sábado, 21 de junho de 2014

Carta

Amo-te.
                
Por me deixares ser eu sem me culpares disso. Amo-te por me permitires que seja teu sem que alguma vez me tenhas tido realmente. Amo-te por deixares a minha alma voar para onde quiser e por teres a calma certeza de que para onde voarei no final será sempre para ti. Amo-te porque nunca gritaste comigo e por eu nunca ter sentido vontade de gritar contigo. Por não nos agarrarmos a clichés nenhuns e por vivermos o nosso amor da maneira como queremos. Por saberes, no teu âmago, que o máximo que terás de mim advirá da consequência de nunca me exigires nada.
                
Pela tua calma e pelo teu bom senso, pela tua bondade e pela tua luz. Amo-te por teres aquele olhar que só eu posso ver, acordando no Caramulo naquela manhã, ou por aquele sinal que me fizeste em Lisboa naquele hostel na baixa. Amo-te por te dizer que tens uma característica engraçada e me pedires para não te dizer qual é para a poderes continuar a fazer genuinamente. Amo-te pela tua leveza e por me deixares ser um namorado que nunca revirou os olhos a falar na namorada.
                
Não há sítios como tu.
                
Não há viagem nem epopeia nem façanha que eu possa fazer que se aproxime de ti.

O meu maior feito foi ter-te feito apaixonar por mim.

21h40, 6ª, 20-6-14

Duekoué, Costa do Marfim

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Um Tuga Por Aí

Perder fora de casa é fodido. Já tinha perdido fora de casa. Duas vezes. Mas nunca assim. Em 2010 estava a trabalhar, em Birmingham. Pedi às minhas clientes se podia ver o jogo à noite. Elas costumavam ver outras cenas quaisquer, tipo Glee ou uma série sem jeito do género, mas acederam. Afinal de contas era o mundial. Perdemos 1-0, mas era mais ou menos esperado perder, jogámos bem, perdemos contra uma grande equipa e, na verdade... não estava fora de casa no sentido estrito do termo, sendo que estava num ambiente que também era meu.
                
Em 2012 estava no mesmo país, dessa feita em Brighton. Tive alguns dias de folga e fui visitar a Mehreen, que tinha conhecido no Paquistão e que estava no país a estudar ou a fazer um estágio, algo assim.... Se bem me lembro, dominámos uma parte, a outra nem por isso. Mas sei que lutámos até ao fim, e perdemos em penaltis. Okay, não foi nenhuma calamidade. E, mais uma vez, não estava exactamente fora de casa.
                
Hoje esperava perder, é certo. Mas não esperava perder assim. Geralmente acho, tal como qualquer tuga, imagino, que sou bastante hábil em discernir entre justiça ou favorecimento à nossa, ou à outra, equipa. Hoje tenho uma ideia de que fomos desfavorecidos. Mas que se foda isso. Fiquei em Sanniquellie mais um dia para ver a bola. Podia ter pedalado até à Costa do Marfim e arranjado um sítio qualquer onde a ver. Noventa por cento da probabilidade indica que encontraria algum lado. Mas em África dez por cento deste género são potentes, pelo que preferi perder mais um dia aqui para ver o que fazíamos.
                
Não me arrependi de ter ficado. Mas perder fora de casa é fodido. “É so bola!”, era o que eu me tentaria dizer, se não me conhecesse tão bem. É que isto, para mim, é mais que bola. E não percebo muito bem este meu lado. Curto-o, mas não o percebo. Sendo eu um rapaz tão lógico e que rejeita tão categoricamente o conceito de nacionalismo, como é que me deixo afectar com um jogo de futebol?
                
Talvez haja mais que uma razão. Uma delas é o simples facto de gostar de sentir. Agora, aqui sentado no The Porch, no alpendre desta estalagem e bar, com putos sentados na rua à espera de ver Jesus (eu), com pessoal que foi ficando gradualmente bêbedo e, eventualmente, a caminho do quarto-de-banho, me diziam que um jogador não pode fazer tudo, aqui onde vi o jogo a ouvir música dos anos noventa tipo Rod Stewart, Roxette ou Michael Bolton, aqui onde já vou no meu terceiro litro de cerveja, sinto-me meio triste, meio abananado, o álcool ajudando, e sei que, por mais que custe, vale a pena pelos momentos em que me sinto em êxtase quando ganhamos, por exemplo, nos últimos minutos à Dinamarca e selamos a passagem para os quartos do Europeu. É uma aposta. Talvez isto tenha o seu quê de racional, sendo que é, mais ou menos, uma escolha. Se Portugal perdesse sempre e fosse meio merdoso, poderia escolher marimbar-me para isto, como me marimbei, mais ou menos, para o Porto. O futebol de equipas já alguns anos que me deixou para trás. Comprar jogadores, vender jogadores. O elemento que mais me une a ele é o que me cola completamente à Selecção. O facto de que, não obstante portista, prefiro que o Benfica ganhe a Liga dos Campeões e o campeonato do que o Porto ganhe o campeonato e nem um nem outro passe dos oitavos da Liga.
                
Está à vista que é Portugal que me compele ao futebol. Mas porquê, se não acredito em nacionalismo? Ah, não sei! É difícil pensar nisto porque sinto que me dou nós a mim próprio. Vejamos: vergonha ou orgulho – dois conceitos muitas vezes associados ao país de alguém e que acho nucleares na análise daquilo de que falo. Só devemos ter um, ou outro, das coisas que fizemos, nunca de atributos que nasceram connosco, como os nossos belos olhos, um de cada cor, verde esmeralda e azul oceano lunar. Portanto, eu não tenho orgulho nenhum em ser tuga. Não foi uma escolha minha.
                
Mas tenho um amor enorme!
                
É verdade, se tivesse nascido no Irão, ou no Burundi, talvez sentisse o mesmo. Mas há observações que me deixam a pensar. “Os portugueses tendem a sentir bués de orgulho de Portugal!”, já ouvi, para lá de uma dezena de vezes, geralmente por um interlocutor que reparou no brilho dos meus olhos, e no dos outros tugas, ao falar da velha nação. E isto é estranhíssimo! O que é que nos une assim?
                
