terça-feira, 25 de março de 2014

Essaouira



Deixámos Casablanca e o Joel começou a sentir-se mal. Tinha comprado no dia anterior umas bolachas que pareciam, disse eu, no gozo, de 1971. Talvez tenha sido isso, mas duvido. Talvez tenha sido a água. Ou qualquer outra cena que tenha comido. Comemos sempre o mesmo por isso, ou ele teve azar numa pequenina peça que eu não apanhei, ou tem uma intolerância qualquer que eu não tenho. A verdade é que hoje, cinco dias depois, o rapaz ainda anda a correr para o quarto-de-banho. Tem sido difícil para o rapaz.

Pedalámos o dia todo com algumas pausas para ele descansar, e acabámos por acampar num campo. Deixámos a estrada, metemo-nos campo adentro e montámos a tenda num sítio que não parecia ter cultivo. Nessa noite, como o Joel estava todo empenado, coube-me cozinhar, e foi a primeira vez que fiz uma refeição naquele fogão de lata de cerveja. Foi um bocado complicado porque a cena está sempre a apagar-se. Talvez tenha sido da falta de experiência. Certo é que posteriormente desenvolvi um sistema, em que ponho a lata dentro do meu tacho e depois o tacho dele por cima, e assim fica muito mais isolado do Vento do que com o papel de alumínio que o Joel costuma por à volta.

Não dormi mal, mas não foi nenhum sonho, digamos. Aliás... acampar tem sido altamente e já percebi quer o vou fazer muitas vezes nesta viagem, mais de cem, talvez. Mas tem as suas desvantagens, algumas das quais que espero que esvaneçam brevemente. Uma delas é o frio. Pois o meu saco-cama diz que dá para dormir confortavelmente a quinze graus e o limite é onze. Comprei um outro saquito que diz que oferece mais três graus. Ainda assim, nessa noite, por exemplo, tive de dormir com uma camisola polar e depois vestir um casaco. O chão é outra desvantagem, mas mais por motivos indirectos. É que como sou tão espectacular, não trouxe nenhum colchão. E, na verdade, não tenho grandes problemas em dormir na pedra mesmo. O pior é que o chão é frio... por isso acabo por sofrer um bocado por não ter colchão de uma forma que não era a esperada.

Contudo, acho que a desvantagem principal, e que está a ser o que mais me está a custar na adaptação, é o não me sentir limpo. Pá, não sou nenhuma madame, e apesar de geralmente tomar banho todos os dias, aguento bem não tomar vários dias seguidos se tiver que ser. Até hoje o meu recorde é quando andei pelo Deserto de Gobi, na Mongólia, em que foram uns 8 dias. Mas ainda assim, além de mudar de roupa algumas vezes, não transpirava, porque estava um frio tremendo. Ora nesta viagem já não tem sido bem assim. Até Tanger tomei banho todos os dias. Depois de Tanger estive quatro dias sem tomar banho, até Casablanca, e depois de Casablanca estive três dias. A cena é que são vinte e quatro horas por dia com a mesma roupa! E a pedalar todos os dias! Quando penso que só em Jemenas é que me apercebi que não tinha de mudar de roupa todos os dias até me passo!

Ontem, quando assentámos arraiais no quarto que encontrámos, fui tomar um semi-banho. Semi-banho porque o gel de banho que tinha trazido de Espanha não faz espuma nenhuma e a água tem a pressão da bechiga do Manoel de Oliveira... Ainda assim, depois de tomar banho vestir os mesmos boxers e meias que ando a usar há três ou quatro dias foi uma sensação terrível. As meias tresandavam e os boxers não me atrevi a cheirar. Hoje tentei lavar algumas cenas. Não havia água quente. Tudo o que tinha era água fria, um sabão que o Joel comprara num super-mercado e um balde. E depois já não tinha água, que tinha sido cortada por algumas horas. Lá deixei as cenas a secar e já as fui apanhar. Vou ter de me contentar com a ilusão de limpeza. Tenho de arranjar um sistema qualquer...

Estou a pensar em ter roupa para dormir e roupa para pedalar. Pedalo, transpiro e tal, faço o que tenho a fazer, depois quando páro, molho um pano com água e sabão e tomo uma espécie de banho seco. Ou então habituo-me. A cena é que não me quero habituar... foi o que disse ao Joel, que me disse que, se calhar, a razão pela qual não tinha nenhuma namorada era esse à-vontade tão grande.

