conseguia. Por vezes colava a vista em alguma coisa como sugerido e tinha algumas visões, e falando sobre elas afastava um bocado a mente de tais pensamentos, o que me fez pensar que, se estivesse com amigos e envolto em conversas, talvez a minha mente não navegasse para tal morbilidade. Mas eu estava ali, e era quando estava em silêncio que vinha tudo com uma força que me deixava desesperado e extremamente assustado. 
 
Não sei a ordem dos pensamentos que me ocorreram, mas não conseguia afastar a mente do facto de que eu ia morrer. E se agora em que escrevo isto eu o sei na mesma, não deixo com que tome conta de mim e tinja tudo de negro. É um facto que eu não posso alterar, e tudo o que eu posso fazer com a minha VIDA é vivê-la ao máximo, mesmo que nada signifique nada. Mas naquele momento era como areia movediça. Eu ia morrer e depois não ia haver mais nada! A VIDA era uma casualidade estúpida que ia acabar. Pensava em como seria se eu morresse brevemente. Pensava na minha mãe, no meu pai, a saber da notícia, a saber que eu, uma pessoa tão activa e apaixonada pela VIDA tinha desaparecido para sempre e a última vez que eles me tinham visto tinha sido há quase um ano. Pensava na Graciete a rebentar com tal notícia, pensava em conhecidos. Pensava em pessoas que não vejo com frequência mas que se nutrirem carinho por mim, como a Nazaré. Pensei em alguém a chegar à loja e dizer “Sabes quem morreu?... O António Pedro...” Pensava nas pessoas a darem a notícia às minhas pessoas próximas e às pessoas que de mim só sabiam que era “aquele gajo que gostava de viajar”, pensava no meu corpo morto dentro de um caixão e as pessoas vestidas de negro. Pensava na minha mãe agarrada ao meu corpo aos gritos como fez quando viu o meu avô morto pela primeira vez. Eu ia morrer, eu vou morrer. Mas naquele momento tudo parecia tão real que me rebentava o cérebro. Não achava que ia morrer já mas pensava nessa possibilidade como se fosse provável. E se, pensando na possibilidade de morrer já me focava em como isso seria vivido por quem ficasse, quando conseguia afastar um bocado o tempo e pensar no conceito em geral não me sentia muito melhor porque, fosse aos trinta, fosse aos setenta, eu ia desaparecer para sempre, e essa noção alastrava pelo meu corpo todo e queimava tudo, deixando a minha alma com falta de ar. Pelo meio, falava comigo mesmo. “Eu ainda estou aqui”, pensava, não me referindo a ainda estar vivo, mas a ainda estar em mim, na minha mente. Não estava completamente controlado pelo que tinha tomado. Mas era como se visse o meu eu fechado numa caixa de vidro de onde o som não vinha, aos murros na parede, tentando sair e tomar conta do meu outro eu, mais negro, que me ocupava naquele momento. Depois pensei no Kurt Cobain e pensei em pessoas que se suicidavam. Esse meu eu mais negro nunca achou que tal era solução para nada, mas naquele momento pensava em como teria sido para ele, para o Hemmingway. O que levaria alguém à potência do suicídio? Parece que percebi, pela primeira vez, o que realmente é o suicídio. Somos tão inundados com tudo ao mesmo tempo que às vezes parece que percebemos um pouco de quase tudo mas nenhuma totalidade de nada, e eu naquele momento estava a caminho de perceber o suicídio. Percebi muito mais ao longo das horas seguintes quando a minha mente viajou da percepção da minha morte para a percepção da morte dos meus entes queridos. Entre os quais, especialmente, a Graciete. Não queria mas só pensava em como seria se a Graciete morresse e tal visão, imaginar o seu corpo sem VIDA deixava-me, naquele momento, completamente derreado. O medo da morte, seja ela minha ou de alguém meu, espalhava-se pela minha alma e chegava já ao ponto de sentir uma forte bola de adrenalina rebentar no meu peito, como se estivesse à beira de um precipício e tivesse de saltar. Acho que nunca me senti tão mal. De vez em quando conseguia pensar noutras coisas e esforçava-me, dava tudo o que tinha, para ficar com a mente aí. Tentava ver coisas, tentava partilhar o que via, mas rapidamente voltava ao mesmo. Pensava num amigo do meu irmão que morrera, no filho dos vizinhos dos meus tios que morrera aos dezoito e pensava naqueles pais. Também aí, pela primeira vez, me apercebi, mais ou menos, do que será perder um filho, ou pelo menos perder um ente querido. E depois voltava à Graciete. E naquele momento achava que, se tal acontecesse, eu não seria capaz de viver mais. Não é o que sinto agora. Se tal acontecesse, por mais que me destruísse, não me mataria. Mas naquele momento eu sentia que não conseguiria mais nada, que tudo acabaria, tal era o desespero e o medo que sentia. Tudo o que eu via, tudo aquilo em que eu pensava tinha diante de si um grande filtro que retirava a alegria a tudo o que eu conhecia. Tudo porque no final, passe-se o que se passe, havia a morte. Pensava no que me espera com a Graciete, toda uma VIDA, e pensava que rapidamente seria só memórias e um de nós morreria. E depois o outro.