Pois, não tendo orgulho em ser português, é inegável que sinto um amor enorme pelo país. Pelos pequenos montes que gostam de brincar às montanhas, pelos vales que nos cortam ao meio, pelas sete colinas ou pelos sorrisos que se apanham sem querer. E sinto-me sortudo. Escrevo da Libéria, é claro que tive sorte – tenho muito mais do que muita gente aqui alguma vez terá. Mas também já vivi na Finlândia, na Noruega, na Inglaterra e já viajei por algumas dezenas de outros países cujo Chico da Esquina tem mais do que o Fulano Tuga terá mas que, ainda assim, não curte o seu país de origem.
                
Não estamos sozinhos no amor ao país que nos viu nascer. Mas não há tantos assim. Ah, que digo? Falo como se toda a gente pensasse como eu. Tenho ideia de que muita gente sente este apelo que eu sinto, mas talvez esteja aqui num exercício completamente egoísta em que pego em mim e colo ao país de onde venho.
               
E agora a quebra total!
                
Estava a escrever, pedi mais uma cerveja. Enquanto arranjava espaço na mesa, puxando o computador um bocadinho mais para o canto, perdi o ímpeto que me fazia escrever ininterruptamente. Li tudo o que tinha escrito até então, e vi-me florir. Li o pouco que escrevi acerca de Portugal, e de repente já não estou triste. Engraçado, pá! Ah, sentimentos – enigma, sempre! A verdade é que ao escrever transplantei um pouco aqui que Portugal é para um domínio muito mais do que futebolístico.
                
A verdade é que aqui, na Libéria, sozinho, e em pedais sozinhos há muito tempo, sinto que trago comigo um país de sentimentos. Um país de uma cultura talvez mais melancólica do que eu preferiria, que se orgulha de ter uma palavra só sua e que não é nenhuma palavra alegre, um país cujas algumas partes morreram de velhas a olhar para o mar à espera, um país que leva pontapés dos outros e, especialmente, de si mesmo. Trago comigo esse país que é meu.
                
Sim, se fosse cipriota ou uruguaio talvez sentisse o mesmo.

Mas sendo português não há “talvez”.

Gosto.

De tudo o que me fez.

19h19, 2ª, 16-6-14

The Porch, Sanniquellie, Libéria

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Tristeza e Despedidas

Aí está ela, a calma tristeza que se veste de velhinho dentro de cobertores quentinhos. A tristeza que posso usar com um sorriso simpático de bom rapaz que sinto que me atribui uma aura diferente. Estou novamente sozinho. De Vale de Cambra a Agadir pedalei em boas companhias, fossem elas do meu pai e avós que me seguiam de carro, amigos que me albergavam, o Kidus que seguia até Sevilha ou o Joel que, ora atrás, ora à frente, pedavala comigo. De Agadir a Dakhla experimentei o deserto sem ninguém, mas rapidamente me vi inserido numa caravana de quatro pessoas com quem passei quase um mês.

Liguei ao Frank há pouco, que me disse que iam ficar mais uns dias em Saint-Louis, a ajudar o Peti a construir um quarto-de-banho para os seus putos. Fiquei contente por eles, por terem a oportunidade de ajudar, fiquei com pena de não lá estar, e fiquei com pena de, afinal, já não ter amanhã a companhia do Danny e da Justine. Este sítio é melhor com companhia. Será demais dizer que qualquer sítio é melhor com companhia?
                
Hoje, quando acordámos, o Peti disse para ficar mais um bocado. Depois o Diau. Resisti ao impulso de dizer “Tenho de ir”, não seria verdade. “Tenho um longo caminho pela frente, vou hoje”. Queria ficar, queria vir, queria ficar, queria vir. Arranjei as minhas coisas, tirámos a fotografia de grupo, arrastei a bicicleta pelas ruas de areia do bairro do meu anfitrião, e chegámos à encruzilhada. “Para dizer adeus nós despedimo-nos com a mão esquerda, porque quer dizer que nos vamos voltar a ver”.
                
Abraço ao Frank, com quem tinha combinado um encontro realista na noite anterior, depois de quatro ou cinco cervejas. “Não vou dizer que vou de propósito ao Canadá ter contigo, isso talvez não seja realista... Mas podemos combinar que, se não estivermos muito longe um do outro, podemos fazer o esforço de nos encontrarmo-nos”.
                
Beijo e abraço de “Vemo-nos amanhã”, à Justine.
                
Abraço ao Danny. “Eu queria ir hoje, mas a Justine queria ficar mais tempo...”. O canadiano volta-se para ir embora e, talvez prevendo que, afinal de contas, não nos veríamos no dia seguinte, volta a ver-me de frente, e entrega-me um ovo azul com o que parecem ser missangas no interior e um papel, tudo mais ou menos embrulhado num aperto de mão. “É melhor dar-te isto agora, porque nunca se sabe...”.
                
Sem ler aquele papel percebi que o que sentia por ele era mútuo. A pedalar para cada vez mais longe pensava nas conversas que tínhamos tido, na curiosidade espetacular dele e vontade em ser cada vez uma pessoa melhor, e pensava, com um sorriso, nas coisas que tínhamos em comum.

- Quando eu era puto, e ainda hoje, tenho de confessar... queria mesmo, um dia, salvar uma VIDA! – dizia, duas noites antes, caminhávamos para um bar perto do bairro do Peti.
- Eu também! – respondi, entusiasmado e até meio aliviado por ouvir outra pessoa a dizer o mesmo – Para mim acho que é porque... hum... eu quero muito ser... bom... fazer algo de bom no mundo... e acho que salvar uma VIDA é o epítome disso! É real, dá para ver, não há volta a dar! E para ti?
- É isso – respondeu o barbudo, com um sorriso.