De Casablanca fomos até Essaouira, onde finalmente descansei e onde escrevi a primeira parte deste texto. Tínhamos acampado antes de Safi, numa zona com várias casas em construção. Fiado um bocado naquela onda dos muçulmanos hospitaleiros, fui a uma casa toda janota cujo dono estava cá fora e perguntei se podíamos dormir em casa dele. Ele sorriu e disse que não, porque era da família e tal. Disse que podíamos acampar ali em qualquer lado, e foi o que fizemos. O Joel estava mal, cheio de diarreira, de vez em quando pedindo desculpas se estava irritável. Notei-o uma vezita ou outra, mas absolutamente nada de mais. Aliás, acho que lidou com a cena como um campeão. Mas como estava todo roto, coube-me a mim ir buscar o jantar. Tirei as cenas da Bicicleta e voei até Safi, onde conheci um professor de surf marroquino que me guiou pela loucura de Sábado à noite daquela cidade, em que toda a gente andava na rua e os vendedores de legumes se multiplicava. Comprei massa, vegetais, as nossas bolachas preferidas e fui para cima. Foi uma empreitada e peras, que me levou cerca de duas horas, apenas com dez minutos para comer um cachorro. Acho que fui levado aqui, pois dei dez dirhams ao gajo, e quando me ia embora o gajo disse que só tinha dado cinco. Fiquei na dúvida... mas não tinha a certeza, pelo que tive que ceder. Doravante, mais atenção.
                 
O oportunismo, em geral, é uma cena com a qual tenho vários problemas. Mete-me uma impressão tremenda que se tentem aproveitar de mim só porque não sou daqui. Fónix as cenas têm um preço, e deve ser igual para todos. E às vezes dizem, sejam os locais ou outros viajantes com a mania que sabem “se podes pagar mais, porque é que não pagas?”. Ora, em primeiro lugar, nunca se sabe se posso ou não, porque não me conhecem de lado nenhum. Por acaso posso, porque, realmente, tenho mais dinheiro. Mas estou numa viagem de um ano, e se pago sempre mais, no final nota-se bem. E como até gostava de viver disto de escrever e viajar, não havendo muita fortuna na literatura, esse que se nota pode fazer falta, quem sabe. Depois, se estou a pagar mais, estou a contribuir para eles pedirem mais a estrangeiros, e podem fazê-lo a pessoas que, realmente, não podem mesmo pagar mais. Finalmente, é um argumento que não faz sentido porque se não pudesse pagar nada não mo davam de graça. Tem de dar para os dois lados. Ainda ontem me irritei com um puto. Pedi-lhe uma sopa e o gajo pediu-me quase o dobro do preço que andava a pagar. Tentei dizer-lhe, em francês, “Quero o preço normal, não quero o preço de estrangeiro!”.

Antes de sairmos de Safi fomos tomar pequeno-almoço, e um méne perguntou-me de onde era. Quando disse que era de Portugal, disse-me que tinha estado em Lisboa, e que não tinha curtido nada. “Vais a uma casa de alterne, não podes tocar, não podes fazer nada...”. Iá, é uma razão demais para não se curtir um sítio. Quando me perguntou o que achava de Marrocos e eu disse que curtia, ele disse que era altamente. Ora se em Portugal não se pode tocar nas mamas de uma stripper, duvido que em Marrocos se possa. Engraçado como as nossas opiniões e perspectivas mudam.
               