Queria sair mas não conseguia. Ia escorregando cada vez mais pelas areias movediças e tudo o que me ocorria era negro e terrível. E a bola de adrenalina que me ardia era tão forte que tinha medo de ficar assim para sempre. Pensava em pessoas que tinham tido más viagens (trips) e que posteriormente tinham mudado um pouco com isso, e tinha mais um medo, desta feita o medo de morrer até antes de expirar.

Algures pelo meio, num momento de sanidade mais normal, tive uma ideia que me ficou vincada. Ia saltitando entre pensamentos de morte de outras pessoas ou da minha mesma, e numa altura em que pensava sobre o facto de um dia deixar de existir, tentei comparar isso com a perda de outra pessoa. “Na maior parte das vezes, quando alguém morre, as outras pessoas fazem o luto, e depois, de certa forma, habituam-se”, pensava, “Se calhar o que eu tenho de fazer, depois de me aperceber que vou realmente morrer, é fazer o luto de mim mesmo antecipadamente, sendo que é a única maneira de o fazer. E depois habituo-me”. E não sei se foi o que fiz naquela noite, ou se é algo que tenho vindo a fazer, ou se é algo que farei por mais algum tempo. A verdade é que há muito tempo que isso me ocupa. Não de uma forma tão exasperante como a desta noite, nunca dessa forma, mas por vezes dou por mim de ombros um pouco caídos quando consciente da minha não-existência que espreita ao virar da esquina. Como tenho ferramentas mentais que me permitem lidar com isto saudavelmente, não é algo terrível. No fundo, posso até dizer, com algum grau de certeza, que isso é uma das coisas que me permite viver mais da VIDA.

As horas iam passando e eu tentava aguentar até à meia-noite. O Sylvan tinha-me dito que aquilo durava até às sete da manhã, mas certamente ele estava a exagerar, nunca poderia ser tão longo. Pelas dez o Ivon, que tinha mudado de roupa para um longo robe branco com rebordos verdes tinha-se já apercebido que ninguém viria e largou, de si para si “Tudo isto para ninguém?...” Eu fiquei contente com a sua desilusão. A última coisa que eu precisava era de mais sete ou oito ménes a olharem para mim, de cerveja na mão, a perguntar o que é que eu via. Mas, a sorte de ter uma família tão grande é que não é preciso nenhum convidado para se ter uma festa já bem cheia.