Pensava nas horas que perdêramos a jogar ao “preferes”, por exemplo, “ter um pelo na garganta para sempre e estar sempre aham, aham ou ter um grão de areia debaixo da pálpebra?” e em como ele finalmente tinha encontrado um “preferes” ao qual eu não queria responder, e pensei que não leria já o papel. Queria lê-lo quando realmente dissemos o nosso hasta luego. Mas, sentei-me aqui neste sofá de padrão de zebra e, pensando que o Frank tinha dito que eles iam ficar, abri o papel.

A little bit like the domino story, this one has some magic too. An old lady from Canada gave it to me in Peru. She told me that the egg was a traveler, but it’s one that travel through friendship, love, inspiration and beauty (as a poetic form) instead of incredible scenery, landscape and countries.
I once inspired that lady while talking through complete nights about everything, nothing, us, them, all.
I’ll always remember her, Always!
I’ll remember you too! We certainly talked and I’ve been touched, but also by our silence, by yours… the way you act, you think… I learned!
THANK’S BOY! BIG LOVE
DAN

E é isto! As pessoas são tão espetaculares que às vezes apetece-me chorar! Gosto disto tudo, pá! Apetece-me bater nas teclas o mais rápido possível e escrever à sorte qualquer coisa só para explicar o quanto as pessoas me movem, o quão felizardo me sinto agora mesmo por ter oportunidade de habitar estes mundos todos, cada um nas mentes que populo aqui e ali. Estou forte, sinto-me forte. Ouço uma música que também mexe em mim, e sinto que o que trago cá dentro, o amor que sinto pelos amigos de longa data e pelos que ainda não conheci me oferece um escudo contra qualquer infortúnio que possa vir no meu caminho daqui ao Cabo da Boa Esperança, daqui ao fim da VIDA. O amor faz-me sentir intocável. Não me convence, realmente, de que ninguém me pode fazer mal, mas convence-me de que nada, nem ninguém, me pode quebrar. O amor faz-me forte, de dentro para fora e isso, por sua vez, deixa-me pasmado... pois como pode algo invisível fazer alguém ver tão bem?

Não me quero nunca fechar ao amor.

O amor não é finito.

Como sou assim, às vezes as pessoas não me levam a sério. Como tendo a gostar de tudo e de toda a gente, as pessoas às vezes desvalorizam o que por aqui vai. Porque se eu tendo a gostar de tudo e de todos, então na verdade não é assim tão especial se digo que gosto muito delas. E isto, passando o debate que tal suscita, deixa-me um bocado triste. Não me deixa deprimido, mas deixa-me triste pela necessidade que as pessoas têm em se sentirem especiais toldar a visão de algo que, não obstante invisível, está ali mesmo à frente.

Porém, gosto de ser assim. Gosto de gostar da gente. A minha VIDA é mais fácil, é mais colorida e é isso que me faz mais forte. Gosto de gostar das pessoas e de lhes dar oportunidades para mudarem para melhor. Gosto de pensar que se elas foram parvas para mim uma vez isso não faz delas parvas, e se delas parvas fizer por serem comportamentos repetidos, parvas para sempre não têm de ser. Gosto de acreditar que podem mudar, pois se a mudança é algo que ocupa a minha mente constantemente, e se quero ser melhor hoje do que há uns dias, quem seria eu se às outras pessoas isso não permitisse?

Ah, estou bem! Já nem estou com aquela tristeza velhinha. A música passou de Kooks para Dresden Dolls para James para Amiina, sempre passeando pelas calminhas, e agora toca Lua, do Pedro Abrunhosa, numa viagem no tempo para quando era outra pessoa. Disse, na brincadeira, ontem, que aquele puto foi outro puto. Mas parece verdade. Tenho saudades daquele puto, e tenho grandes memórias dele. Quando penso na minha infância vejo tudo com um carisma e uma temperatura que me faz sentir bem. Bem, sinto-me bem, e isso faz-me querer escrever sobre tudo...

21h47, 4ª, 23-4-14

Zebrabar, Senegal



domingo, 8 de junho de 2014

Tiroteios em Bo e A Minha Experiência Na Esquadra

                Que viagem! Que viagem...
                Lembro-me quando andava por Marrocos que estava a gostar bastante, mas o pessoal perguntava-me se estava a adorar, e não podia dizer realmente que sim. Talvez por eu ter visto Marrocos mais como um ponto de passagem até chegar a vivências como tenho tido. Talvez porque aquilo que eu queria era o que muitos chamam de “África a sério”.
                Pois estou em Njaluahun, na Serra Leoa, e sei que é isto que queria. Não consegui fazer os cento e cinquenta quilómetros até à fronteira, penei com as subidas e descidas, com as poças de água que às vezes faziam com que tivesse de sair da bicicleta e o meu jantar foi um saquinho de amendoíns. Mas, ainda assim, é isto. Não é o não comer, nem o sofrimento de pistas mais complicadas. Não é o desconforto que tornas as coisas mais reais. Simplesmente esses desconfortos são efeitos colaterais que bem valem a pena os momentos de improviso que tenho todos os dias.