O Joel deve ter feito um pacto com o diabo nesse dia, pois apesar de ainda estar de diarreira, sentia-se lindamente, e pedalámos todo o dia, com um Vento de cauda brutal até que, 136 quilómetros depois, chegávamos a Essaouira. Fomos a um café ver se tínhamos resposta do couchsurfing, mas nada. Deixei o canadiano no café e fui a um campismo ali perto, onde conheci o primeiro marroquino verdadeiramente arrogante, e percebi que era caro demais para nós. Pegámos nas biclas e fomos dar uma volta à procura de um hostel ou algo parecido que fosse fixe. Tínhamos encontrado um hotel bacano onde o dono tinha baixado de quinze para dez euros cada um quando avistei a estação de autocarros. Tinha lido algures que à saída da mesma várias senhoras se aglomeravam e abordavam turistas a oferecer quartos. Aproximei-me e levantaram-se duas num ápice, uma delas meio segundo mais cedo que a modos que disse à outra para axantrar. Iá, ela axantrou mas veio connosco na mesma, e mais logo, quando já estávamos instalados, veio pedir a comissão. Fónix, comissão é quando se presta um serviço! Ah, sinto-me dividido e controverso em relação a estas cenas. Dei-lhe dez dirhams, e a minha ideia era serem pelos dois, mas o Joel deu mais dez, e não me apetecia debater muito sobre a cena. A verdade é que, contrariamente às minhas expectativas, encontrámos um sítio onde pagámos, para os dois e duas noites, quinze euros. Nada mau. Claro que o quarto não era exactamente o Hilton. Era um quarto com duas camas individuais com um cobertor enorme de cem quilos em cada uma e uma mesinha de cabeceira no meio. Podíamos ter escolhido outro por vinte euros para as duas noites, mas não era necessário.

Tentei tomar banho mas a água quente desapareceu num ápice. Continuei de água fria mas o gel de banho que tinha trazido de Espanha não tinha espuma nenhuma e acabou por ser uma cena um bocado inglória. E iá, depois calçar meias usadas, que maravilha!

Fomos comer qualquer cena na rua ao lado da estação de autocarros e voltámos para o quarto.

No dia seguinte ia conhecer Essaouira! Mas antes ainda ia lavar a minha roupa. Munido do sabão do Joel perguntei à senhora onde era o tanque. Ela mandou-me para o terraço mas, quando lá cheguei, não tinha lá nada. “Ela deve pensar que eu perguntei onde é que posso pôr a roupa a secar”, pensei, meio confuso, pois no dia anterior quando perguntara se podia lavar a roupa ela tinha apontado para “o lado de lá”, que não existia. Quando lhe fui perguntar outra vez ela fez cara de quem percebeu e foi buscar-me uma bacia. Okay, era aquilo o tanque. Fui para o quarto-de-banho do último andar, enchi a bacia de água, estendi as peças de roupa e comecei a dar-lhe com o sabão. Que suplício! Parecia-me que aquilo não era o método mais eficaz, mas lá ia dando o meu melhor. Até que a água acabou, e fiquei com metade da roupa por “lavar”.

Estava a estender as cenas no terraço quando a senhora apareceu para ir buscar uns cobertores. Disse que só havia água mais logo e eu acho que lhe mandei um olhar mais foleiro do que hoje desejaria. Um olhar tipo encolhe-ombros de quem diz “Pois... isto é assim...”. Quando no fundo a senhora não nos tinha exactamente prometido água corrente, e não nos estava a cobrar nenhuma fortuna. Apesar de não ter sido nada de mais, foi um olhar que acho que não costuma vir de mim, e senti-me, mais tarde, meio culpado por isso.

Fui ver a cidade e estava um bocado confuso. Onde andava a Essaouira de que me tinham falado? Dei uma volta, caminhei sempre em frente, passei no super-mercado para um sumo de manga, continuei a caminhar. Iá, tinha alguns aspectos interessantes, mas nada que qualquer outra cidade marroquina não tivesse. Perguntei a uns ménes pela Medina, e lá me encaminharam. Fui andando, parei para uma sopa, depois para um café e um par de horas na internet, e segui. Avistei ao fundo uma espécie de castelo. “Deve ser aquilo a Medina”, pensei. Cá fora tirei uma fotografia e comprei um pacote de pipocas e entrei. E de repente estava na Essaouira de que me tinham falado! De repente tudo à minha volta era de outro mundo. Como em muitas outras Medinas, aquilo estava pejado de lojas, grande parte delas com as suas vistas apontadas aos turistas que por lá deambulavam. Ainda assim era impossível não curtir bués aquilo! As ruas estreitas, os cafezitos janotas, as mini-pastelarias, as esculturas de madeira cá fora, as pessoas sempre de um lado para o outro, as lojas de azeitonas, e a música ocasional. Deixei-me perder completamente, indo por vezes parar a sítios todos rebentados com pequenos túneis e malta com ar meio suspeito, e curti bués aquelas horas em que por lá andei. Eventualmente fui dar à fortaleza, com uma pequena torre e vários canhões. À saída tropecei na única loja de álcool desde há algum tempo. Não comprei nada.