Começou a chover e tivémos de nos mudar para a casa em construção onde tinha encontrado o Ivon pela primeira vez. O pessoal levou tudo – os sofás, todos os cestos com o Buti, algumas folhas de palmeira, a aparelhagem e os djambés. Lá, sentámo-nos com uma disposição semelhante, o Ivon num canto, eu a seguir a ele, os restantes homens, e as mulheres sentadas em sofás, em silêncio, à frente. Admirava como toda, toda a família estava ali, desde a irmã mais velha doente à mais recente criança, a filha do Ivon com alguns meses. Baldar-se não era opção. Agora cantava-se com força. Os rapazes ao meu lado tinham um tronco de bambu no chão e cada um tinha duas baquetas. Foi aqui que comecei a ter outro tipo de pensamentos com força, desta feita bonitos e que mudaram a minha percepção do Homem. Estava a olhar para eles a cantar. A lua já não emprestava luz nenhuma e o que se via era com o auxílio de um tronco que ardia no meio e algumas velas. Olhava para eles e pensava no investimento de cada um e do Ivon em particular em manter aquelas tradições. Olhava para as mulheres, agora em pé, a acompanhar a música com um “oéoéooo” e de repente tive outra visão, mas esta mais dentro de mim e sem vir com a Boire Sacrée. De repente consegui ver o Homem primitivo, consegui ver aquelas tradições a surgirem, consegui ver a importância delas, sendo que gerava um sentimento de pertença fundamental à condição humana e eram também um bom veículo para aprendizagens, fossem elas de organização, de respeito ao mais velho ou da VIDA em geral, como os conselhos que o Ivon ia dando ao longo da noite, todos eles sensatos. Conseguia ver tudo. Olhava para trás no tempo e conseguia ver os primeiros homens a surgir, algures em África, e a começarem a aprender. Aprender! Aprender! Vi os primeiros homens a caírem de desfiladeiros e os outros a aprenderem que andar nas beiras dos mesmos era perigoso, vi os primeiros homens a experimentar, por acidente, elixires novos que lhes provocavam visões e, na ausência de ciência, assumirem algo de religioso, vi a religião a surgir. Naquele momento não tinha dúvidas de que a religião assim tinha surgido. Vi a religião a surgir com questões de “Que andamos aqui a fazer?” e a cimentar-se com força com as primeiras pessoas que começaram a ter visões. Vi os primeiros homens que viram o fogo pela primeira vez. Imaginei-os sentados num canto qualquer e ver um raio que deixou um árvore a arder. Imaginei as suas conversas. Vi alguém a acordar numa gruta e ver um feixe de luz projectar imagens na parede pela primeira vez. Via tudo isto, percebia tudo isto! Via o Homem a migrar, aos poucos. A entrar pelo Médio Oriente, a espalhar-se pela Europa, Ásia, a adaptar-se ao seu meio ambiente, a mudar fisicamente. Sempre, pouco a pouco, sempre a andar, sempre a mudar, sempre a aprender!

Nós sabemos muitas coisas em teoria mas, mais uma vez, somos tão inundados com tudo que, muitas vezes, não as sentimos verdadeiramente. Naquele momento eu percebi, e senti com força, que todo o Homem que já existira, existira no pico do seu tempo! Até então eu pensava no passado e sentia-o sempre como um caminho, algo que tinha tido que acontecer para que o presente agora pudesse existir. Mas como se não tivesse realmente existido! Como se não passassem de histórias que vamos ouvindo. Pensei que, há cento e vinte e cinco anos atrás, ninguém que hoje está no mundo existia! E isso foi avassalador! Surgiu em mim uma profunda admiração pela humanidade. Para o melhor ou para o pior, a humanidade é espetacular! Andamos aqui todos aos tropeções há quase duzentos mil anos, sem ninguém saber bem porquê, mas vamos seguindo em frente! Juntámo-nos em grupos, adquirimos, formamos culturas, vamos avançando. Guerras, tempestades, calamidades, morremos aos milhões de uma só vez em alguns momentos, mas seguimos em frente! Aparecem gajos como Jesus ou Buda que mudam tudo para biliões de pessoas durante mais de mil anos, ficam na história como mais ninguém. O resto das pessoas incorpora os seus valores, os valores são deturpados, atrocidades são cometidas, e o Homem segue em frente! Todos os dias algo a acontecer, todos os dias a mudar, aos poucos! Pensei em mim e de onde venho, e senti um orgulho e prazer enorme em fazer parte dessa mudança. Pensei no tempo dos meus avós, em que o homem era o chefe de família e em como isso agora está a mudar. Pensei nas bruxas, nos homossexuais, pensei em todos os grupos de pessoas que já sofreram injustiçadas e pensei em como, aos poucos, em alguns lugares, isso vai mudando. Pensei em más mudanças, em leis que voltam ao passado e, por mais que as deteste, não conseguia não as achar interessantes! Percebi que fazia parte disto tudo e, ao mesmo tempo, parte de nada, porque o meu papel em tudo será, provavelmente, insignificante. Aqui resvalava novamente um pouco para o desespero. Queria significar algo, mas o eu que estava fechado na caixa conseguia gritar alto, tão alto que eu o ouvia dizer que isso era o meu ego falar e que, no fundo, eu faço parte dessa mudança porque eu sou, por exemplo, uma das pessoas que luta pelo direito dos homossexuais, por uma mudança na cultura do “eu é que sei e os outros que não fazem como eu estão errados”, por uma mudança na tradicional família onde o homem é o chefe, entre outros vários factores. Tudo isto ia aparecendo e desaparecendo e evoluindo na minha mente, pontuado com observações dos meus irmãos a dançar, esporádicas visões e vários pedidos das mesmas por parte do meu pai espiritual, como o Ivon se intitulava desde o episódio no bosque.