                Ontem fui levado para a esquadra em Bo.
                A Celia tinha-me dado o contacto do Morie, alguém que ela dizia que era “lovely”, algo que se traduz mais ou menos como amoroso, simpático, por aí. Quando estava a caminho desta cidade enviei mensagem ao gajo e ele disse que era na boa. Quando disse “Okay, a ver se consigo chegar, porque ainda falta um bocado e estou cansado” ele respondeu, comicamente, “Tu consegues, és de Portugal!”.
                Pensando em todas as outras vilas por onde passei, e pensando na segunda maior cidade da Guiné-Conacri, Boké, pensava que Bo, a segunda maior cidade da Serra Leoa, fosse um par de ruas. Mas não, era muito mais do que isso. Cheguei, perguntei pela torre do relógio, e depois pelo Kama, e encaminharam-me para o espaço do meu anfitrião. Ocupava todo o rés-do-chão de uma casa. Do lado direito tinha uma reprografia e um cyber-café ao fundo, no meio um restaurante por abrir e à esquerda um bar que se estendia para dentro, um pouco austero, com um balcão até ao fim e uma sala ao fundo mais porreira, com papel de parede bege e sofás vermelhos. O Morie era um rapaz de quarenta e cinco baixinho, com bigode e pera e um sorriso muito simpático. Sim, realmente parecia amoroso e simpático. Apresentámo-nos e fui a casa tomar banho, seguindo o irmão dele na bicicleta. A casa era porreira. Grande com vários quartos, e um para mim.
                Arranjei-me e apanhei uma mota para ir usufruir do facto de ter um anfitrião com um cyber-café. Estive na net até às nove, altura em que ia ficando na hora do rapaz fechar. Bebemos uma cerveja cá fora e ele contou-me um bocado do seu trajecto de VIDA. Pouco antes da guerra, quando era um jovem adulto, foi para os Estados Unidos com o irmão e a mãe. Esteve lá catorze anos, tendo vivido algures na Virginia, e em São Francisco, que curtiu bués. O irmão casou-se, teve filhos americanos e, a dada altura, a mãe quis voltar, pedindo-lhe que voltasse com ela.
                - E voltei! Em catorze anos nunca vim à Serra Leoa, visitar, nem nada... e quando vim foi para ficar! Adoro o meu país, a minha mãe queria que eu viesse com ela, disse que sim! Comecei com a reprografia, depois o bar, restaurante... Estou bem. Não tenho dinheiro no banco
                - Mas ‘tás confortável
                - Sim, estou confortável Os meus filhos estão bem, está tudo bem  – dizia, enquanto puxava de um cigarro. Perguntei-lhe acerca dos miúdos e da mãe – Estou divorciado há um ano. Pá, eu sou viciado no trabalho, chegava sempre a casa para lá das dez... No início ela entendia, mas de repente começou a não tolerar isso e olha... agora tenho os meus filhos ao fim-de-semana – tom triste.
                O carro não pegava e fomos dar uma volta, bebendo uma cerveja aqui, outra ali, e parámos no bar da Torre do Relógio. Bebíamos cá fora, debruçados sobre a cerca que separava o passeio da rotunda, quando apareceram dois ménes com quem foi interessante falar. Momentos antes eu estava a contar ao Morie como era abordado por prostitutas várias vezes. Isso fazia com que às vezes eu dissesse logo “Sei o que tens em mente, acho que deves saber desde já que não estou interessado”, acabando, talvez, por ser indelicado com alguém que simplesmente queira falar. Os rapazes devem ter ouvido qualquer coisa antes de se juntarem à conversa, e a dada altura criticavam a sua nação à força toda.
                - Aqui na Serra Leoa cem por cento... noventa e cinco por cento – acho que ele corrigiu a percentagem porque se apercebeu que isso também o incluiria a ele – das pessoas só se interessam por aquilo que tu tens!
                - É verdade! Ele está a dizer a verdade – dizia o Morie.
                - Não há amor genuíno, o pessoal só tem interesse se a pessoa tem dinheiro, carro, cenas do género. Mas com os brancos é diferente. Os brancos não se importam com isso, os brancos são capazes de gostar mesmo de alguém simplesmente – continuava.
                - Não tem a ver com ser branco... – disse – Se o que dizes é verdade, isso talvez tenha que ver com as diferentes condições económicas que o pessoal na Europa tem, e que o pessoal aqui tem, que acaba por criar uma cultura de busca de estabilidade. Mas um preto na Europa tem a mesma mentalidade que um branco na Europa, por exemplo, não tem a ver com ser branco ou preto...
                - Sim, mas o preto tem essa mentalidade na Europa porque aprendeu com os brancos!
                - O que eu quero dizer é só que não tem nada a ver com a cor da pessoa. Não está nos genes dos pretos ser assim, nem no dos brancos. Se viesse aí um cataclismo qualquer e os papéis fossem invertidos, talvez as atitudes também fossem invertidas!
                - Okay, estou a ver... Além disso, aqui em África as pessoas vivem muito para o bling bling. As pessoas preocupam-se em mandar cenário. Tipo, tu tens mais dinheiro que eu
                - Assumes tu – interrompeu o Morie.
                - Sim, eu assumo que tu tens mais dinheiro que eu. Mas eu tenho sapatos Gucci, esta pulseira, este blazer... e tu estás de chinelos, calções e uma t-shirt do avesso! – dizia, rindo-se de si próprio.
                - Eles estavam todos contentes de estar a falar contigo – dizia-me o Morie, quando bazámos. – O pessoal aqui curte ter a atenção de um branco. E se é um branco porreiro como tu ficam contentes. Viste como no fim disseram que se eu alguma vez fosse ao bar deles era vip? Porque estava contigo, e por associação de repente também era fixe. Mas são bons miúdos, pensam acerca das coisas e percebem o mundo à volta deles. Eu estou um bocado no meio entre a mentalidade daqui e a do Ocidente. Ter passado tanto tempo nos Estados Unidos mudou-me muito.
                - Em quê?
                - Olha, para começar, não tenho esse fascínio pelo branco como as pessoas daqui têm. Se alguém é porreiro, é porreiro, mas não vou ter com brancos na rua na esperança de que falem comigo como esta malta toda que te vem dizer que pareces Jesus Cristo. Depois em termos de privacidade também. Aqui em África não há privacidade nenhuma. Tudo é de toda a gente, as pessoas aparecem em casa umas das outras sem anunciar, sabem tudo de tudo. Eu, por exemplo, mal falo com os meus vizinhos. Não me quero envolver assim tanto – e já estávamos noutro bar onde, no dia seguinte, a polícia apareceria para me levar para a esquadra. O Morie era, definitivamente, famoso por Bo. Já o tinha reparado não só por algumas pessoas com quem tinha falado saberem o que era o Kama, o seu estabelecimento, mas também quando o ouvi a apresentar-se a um ou outro que dizia “Sim, eu sei quem és”. Nesse último bar, quando chegámos estavam quatro ou cinco gajos, nitidamente fora a dançar, um deles com um colete de motocross, algo do género. O rapaz do bar disse para nos sentarmos ali ao lado e veio atrás de nós com duas cadeiras e uma mesa.
                - O gajo é prestável! – notei.
                - Ele conhece-me. Tipo ele agora está ali – do outro lado do muro, encostado ao mesmo – porque o bêbedo do colete queria falar connosco, e ele está ali para evitar que isso aconteça – realmente o gajo era confortável em mais do que uma maneira. Quanto ao outro não poder falar connosco, não fiz caso, imaginei que o Morie não quisesse ter aquela típica conversa com um borrachão.
                Regressámos a casa e ainda comemos uma sanduíche e bebemos uma cerveja no seu alpendre com um jardim ao lado da estrada. Ele gostava de me ter ali e eu sentia-me bem por isso.
                - Há muito, muito tempo que não me sentava cá fora com alguém, sabes... A casa é grande, às vezes sinto-me um pouco sozinho – dizia. Curtia o gajo. Enviei mensagem à Celia nessa noite a dizer que o Morie, mais do que “lovely”, era fixe, mesmo – Às vezes estou aqui a brincar com os meus putos, e as gajas vêem do outro lado da estrada e passam-se.
                - Porquê?
                - Tem a ver mais uma vez com ter estado tanto tempo fora. Relaciono-me com os meus filhos de uma forma que aqui não é normal, e as mulheres quando vêem ficam interessadas.
                - Interessadas?
                - Sim. Tenho uma vizinha com quem quase me envolvi. A gaja é casada. Mas acabei por não fazer nada. E durante algumas semanas ela ficava ali, do outro lado da estrada, a olhar para a minha casa. Meio marada...