Estacionei num café e o Joel apareceu por acaso. Ficámos lá um pedaço e fomos para o “hotel”. Tínhamos pensado em ir ver o que se passava em termos de cortiré, mas aquela terra não era conhecida por isso, e estávamos na época baixa. Aliás, na Medina, nessa tarde, foi a primeira vez em Marrocos em que vi uma concentração de estrangeiros. Claro está que não fui a Marraquexe.

               

sábado, 22 de março de 2014

até Casablanca



Por vezes, ser eu, é uma maldição. Sempre fui um bocado cabeça no ar, nunca sei onde ponho nada. Mas nesta viagem está a ser a loucura. Já deixei a mochila para trás duas ou três vezes, outras tantas em que me lembrei mesmo no último minuto. A mochila que tem o passaporte, iá... Já perdi que tempos à procura dos meus elásticos em Coimbra, já perdi os meus calções de banho e as minhas luvas para pedalar.

E na Quinta, dia vinte e seis, não sabia dos meus raios. Tinha ido dar uma vista de olhos à roda da bicicleta, e descoberto que mais um raio, o terceiro, tinha rebentado! Tinha trazido dez de Espanha, tinha rebentado três e perdido outro. Bem, naquele momento tinha perdido todos. Lá desfiz a tenda e encontrei os coitados debaixo da mesma. Com algum custo substituí o raio, mas tinha de fazer algo. Arranjei um saco de plástico e uns elásticos e improvisei um alforge à frente com algumas cenas mais pesadas. Não voltei a ter raios partidos! Boa, Pedro! Ainda assim preciso de uns alforges em condições para a frente... mas uma coisa de cada vez.

Nesse dia a nossa ideia era ir até Casablanca. Tínhamos enviado alguns pedidos através do couchsurfing e até então, nada. Apetecia-me uma cama. Estou a habituar-me cada vez mais a isto de estar sempre fora, que no fundo é o que significa acampar, mas é fixe ter uma cama e um duche. O que mais me custa é não me sentir muito limpo. Ter de usar a mesma roupa quatro ou cinco dias seguidos é algo a que se custa habituar. Curtia arranjar uns calções de banho daqueles tipo boxers para poder lavar na boa, vestir e siga!

Agora escrevo de Safi, e depois de amanhã devo chegar a Essaouira, onde vou descansar uns dias. Tal como já comecei a fazer com as fotografias e a escrita, conto aí arranjar um sistema que me permita andar mais limpo. Um deles passa por pedir a alguém para me escrever num papel, em Árabe algo como “Sou de Portugal e estou numa viagem de bicicleta até à África do Sul. Por um preço justo agradecia se me pudesse lavar a roupa e pô-la a secar, e venho cá buscá-la amanhã.” Acho que era fixe. Aliás, pensei em vários cartões a dizer também “Posso acampar no seu terreno? Deixarei tudo limpo, não tem nada com que se preocupar” ou “Pode dar-me um preço justo e fazer negócio, ou dar-me um preço para turistas e não fazer negócio nenhum”.

É fixe ter começado em Marrocos porque isto é África para principiantes, e dá para um gajo se ir habituando às cenas. Aliás, Marrocos é super, super tranquilo! Estou muito impressionado com este país. Tão perto aí da Lusitânia e tão diferente! Quase todas as pessoas, em quase qualquer país, têm, a tendência a ser mais simpáticas para estrangeiros. Mas aqui é uma loucura. Toda a gente sempre a dizer “bem-vindos”, apesar de estar longe de qualquer aeroporto e já termos andado quase setecentos quilómetros para Sul. Aliás, no início eu levantava o braço e dizia sempre olá aos milhares de pessoas que o fazem à medida que vamos passando. Depois passou para um aceno e agora limito-me a simpaticamente sorrir e levantar a cabeça. Marrocos é também daqueles sítios onde, se perguntamos as direcções a alguém e essa pessoa não sabe, aparece sempre alguém que quer ajudar. Às vezes é demasiado, porque às vezes um gajo não precisa de ajuda nenhuma e acabamos por perder tempo, mas ‘tá-se bem.