Às tantas cheguei a outro plano mental, desta feita tão complexo que hoje não consigo descrever com exactidão. Como que me apercebi da individualidade de cada pessoa, ao mesmo tempo questionando até que ponto nós temos mãos em nós. Acredito sempre que somos os agentes do nosso destino e podemos escolher mudar. Só não sei se essa escolha é uma escolha propriamente dita. Pensei no meu nascimento, e em como não tive opção em relação aos meus pais, que me ensinaram as primeiras coisas. Pensei no meu código genético, que manipula como eu reajo e reagi com tais aprendizagens e em como eu também não o tinha escolhido. Misturei depois estes dois conceitos e tive o meu primeiro eu, de algures à volta dos dois anos de idade. Esse eu era fruto de casualidades que eu não escolhera, e o meu eu de hoje é fruto do desenvolvimento desse eu ao longo dos tempos. De repente via-nos a todos como pessoas que “vieram assim”. Pensava na Graciete, no Petiz, no Remy e em como cada um tinha “vindo assim”. Depois pensava em mim e nestas pessoas todas e em como cada pessoa é uma pessoa no seu próprio sentido de ser, tão imersa em si mesma como eu em mim. E comecei a sentir-me extremamente só, porque sentia que ninguém conhecia realmente ninguém, e desejava ardentemente poder, um dia, partilhar a minha consciência com alguém durante algum bocado, como se essa fosse a única maneira de conhecer alguém. Pensava em todas as coisas que acontecem quando eu não estou a ver e apercebi-me, mais uma vez, da minha insignificância.

As horas iam passando e eu ia resistindo. Por volta das quatro da manhã os homens levantaram-se todos e fomos para o templo. Lavámo-nos à volta de um bidão de água e eu achei que aquilo tinha acabado. “Consegui!”, pensei. Enganado, enganadinho. Entrámos no templo, sentei-me no chão encostado à parede a tentar descansar e a sonhar com a paz que viria com a sobriedade quando reparei que os rapazes mudavam de traje. Vestiam peças com guizos e espalhavam também pó talco por todo o corpo como fora feito comigo anteriormente. O Ivon aproximou-se e voltou a fazer o mesmo comigo. Ainda não tinha acabado. “Tudo bem, eu consigo!”, pensei. Meia hora depois estavam todos prontos e decorados, uns com penas no cabelo, outro com uma peruca, outro com um gorro que parecia para ir às abelhas, todos com uma espécie de caneleiras vermelhas com guizos, outros também com tais objectos nos tornozelos. Quando estavam prontos voltámos à casa de onde viéramos.











 
A fome fazia-se sentir mas não podia comer. O Ivon queria que eu continuasse a ver coisas e a comida ia afastar a Boire Sacrée. Chegou a uma altura em que toda a gente tinha de dançar. Apesar de querer estar no meu canto a tentar controlar a minha mente, ao mesmo tempo admirava como ele não me dava abébias e eu tinha de fazer parte de tudo. Primeiro levantou-se o David e foi para o meio, onde um aglomerado de vimes da grossura de um balde ardia com força. Pegou numa tocha e, ao som dos batuques no tronco de bambu e do djambé começava a dançar com força, como se tivesse pequenos tremores de terra em cada poro da pele, agitando vigorasa mas cuidadosamente a tocha, sempre à volta da fogueira. A meio, deitou-se no chão, gatinhou até aos pés do pai e tocou com a língua no dedo grande do mesmo, elevou-se a joelhos, o pai pegou-lhe nas mãos e passou-as pela sua cinta e o rapaz deu meia volta e voltou à dança. Assim se foi passando, um atrás do outro, com a diferença de que dois deles, talvez imbuídos do espírito da cerimónia desapareciam no final com a tocha, iam correr dar a volta à propriedade e voltavam, como se se tivessem ido anunciar ao mundo. Eu ia-me sentindo a ir e vir da minha moca. Lembro-me de pensar talvez oito vezes “Okay, estou a ficar melhor”, apenas para depois vir uma nova vaga de mal estar, seja físico ou de pensamentos. Porque estes pensamentos ocuparam-me a noite toda, e não consigo dizer com precisão que neste momento pensei na morte, naquele pensei na individualidade, e por aí fora. Sei sim em que pensei e admiro-me é com a precisão com que posso descrever o que me passou pela cabeça. Tivesse sido uma bebedeira, talvez um terço ficasse pelo caminho.