                Quando acordei, depois de tomar banho, escrever um bocado e rever o Argo, grande filme, apanhei uma mota para o centro. Perguntei se não havia problema não levar capacete e o gajo disse que era na boa. Mal sabia eu que o pessoal em Bo andava aos tiros por causa de problemas relacionados precisamente com... o capacete.
                Cheguei ao centro e reparei que havia muita polícia no meio da rotunda, e muita malta do outro lado da estrada. Mas, curiosamente, não me parecia um cenário fora do normal em África, e segui o meu caminho e entrei num restaurante ao lado, onde almocei magistralmente. Ia ouvindo pessoal aos berros mas, mais uma vez, não me parecia fora do normal. O pessoal aqui parece que está sempre a tripar mas a maior parte das vezes está na boa. Demorei um chisco a habituar-me mas já nem reparo. Ainda assim, quando saí e vi dezenas de motas estacionados e pessoal no meio da estrada, percebi que havia mesmo qualquer cena, e perguntei a um rapaz.
                - A polícia está a agredir-nos! Nós estamos a manifestarmo-nos pacificamente e eles começaram à pancada!
                - Estão a manifestar-se porquê?
                - Porque começaram a multar-nos por tudo e por nada, e já não aguentamos mais! E estacionámos as motas todas ali.
                - Estão em greve?
                - Sim, em greve! – respondeu o rapaz, chateado.
                - Grande alvoroço lá fora – comentei com o Morie, cinco minutos depois, estava ele sentado ao seu computador e eu debruçado sobre o balcão de vidro.
                - Sim eu sei. Há bocado passaram aí alguns polícias atrás de uns gajos e estavam aos tiros! – disse, para minha surpresa. Pois, soube mais tarde, que pouco antes de eu ter chegado a polícia tinha andado a disparar também bombas de gás lacrimogénio e dois gajos foram para o hospital porque foram baleados. Com balas reais, não há cá merdas com estes gajos. Quem mo disse foi o Will e a Laura, que conheci ao final da tarde. Andava às voltas à procura de informação para o visto da Costa do Marfim, que à altura da escrita parece muito difícil de obter, e o Morie disse que, quando eu estivesse pronto, me gostava de apresentar uns amigos da Celia. Jantei, fui ao bar, e sentei-me com eles. O Will estava descansadinho no seu escritório essa tarde quando olhou pela janela e viu a bófia com as bombas de gás lacrimogénio.
                Se na noite anterior não esperava ficar a pé até às três com o meu anfitrião, nessa noite também não esperava cortiré com o Morie e três ingleses e acabar a noite na esquadra da polícia. Com o Will e a Laura estava o Sandy, um inglês de ascendência indiana que estava em voluntariado internacional e nesse momento treinava outros miúdos que tinham acabado de chegar. “Estão a enviar-me mensagem a perguntar se é seguro sairem de casa amanhã”, dizia. Comemos uma sanduíche no bar, bebemos umas cervejas, e fomos conversando. O Will era advogado de defesa criminal.
                - Já defendeste alguém que sabias ser culpado? – perguntei.
                - Já. É o que tenho de fazer – respondeu. Dantes eu julgava as pessoas que o faziam. Mas deopis pensei melhor e alguns factores fizeram-me mudar de opinião. Não há defesa para quem sabe que o seu cliente é culpado e fabrica provas ou testemunhas para o safar. Mas nos restantes casos, toda a gente tem direito a defesa, e cabe ao ataque fazer o seu trabalho e provar que a pessoa é culpada. Um factor que para mim importante é o facto de que se um advogado rejeita alguém que lhe diz que é culpado, em última instância as pessoas começam a deixar de dizer ao advogado que são culpadas e o advogado, pensando que a pessoa é realmente inocente, acaba por fazer, sem saber, um trabalho diferente, e eventualmente não-ético, para a defesa. – Se sei que alguém é culpado e eles querem que eu invente álibis ou coisas do género aí digo que precisam de procurar outro advogado. Quando sei que a pessoa é culpada limito-me a procurar buracos nos argumentos do ataque – conclui o rapaz que namorava com a Laura há catorze anos, desde os dezoito. A miúda era enfermeira e estava lá a prestar auxílio e a treinar as parteiras locais. Estava a salvar VIDAS, no fundo, porque a quantidade de bebés e mulheres que morre por estes lados por razões estúpidas é  muito elevada, e às vezes este tipo de pessoas que os auxilia e ensina traz consigo o dom da VIDA.
                As pessoas são diferentes, e eu e a Graciete somos diferentes. Somos diferentes mas temos um juizo que nos permite aceitarmos as nossas diferenças e integrá-las dentro de cada um, e dentro da relação. A maior diferença, naturalmente, prende-se com esta minha necessidade de partir, de ir ver o outro lado. É apenas natural que assim seja, porque o meu modo de viagem é tão extremo que acaba por se tornar no maior ponto de diferença entre mim e muita gente. Assim, sei que, à partida, nunca vou viver com a Graciete noutro país. Estou pacífico e na boa com isso, porque sei que isso não implica que não possa continuar com as minhas viagens no espaço de tempo que temos mais ou menos combinado, muito menos que não possamos viajar os dois. Contudo, e questiono se é justo partilhar a nossa relação a este ponto nestas linhas, adorava viver um, dois, três anos, fosse o que fosse, na Tanzânia, no Equador, no Belize. Ela é enfermeira, podia fazer muito, e eu, bem... podia escrever os meus livros. Há muitos entraves a este sonho, o maior sendo que não lhe passa pela cabeça tal empreitada, seja por simplesmente não querer, não se ver, e outros como poder voltar a encontrar trabalho como enfermeira com facilidade quando regressasse, a língua, entre outros. Dá sempre para dar a volta a isto tudo, mas só dá para dar a volta quando realmente se quer. Prefiro noventa vezes mantermo-nos assim do que ela dar um passo destes só para me agradar, razão pela qual, apesar de o referir vez por vez, não me deitar a convencê-la.