Quanto ao trafego, o meu irmão, que vem a Casablanca com frequência, tinha-me advertido, dizendo que conduziam como malucos por estes lados. Pois, tirando alguns autocarros a ultrapassar como se fossem carros, acho o trânsito aqui super tranquilo. Seja no campo ou nas cidades, em que por vezes temos uma rotunda com bastantes carros e não se ouve uma única buzina ou um único protesto. Marrocos é tão tranquilo, tão África para principantes, que me está a preparar mal, talvez. Ainda há pouco fui ao super-mercado em Safi e tinha que me concentrar para deixar as minhas cenas debaixo de olho. Isto é, não sentia o instinto de olhar pelas minhas cenas, tinha de decidir conscientemente fazê-lo. A única cena em que os Marroquinos falham, por vezes, é nos preços que nos dão, parece-me.

Mas iá, mais uma vez desconfirmo as ideias que o pessoal tem. Se o tinha reparado noutros países muçulmanos, aqui em Marrocos, fazendo uma viagem destas, em que não me limito a viajar para Marraquexe, ir à Medina e andar de camelo, fazendo uma viagem que me permite atravessar centenas de povoações e ir interagindo com a malta, sinto como injusta a ideia que me parece que temos em Portugal sobre esta gente. Trafulhas dos tapetes, mais ou menos. Falei com pessoal muito na boa que me dizem que têm um irmão ou um tio na Itália, ou em Portugal, ou seja onde for, e penso se o irmão dessa pessoa será das pessoas que nesses países são olhadas com alguma desconfiança porque andam nas marginais das praias a vender chapéus luminosos. Aliás, acho que desrespeitamos este pessoal para caramba em Portugal. Iá, às vezes são chatos. Mas muitas vezes estão lá na deles, perguntam se queremos alguma cena e levam com trombas. Habituamo-nos a ver as pessoas como vindas todas no mesmo molde. Se somos abordados a primeira vez por um marroquino, dizemos que não educadamente. À segunda menos, à terceira menos ainda, e por aí fora. E à décima vez reagimos com arrogância, por ser a décima vez em não sei quantos dias que somos abordados por um marroquino, como se fossem todos a mesma pessoa! Pá, e estou a falar de marroquinos porque estou aqui. O mesmo vale para os africanos sub-sarianos, muitos deles que arriscaram a VIDA para poder vir para a mágica terra de oportunidade que é Portugal para andarem a vender cenas na rua para enviar dinheiro para a malta em África.

Agora o que é estúpido é o pessoal não se aperceber que isto é uma cadeia incrível... porque já ouvi comentários depreciativos de alguns marroquinos sobre outros povos, por exemplo. E, como disse, já ouvi comentários tugas sobre os de Marrocos. E sei que já comentários depreciativos sobre os tugas noutros países para onde estes emigram. E quando sabemos disso podemos sentirmo-nos agastados, sem sequer perceber que fazemos o mesmo! Ah, é ridículo! Toda a gente, seja em termos individuais ou em características comuns a nações, raças, deficiências, seja o que for, tem algo que se possa apontar. E se não queremos que peguem nessas nossas cenas, porque pegamos nós nas outras? Porque é que temos de ser tão falíveis e julgar, e separar e, de certa forma, odiar?

Cenas.

Estou aqui com algumas dificuldades na linha do tempo. Acho que estou a perder um dia algures ou então a confundir os dias da semana, mas não me apetece ir ler para trás.

Quando chegámos a Casablanca arranjámos um cafézito para ver se tínhamos tido alguma sorte com o couchsurfing. E tínhamos! O Abdul podia albergar-nos. Ainda deixei uma mensagem no grupo de Casablanca do couchsurfing a ver se podia usar a máquina de lavar de alguém, mas quando me responderam já tinha bazado...

Fomos dar uma volta pela movimentada cidade de Casablanca, comprando um biscoito aqui e ali, enquanto caminhávamos lentamente a caminho do nosso ponto de encontro com o Abdul. Quando este apareceu, era logo todo boa onda e boa pinta. Primeiro fingiu ser alguém que simplesmente nos queria cumprimentar. Depois lá disse que era ele mas mesmo assim estava sempre na brincadeira.