 
Quando chegou a minha vez de dançar, deixei-me levar. Saltei, agitei, rodei. Cansei-me mas entreguei-me ao ritmo. Ajoelhei-me, toquei também com a língua na ponta do dedão do Ivon, levantei-me, dancei mais e no fim, tal como os outros gritei “Bokáié!” para prazer de toda a gente. O Ivon, num momento de silêncio, disse “Estão a ver, os brancos também sabem dançar!” No final quase tombava mas passado um pouco sentia-me melhor. Às vezes o Ivon falava da Boire Sacrée e do que faltava fazer e eu sentia um medo infantil. Não ia tomar mais, isso era garantido. Só que queria fazer as coisas como a tradição mandava. Mas não ia tomar mais. Já me tinha entregue de corpo e alma, quase literalmente, a tudo o que me rodeava nas últimas horas e isso tinha-me custado, e não o voltaria a fazer de imediato só para agradar ao meu anfitrião. Não voluntariamente, pelo menos... Porque o Ivon já me tinha enganado. Quando estávamos no quartinho contíguo ao templo tinha-me dado algo. Perguntei o que era e ele disse que era “medicamento”. Confiando, tomei. Mais tarde disse-me para comer uma banana. Eu disse que não queria mais Boire Sacrée e ele disse que não tinha. Tinha. Meia hora depois disse-me para comer uma folha enrolada em triângulo mas que não podia abrir.
- Não, não como sem abrir – respondi.
- Anda, come, à confiança.
- Pois, mas eu não confio em ti. Porque há pouco mentiste-me. Por isso agora se queres que eu coma essa folha tenho de a desdobrar – e andámos assim cinco minutos, até que ele a desdobrou. Ele dizia que não tinha nada, mas eu via uma bolita branca. Pegava na folha, via-lhe as mãos, olhava para o chão, e não via nada. Já estava a alucinar com o medo da Boire Sacrée!

Entre as danças, como o Ivon insistia com as perguntas acerca do que via, decidi ser mais aberto em relação a tudo e comecei a desbobinar. Não esperava já ver um padrão. Se via qualquer coisa que pudesse assemelhar-se a outra coisa qualquer seguia com isso e depois construía uma estória. Às vezes, quando envolvia uma pessoa qualquer, ele dizia-me para lhe perguntar o nome. Mas eu não conhecia os nomes na língua deles, pelo que nunca acertava em nenhum. E foi quando ele se debruçou sobre mim, a sua cara a um palmo, e disse “Olha para mim, que é que vês?” que a rotina deu uma volta. Como ele tinha a cara pintada de branco com um círculo negro à volta do olho, eu vi um mimo. Depois de me levantar e explicar o que era um mimo ele fez-me dar a volta a toda a gente e dizer o que via neles. Houve risadas, como quando eu disse que via no David, o único que nunca fora à escola, um professor, e houve choro, quando eu disse ao Pierre, um miúdo de dez anos, que via um pescador. Só me apercebi depois de dar toda a volta. O puto tinha-se levantado para eu o ver bem e a verdade é que ele me lembrou um pescador. Quando eu o disse toda a gente desatou a rir e a gritar porque, ao que parecia, o puto adorava a pesca. Mas o puto sentiu aquilo como uma sentença! E quando eu me apercebi disso senti-me um bocado mal, questionando se estaria a levar aquilo longe demais. Mais tarde falei com ele. “Tu podes ser pescador e podes ser tudo o que tu quiseres ao mesmo tempo. Eu tenho amigos que são médicos e professores, e são também pescadores! Tu é que sabes aquilo que vais ser, não sou eu!”, disse-lhe, metendo-me no meio quando o Ivon dizia algo semelhante. Como com outras visões, se eu dizia algo que não tinha nada a ver o pessoal achava piada, mas se eu por acaso acertava com algo o pessoal flipava. A visão mais nítida que tive foi quando fui aliviar-me lá atrás.