                Do bar do Morie fomos para o bar da rotunda, onde nos sentámos cá fora a beber umas. “E é assim, estamos aqui na boa a beber uma cerveja, e há horas atrás andava aqui malta aos tiros”, comentou o Will. E agora que escrevo penso se terei lidado com todo este tumulto por já estar um bocadinho africanizado ou se é por, realmente, não ser algo que me toque, daí que não tenha de ter medo? Se houvesse tiros e eu estivesse na rua não ia ficar lá a comer um gelado porque podia ser atingido acidentalmente. Tirando isso, não vejo por que razão aquilo me tocaria.
                - Mas porque é que os gajos se quiseram manifestar? – perguntei.
                - Porque desde há algumas semanas para cá a polícia começou a multar tudo e todos. Já apanhaste alguma mota? – perguntou-me a Laura.
                - Já.
                - Então sabes que é extremamente barato. Eles levam mil leones – dezassete cêntimos – por corrida, às vezes dois mil se demora mais que cinco minutos, e a polícia multa-os por quinhentos mil! – quinhentos mil! “Filhos da puta”, pensei, especialmente porque era mais que certo que o dinheiro era para essa máfia. Reparo agora que estar em África faz-me detestar ainda mais autoridade. Pelo que faz às pessoas, pela aleatoridade com que é atribuída. Estou a falar de polícias, mas o que não falta é contínuos de escola, directores, chefes, dirigentes, que só porque têm uma determinada posição pensam que são chocolate branco e podem tratar os outros como lhes apetece.
                Dei-me muito bem com o Will. Conversámos acerca de vários assuntos, e ele encorajava-me com toda a força a ver a série Cosmos, do Carl Sagan, que tinha mudado a perspectiva dele sobre tudo, quando era tempo de partir.
                - Adorava ficar para mais uma, mas a Laura está cansada. Mas a sério, podes esquecer tudo o que eu disse, mas não te esqueças disto - vê o Cosmos! – disse, categoricamente. Contudo, ainda não nos despediríamos aí, porque os gajos da mota estavam de greve! Ah, claro! E logo nesse dia o Morie não tinha trazido carro. O meu anfitrião encontrou um táxi ao cabo de vinte minutos e a ideia era seguirmos todos no táxi, deixar o Will, a Laura e o Sandy em casa e eu e o Morie irmos ainda beber mais uma.
                Deixámos os rapazes e voltámos à rua do último bar da noite anterior. Tinha muito mais gente e um gajo, mal saí do táxi, veio perguntar se eu não me lembrava dele.
                - Não, não é ele! – respondeu o Morie – Não é mesmo ele – e depois começou a falar em crioulo mas, pela cara do méne, a olhar para o chão meio envergonhado, e por uma ou outra palavra que apanhei, percebi que, provavelmente, o gajo me estava a bater um couro e o Morie tinha-o apanhado de imediato. Esta cena do “lembras-te de mim” é uma praga. Foi aparecendo pessoal que se aglomerava em semi-circulo a ouvir a conversa e a olhar para mim, que estava mais ou menos no meio do semi-círculo, quase encostado ao táxi, mas na boa. De repente, olho para a minha direita e vejo uma carrinha da polícia a parar, e tenho um polícia de capacete e kalashnikov na mão a um metro de mim, todo bêbedo!
                - Que é que se passa aqui? Que é que se passa aqui – gritava um
                - Tu, és quem? – perguntava-me outro.
                - Olá, eu sou o Pedro – respondi, com um sorriso. Nesta altura, que me lembre, estava lá o de capacete, o sargento, um homem dos seus sessenta também todo fora, e outro cavalão, que disfarçava melhor mas que também estava a beber.
                - És de onde?
                - Portugal, a terra do Pedro da Sintra!
                - Tens autorização de residência? – “lá vamos nós”, pensei.
                - Não, porque não resido aqui, estou só de passagem.
                - Tens de ter! – disse o méne, já com cara de mau.
                - Porque é que está a falar com este homem? – perguntou o Morie ao polícia.
                - Ele não tem permissão de residência, tem de ter, vou levá-lo para a esquadra! – A partir daqui as coisas deram um salto. Falava com o homem, tranquilamente, a dizer que tinha o meu visto, e que não precisava de ir dentro quando, não sei que se passou, ele queria ir ali ao fundo. Para isso tocou no Morie.
                - Hei, não me empurres, estás a empurrar-me porquê? – perguntou. Não foi agressivo, mas foi um bocado despropositado, porque o que o sargento tinha feito foi pegar-lhe no braço com a intenção de mover o meu amigo para o lado, mas não foi propriamente à bruta. O homem não curtiu e começou aos berros com ele. Depois apareceu o cavalão também aos berros. Estava a ver que aquilo ia dar raia.
                - Tu no teu país não respeitas a polícia? – perguntou-me o cavalão, com uma cara como se tivesse sido eu a dizer ao outro para não me empurrar.