- Invejo-vos, pá! As pessoas dizem que me invejam por causa do meu trabalho, mas eu invejo-vos a vocês! – dizia o nosso anfitrião com o seu sorriso que me pareceu de imediato ser-lhe característico. Era um rapaz bem parecido, cabelo penteadinho para o lado e trabalhava numa empresa estrangeira, gerindo uma equipa de engenheiros. Entrámos no seu apartamento e estavam lá dois rapazes a enrolar um charro. O apartamento era simples. Tinha uns sofás na sala, uma televisão, e alguns elementos marroquinos, como uma abóbada e umas colunas com uns azulejos castanhos. Sentámo-nos e estivémos à conversa, maioritariamente com um dos seus amigos, que só falava espanhol, e que nos perguntou que fé tínhamos. Eu disse que não acreditava em nada e ele fez em esgar do tipo “iá, estes ocidentais e o seu ateísmo”, mas sem ser má onda. Eu disse que até gostava de crer, pois a minha VIDA seria mais fácil e teria mais sentido, dizendo ele que sim com a cabeça. O Abdul também era crente, apesar de não praticante, tal como o seu amigo de trinta anos. Surpreendeu-me um bocado o facto do nosso anfitrião ser crente, porque não tinha pinta disso, se é que há uma pinta disso.

Eu tenho muito a dizer sobre religião, mas quando conheço alguém que é crente num contexto destes não me vou por a dizer que acho tudo uma parvoíce, que um livro tenha vindo dos céus e cenas do género. É sempre preciso um gajo perceber o contexto e saber como dizer as cenas. Não devemos nunca ir contra aquilo em que acreditamos, mas podemos dizê-lo de várias maneiras. Na verdade, a maneira como o amigo do Abdul e o próprio Abdul eram religiosos, ou como me pareceu, não me faz confusão nenhuma, porque cada um tem a sua cena. Porém, as imposições e restrições sem sentido a que a religião obriga é das cenas que para mim não tem sentido. “O Corão tem tudo! É um mapa para como ser”, dizia o amigo do Abdul. Ora eu sei que o Corão, tal como a Bíblia, tem passagens muito brutais. Cenas más, mesmo. Contudo, nunca li realmente este livro, apesar de ser essa a minha vontade, para poder argumentar com conhecimento de causa, pelo que não fui por aí. Também tem cenas fixes, como alguns dos mandamentos da bíblia, por exemplo...

A dada altura o Abdul dizia que, de acordo com o Islão, não nos devemos zangar com nada, porque isso faz parte do plano de deus. Eu sou todo a favor de não nos zangarmos com nada, porque a tranquilidade deve imperar sempre. Faz-me sentir melhor. E a todos, acho, apesar de muita gente não saber como o fazer. Contudo, depois, quando falávamos de céu e inferno, eu questionei o facto de, se tudo faz parte do plano de deus, como é quer algumas pessoas vão para o céu e outras para o inferno? Pois se eu tivesse nascido noutro ambiente, talvez acabasse por ser uma pessoa terrível... e se deus me pôs lá, a responsabilidade não devia ser dele? Não estou aqui a dizer que quem faz cenas más não deve ser responsabilizado. Mas quando falamos do plano de deus, há peças que não encaixam.

- Eu também tenho questões como tu... – dizia o Abdul – Tipo... Já pensei que, se eu nascesse nos Estados Unidos, por exemplo, será que era muçulmano?
- Não eras – disse.
- Pois, não sei... Mas ainda assim, há uma fé cá dentro, que não tem explicação! – e é aí que os crentes me perdem. A cena da fé! O conceito de fé para mim também não tem sentido nenhum. Porque ter fé é acreditar em algo sem provas, e ainda que tudo leve a crer o contrário. É como um jogo de putos em que alguém diz “É assim porque eu disse que é assim!”.

Quando perguntei ao Abdul acerca dos seus sonhos, falou-me em ir para os Estados Unidos. E já não era a primeira vez que mo diziam. Parece que por estes lados há um bocado de febre americana. “Engraçado”, comentava, mais tarde, com o Joel, “Há Ocidentais que se apaixonam por estes modos simples de VIDA e querem algo mais assim... e o pessoal aqui quer algo mais como o que lá está”. Como se andássemos sempre atrás daquilo que está do lado de lá.
               
Fomos comer qualquer coisa, que o Abdul simpaticamente pagou, e acabámos o serão na descontra a comer umas sanduíches e a ver uns episódios.

sexta-feira, 21 de março de 2014

O Conciliar

De repente, apeteceu-me chorar. Não saiu daqui nada, tudo continua na mesma. Os velhos atrás de mim continuam a ver o rei na televisão, o escuro ainda persiste lá fora, e os meus olhos ainda estão secos. Mas, quando clicando para a próxima fotografia, te vi a aparecer em Sevilha, senti  como se me tivesse esquecido como respirar por um segundo e um fogo subiu ao meu olhar. Penso em ti, miúda.
 