- Olha para ali, vês alguma coisa? - perguntou o Ivon, apontando para a escuridão.
- Não, não vejo nada...
- Eu vejo... um grupo de pessoas... não vês?
- Eu... eu vejo um túnel! - respondi. - Espera... está em andamento. Vejo um carro, como se fosse um desenho animado, a sair do túnel! Está agora na cidade e vai com força, vejo as casas a passar ao lado! - e via tudo aquilo a duas cores, mas nitidamente!
- Nesta altura há outro processo... - disse-me o Ivon quando voltámos para dentro.
- Mas eu não quero tomar mais Boire Sacrée... estou com alguma dificuldade – respondi.
- Eu sei. Lembras-te há pouco quando viste um barco a desembarcar na América... duas culturas que se encontravam?
- Sim.
- Quando essas culturas se encontram, como nós e tu, tem de ser um bocado de cada vez. Um bocadinho aqui, outro ali – respondeu. E, sabendo que não me seria pedido que tomasse mais nada, melhorei um bocado. Perdi aquele medo infantil e senti-me mais em casa. O sol ia aparecendo e eu ia-me sentindo melhor. Dançámos mais, cantámos mais, e voltámos ao templo. Aí foi a vez das mulheres dançarem. Nós estávamos sentados e elas em pé do lado esquerdo. Vinham ao meio, bambuleando a anca, e voltavam ao sítio. Ouvíamos música, cantávamos. Já era de dia. Sete, oito, oito e meia. Íamos todos aligeirando e a minha mente descansava. Sim, tinha conseguido. - Ainda sentes a Boire Sacrée? - perguntou-me o Ivon.
- Não... acho que não. Foi difícil, pá, muito difícil... E peço desculpa se vocês estavam à espera que visse mais coisas... é que eu estava a batalhar um bocado. Espero que não tenham ficado tristes...
- Não, nada disso. Ficámos foi muito contentes por teres estado aqui connosco, por teres visto isto, por teres presenciado isto – respondeu, para toda a gente ouvir, que concordava, dizendo que sim com a cabeça. E eu, como me sentia em relação a tudo aquilo? Ainda tinha de assentar definitivamente para descobrir.

Apareceram duas pessoas quando passávamos pela cerimónia´de encerramento. Mais umas danças, desta feita tranquilas, mais umas rezas. O Ivon estava sentado e o Sylvan conduzia-nos. Fiquei com a impressão da última parte ser assim para servir de ponte para o mais novo aprendiz, que futuramente guiará os acontecimentos. “Acabou”, disse o Ivon. Acabou.

Já não tinha de estar acompanhado. Peguei numa cadeira e saí cá fora. Como me sentia com tudo aquilo? Sentia-me bem, e sentia-me contente por ter passado por tudo o que passara. Tinha ido ao Inferno e regressado sem mazelas. Foi o próprio Ivon que me ofereceu a metáfora da areia movediça, momentos antes. “Eu sei que é difícil da primeira vez... sentimo-nos como se estivéssemos em areia movediça, sempre afundando, afundando. Mas no fim sentimos o pé outra vez, e já não afundamos mais”. A morte já não se colava a mim mas ainda pensava nela, desta feita voluntariamente para poder comparar o estado em que estava com o estado em que estivera. Sim, estava de volta à paz de saber que tudo o que tenho a fazer é viver. Acho que o que passei nessa noite foi uma parte importante desse luto de mim mesmo que se tem de fazer. Quem não pensa nestas coisas não precisa do luto. Quem pensa nestas coisas precisa do luto da sua própria morte para poder viver com mais força, talvez. Não digo que toda a gente deva experimentar a Boire Sacrée para isso, mas foi o que se passou comigo. Na generalidade não aconselho nem desaconselho a Boire Sacrée porque é algo potente demais para eu ter esse tipo de responsabilidade na VIDA de outra pessoa. Mas, mais em particular, desaconselho a quem não se sinta tão forte mentalmente ou talvez a quem tenha passado pelas coisas que eu receava passar, como a morte de alguém querido. Talvez ajudasse, talvez fosse destruidor.