                - Sim, sim... não leve a mal, ele ficou nervoso – respondi. Às tantas já não sabia onde estava o Morie, e o cavalão veio dizer-me que já não ia para a esquadra. Foi tudo muito rápido e no meio de umas trinta pessoas, que se iam juntando, cada vez mais.
                - Ficas em paz. Estás bem? – perguntou.
                - Sim, estou bem, não se preocupe.
                - Só te queremos proteger! Estás bem?
                - Sim, estou bem, a sério, pode ir à sua VIDA.
                - Okay, ficas aqui então – finalizou. Ou antes tivesse finalizado. Não sei que se passou, o sargento apareceu outra vez a perguntar-me o meu nome pela terceira vez e se eu tinha a minha permissão de residência. Lidar com pessoal de outras culturas, seja de que canto do mundo seja, é muito mais fácil do que lidar com bêbedos. A mesma conversa, o gajo disse que me ia levar dentro, conversámos mais um bocado, e ele disse que eu podia ficar. Era como se me estivesse a desviar de balas. Pois o Morie voltou a aparecer, o sargento começou a tripar com ele, o Morie voltou a desaparecer, para não o mandar para o caralho e o sargento, não curtindo esta, disse que, afinal de contas, me ia levar dentro.
                - Espera, espera, não entres – dizia o Morie, que tinha reaparecido, desta vez de outro lado, enquanto esperava que lhe atendessem o telemóvel. O sargento puxava-me de um lado e o Morie do outro, e quando o sargento empurrou o Morie eu disse ao meu amigo para ter calma que eu ia mesmo. Se resistisse aquilo ia mesmo correr mal. E polícias que, de tarde, provavelmente sóbrios, andavam aos tiros, à noite com a bebedeira não iam ler romances de amor.
                - Olá! – disse a dois civis que estavam nas traseiras da carrinha e a uma polícia gorda, que estava encostada para trás de cerveja na mão. Os civis bazaram, o sargento e o do capacete entraram para a frente e seguimos. “Os gajos nem tentam disfarçar”, pensei, ao ver o cavalão a conduzir e a beber cerveja, enquanto a carrinha avançava noite dentro. Eu estava num misto de tranquilidade com nervosismo, se é que tal existe. Não sentia nenhuma bola de fogo a arder no peito, mas sentia todo o meu ser cem por cento alerta. De repente estava sóbrio como um canário.
                Chegar àquela esquadra foi um momento inesquecível.
                Saí da carrinha e parecia que tinha chegado a uma festa. Música, malta cá fora a fumar e a beber, dois a jogar damas encostados à parede. Quando lá chegámos o sargento perguntou-me o meu nome e perguntou-me se eu tinha a minha permissão de residência. O cavalão tentava convencê-lo a deixar-me ir, em vão. Estou eu a tentar explicar que não é preciso tal permissão, como se ele não soubesse, quando apareceu um mais novo, à civil, com um pequeno maço de notas na mão.
                - Pessoal, eu tenho dinheiro! – e aqui estava a cena. O gajo viu-me rodeado de polícias a pedir os meus papéis e pensou que eles pensavam que não havia dinheiro para copos, e decidiu vir lá numa de “caguem no gajo que já temos dinheiro”, dinheiro esse provavelmente oriundo dos bolsos de um pobre táxi-mota. Filhos da puta!
                - Não tem nada a ver com dinheiro! – disse um deles. Eu ia procurando aliados. Já tinha percebido que o cavalão me queria mandar embora, havia outro rapaz que também era mais simpático, havia o sargento, imprevisível mas que talvez desse para manipular, a gorda, cuja única frase foi dizer-me que eu parecia Jesus Cristo mas que olhava para mim com olhos de fome, e outro que apareceu mais tarde, quando o sargento já tinha decido deixar-me ir. Vi neste puto de vinte e dois ou vinte e três o mesmo que me tentou chular depois de ter entrado no país. “Este homem anda por aí sem papéis?!”, perguntou, com a maior cara de cabrão-a-tentar-intimidar que alguém já fizera. Alguém lhe disse para esquecer isso e ele desapareceu por momentos, voltando de vez em quando para tentar instigar os outros a não desperdicar a oportunidade de se aproveitarem de mim.
                Não sei quanto tempo passou até eles me terem dito que eu podia ir. “Liga para o táxi, diz para te vir buscar. Se não podemos levar-te a casa. O que importa é que estejas seguro. Nós estamos aqui para a tua segurança. Não te queremos envergonhar. Envergonhamos-te?”, diziam. Acho que essa de “envergonhar” foi perdida na tradução da língua nativa deles, talvez. Acho que eles queriam mais perguntar se me tinham assustado. Eu disse que não e agradeci. Não queria dizer que estava na boa e que todo aquele celeuma era escusado. O táxi nunca mais chegava, e eu estava mesmo a ver que ia dar outra panca ao sargento, pelo que tinha de o distrair. Alguém falou no Ronaldo e eu comecei a falar da carreira dele, do Manchester, do Real, que estava lesionado, sempre em torrente. A minha ideia era falar sem parar até chegar o táxi, meter-me nele e hasta luego. Mas chegou o puto cabrão, disse qualquer coisa e o sargento perguntou o meu nome e pediu o meu passaporte. O puto perguntou se eu tinha uma carta do meu governo a dizer que sabiam que eu estava lá. Depois apareceu outro a perguntar se eu tinha ido anunciar à polícia que estava na Serra Leoa. Era só merda, só merda! “Bem, ao menos agora sei as cenas que pedem, talvez possa falsificar algumas”, pensei, pensando ao mesmo tempo que corja daquelas encontra sempre qualquer coisa. Eu ia-me tentando desviar. Já tinha ligado ao Morie três vezes, a instrução dos polícias que deviam estar fartos de esperar, e o Morie dizia que o táxi estava a camihho. O meu amigo não viria, explicou-me mais tarde, porque estava demasiado transtornado com aquilo tudo e se viesse as coisas iam correr muito mal. Se, por um lado, acho que se podia controlar e vir ajudar-me, por outro aprecio a constatação de que isso é, naquele momento, uma impossibilidade e então mais vale estar quieto. Ligava, desligava, dizia que o táxi devia estar mesmo a chegar, e sentia que o sargento estava a virar outra vez. E virou, o cabrão! Foi uma cena surreal. Apesar de eu estar sempre naquele limite de estar na boa mas sem parecer que não os levo a sério, de repente foi como se lhe tivesse chamado aquilo que pensava dele e o gajo diz, com potência “Vais passar aqui a noite! É mais seguro para ti! Não tens papéis!”