Aprendi muito com esta experiência, e mudei um bocadinho. Não sou leviano com afirmações destas, mas é verdade. A minha percepção da Graciete mudou. Senti, e percebi que, mais do que o amor da minha VIDA, ela é o rochedo da minha VIDA, e o amor que sinto por ela é parte daquilo que faz de mim quem sou. Não dependo dela para estar bem. Se nunca a tivesse conhecido não creio que fosse ser um infeliz ou um fraquito. Mas o que é certo é que a conheci e só posso falar com certeza do que daí adveio. E essa certeza é que a sinto como a grande pessoa fulcral da minha VIDA. Mais uma vez, isto pode parecer óbvio, afinal de contas namorámos há quinze anos... Mas, nesta noite, eu senti tudo de uma forma que não tinha sentido antes.

Aprendi acerca do Homem. Ninguém me disse ou explicou nada, mas eu aprendi a beleza de todo o nosso processo conjunto. E isso liga-se a tudo o que passei com a minha própria morte. Se, por um lado, a consciência da morte nos pode fazer viver a VIDA com mais intensidade, por outro a minha descoberta de amor pela humanidade fez-me ver com melhores olhos a minha própria VIDA e a recear menos a morte. Pois apercebi-me que já é um privilégio enorme poder fazer parte disto tudo, especialmente se fizermos, como eu creio fazer, por mais insignificante que seja, parte de uma mudança qualquer que vejamos como positiva.

Redescobri o amor pela aprendizagem e isto fez-me mudar em duas vertentes. 
 
Tendo visto a humanidade a aprender aos poucos, vi-a depois como uma pessoa e isto fez-me amar mais cada pessoa individual do início ao fim, da nascença à morte. Dantes não tinha grande afecto por bebés. Gostava de crianças mas gostava mais quando podia falar com elas e trocar ideias, por simples que fossem. Não achava os bebés interessantes, simplesmente. Mas, e isto foi já no dia seguinte, quando olhava para a bebé do Sylvan com um pauzito na mão a tentar bater-me com ele na palma da mão, achei aquilo incrível. Via a miúda a fazer toda a força do mundo para trazer o pau de trás das costas, ao mesmo tempo tentando coordenar para me acertar, e achei aquilo das coisas mais belas que já tinha visto. E isto porque passei a ver um bebé como uma pessoa em potência, em vez de um corpo sem grande objectivo nem ideia. Comecei a ver um bebé como alguém que ainda não sabe nada, simplesmente, cabendo-me a mim, e a todos nós, ensiná-lo, como connosco fizeram.

E passei a ver-me a mim mesmo, e a todos nós, como esse bebé, passado muito tempo, e senti uma sede enorme de aprendizagem. Não tenho de parar de aprender, nunca! É certo que a minha VIDA se guia um pouco pelas viagens e isso, em si, é uma grande aprendizagem. Mas agora sinto uma vontade enorme de aprender a tocar guitarra, a cozinhar em condições, a fazer móveis, a melhorar o meu francês, sei lá, aprender tudo o que possa! Aprender a fazer coisas! E isso deixa-me feliz. Sinto-me a caminho de qualquer coisa, por mais incerta que seja e isso é um sentimento incrível!
Finalmente, aprendi acerca da individualidade de cada um. Vivemos a nossa VIDA tão imersos em nós mesmos que às vezes nos esquecemos que ainda há nascer do sol quando nós estamos a dormir. Vivemos a VIDA demasiado como se fôssemos os actores principais. É natural, tudo bem, afinal de contas vemos as coisas com estes olhos apenas. Mas a forma como eu senti a individualidade de cada um trouxe-me uma certa humildade. Não penso hoje, como senti na altura, que estamos todos sozinhos. No fundo, sinto até o contrário. Foi a aprendizagem mais estranha que retirei nessa noite, sendo que é um pouco adversa daquilo que me atravessou que atravessou na altura em nível de sentimentos. Mas está aqui de qualquer maneira, adversidades à parte...

Não estamos sozinhos.