. O gajo estava tão fora que tinha dificuldade em encontrar a razão pela qual eu lá ia ficar.
                - Mas então... tinha dito que eu podia ir! – disse-lhe. O cavalão voltou e começou aos berros com o sargento.
                - Eu é que sou o sargento, eu é que mando! – gritava o velhote de farda militar cinzenta.
                - Ande lá, não vale a pena ficar aqui. Eu estou bem, estou seguro!
                - Não! – gritou – Anda! – e tocava-me no braço. Eu ia caminhando devagar a tentar perceber o que fazer. Apareceu o outro de há pouco que era mais simpático e trocámos um olhar. Ia seguindo o sargento, mas devagar, e quando entrou na esquadra chamou-me. Os outros todos, que eram p’rai quinze, discutiam o meu caso, uns sentados debaixo de uma árvore, outros de pé.
                - Vamos perguntar ao nosso chefe o que fazer contigo, espera! – disse o mais simpático. O sargento tinha desaparecido para dentro da esquadra, e voltava de vez em quando para tripar com o cavalão. Dizam um ao outro que o outro não o respeitava. O chefe era um dos que jogava damas calmamente ao longo de todo aquele processo. Era um rapaz dos seus trinta e cinco, vestido de azul com um gorro. Olhou de lado para mim e perguntou-me o que estava a fazer. Cumprimentei-o e expliquei de onde vinha, para onde ia. Para não me voltarem a perguntar a minha missão disse que era fotógrafo, e um terço de segundo depois de o ter dito, pensando que podiam entrar em paranóia que era jornalista, completei que fotografava natureza, uma actividade muito menos propensa a gerar tensão – Que fazemos com ele? – perguntou o simpático.
                - Não ouviste o homem? Deixa-o ir – respondeu o chefe. O táxi já lá estava. Virei-me e fui direito ao carro, mas nesta altura já sabia que as coisas mudavam a qualquer segundo. Tinha acabado de fechar a porta quando apareceu o sargento.
                - Não te vais embora sem fazermos o registo! – queria ter a última palavra, ao que parecia, e tinha sido aquilo que tinha encontrado. Saí do carro, entrei finalmente na esquadra, e um rapaz do meu lado esquerdo, sóbrio, do outro lado do balcão abriu um livro.
                - Escreve aí... – disse o sargento ao sóbrio – Como é que te chamas? – perguntou-me. Soletrei o meu nome e ele continuou – foi preso para questionamento. Foi libertado e manteve todas as suas possessões. Está seguro e partiu com o táxi... qual é a tua matrícula? Okay, com o táxi tal tal tal – depois virou-se para mim. – Estás bem?
                - Estou.
                - Isto é para tua segurança?
                - Sim, eu sei – menti. Num segundo pensei no esforço de dizer sempre a verdade e em como, em situações destas, não dá mesmo. Dá, mas não é a maneira mais inteligente ou segura de gerir uma situação destas.
                - Envergonhamos-te?
                - Não – respondi, quando o que eu queria dizer é que, na verdade, envergonharam-se a eles mesmos. À grande. Entrei no táxi e desta vez não voltei para trás.
                Estava a delirar um bocado com a pecularidade de toda aquela situação, e sentia-me também contente por achar que tinha lidado com tudo da melhor maneira possível. É que, depois de ter sido acusado de não ter mil documentos, a verdade é que eu nem o meu simples passaporte cheguei a mostrar! Não mostrei um único documento! Sempre que mo pediam eu ia falando, às vezes fazia o gesto de que o ia tirar e acabava por não o fazer. Sim, se por um lado é difícil lidar pessoas bêbebas com álcool e autoridade devido à sua imprevisibilidade e fúria mais fácil, por outro é mais fácil distraí-las.

                Quando cheguei a casa o Morie estava num caco. Sentámo-nos no alpendre a beber um campari e ele dobrava-se sobre os seus joelhos com as mãos na cabeça.
                - Méne, quem devia estar assim sou eu, não és tu! E se eu estou aqui na boa, não fiques tu a bater mal! – dizia.
                - Eu queria ir ajudar-te, mas estava tão transtornado que só ia correr mal! Depois liguei ao director da polícia e ele estava a dormir, disse que lidava com isto amanhã. Mas também sabia que ias lidar bem com a coisa... a outra malta toda estava pronta para aquilo dar para o torto. Podíamos ter sido os catalistas... eles estavam prontos para dar na polícia – eu pensava no massacre que podia ter ocorrido ali se aquilo desse pancada e os polícias começassem ao tiro. – Quando foste na carrinha estavam todos impressionados contigo.
                - Porquê?
                - Pela maneira como estavas calmo.

                - Lembras-te de quando te contei a cena da fronteira? Mesmo que a ferver por dentro, na boa por fora.