Todos os dias mais longe, mas penso em ti. Queria-te aqui comigo, queria que pudesses, ou quisesses, ou seja lá o que for –lembro-me como ficaste quando disse que não querias–, viver estas coisas comigo. O mundo tem mais piada quando estou a vê-lo, e a minha VIDA tem mais piada quando o vejo contigo.
 
Mas estás agora longe... ou estou eu agora longe... e penso naquilo que o futuro nos reservará, e em como vou conciliar tudo o que existe fora de mim com tudo o que existe lá dentro. O mundo sempre me chamará, isso já percebi. Acho que já percebemos. Espero que tu nunca precises de fazê-lo.
 
Preocupa-me, por vezes, como vou estar com estes chamamentos, o silencioso e o estrondoso...
                 
Não é muito justo para ti, eu sei... Sei que me percebes, mas não sei se, no fundo, gostarias que fosse diferente. Mais igual. 

Detesto a ideia de estares à minha espera. Se não gosto que esperem por mim para encontros, que sentir se a pessoa mais mundo que tenho esperasse por mim para a VIDA? Detesto esse sentimento com um medo visceral de que seja real, e sonho com este futuro que anda por aí perto, um futuro em que eu consiga estar contigo, viajando em sonhos, esperando as alturas em que se tornam realidade, sem que o tempo de espera seja uma intermitência da VIDA.
                 
Quando estou contigo nunca estou em intermitência. Há sonhos e viagens que vão acontecer, mas quando te estou a tocar estou ali. Quero, para sempre, convidar-te para cada sonho. Quero, para sempre, que haja uma viagem ao virar da esquina, e que sejas tu a estrada e eu próprio ao mesmo tempo e nunca o edifício que nos separa.

21h03, 6ª, 28-2-14
A caminho de Essaouira, Marrocos

domingo, 16 de março de 2014

Problemas Com a Bicicleta e a Hospitalidade Marroquina



Bazei de Tanger com o Joel em direcção a qualquer lado. Ia acampar pela primeira vez nesta viagem, e guardava algum entusiasmo por isso, sendo que tenho em mente fazê-lo umas cem vezes. O continente africano não é exactamente como o asiático no que toca a preços, pelo que acampar se torna uma opção bastante porreira. Além disso, quero que esta viagem seja esta viagem. Quero que seja diferente, e quero entregar-me ainda mais aos sítios. Dormir cá fora parece-me uma boa maneira de o fazer.

Como a nossa viagem do dia anterior tinha sido um pouco custosa para mim, estava com receio que fosse atrasar o Joel. Mas, na verdade, seguimos tranquilamente, e andando em plano até curto ir um bocado mais rápido do que o meu amigo.
                
Mal saímos da grande área de Tanger, Marrocos começou a dar uns ares diferentes da sua graça. Chegámos à praia rapidamente, e com uma suavidade incrível pedalámos sempre. O sol na mente e a bicicleta no futuro. Parávamos de vez em quando para tirar fotografias ou comprar algumas cenas para comer. Como em Assilah, onde comprámos uns vegetais e uns biscoitos perto de um castelo português.
                 

Tínhamos feito 68 quilómetros quando o Joel abrandou e sugeriu entrarmos mato adentro por ali. Caminhámos com as bicicletas ao lado p’rai vinte minutos e lá assentámos arraiais. Posto isto cozinhámos. Ora uma grande cena que me faltava era um fogão. Queria comprar um de vários tipos de combustível, porque para cenas tipo camping gás não é muito fácil arranjar recarga por África. E como tinha de ser todo estriquinaine, acabei por não trazer nada. Ainda tentei em Espanha, mas nada. Pois o Joel também não! O que ele tem é uma lata de cerveja! P’rai dois centímetros do fundo de uma lata de cerveja, e mais o topo da mesma. No topo faz uns vértices para dentro. Põe em cima do fundo, mete álcool etílico e temos um fogão! Adorei aquilo! Se conseguir arranjar garrafas de álcool (nem que tenha de comprar sete de cada vez) África fora esta é a melhor cena de sempre!
                 
O Joel cozinhou a massa enquanto eu cortava uns tomates e um abacate. Comemos bués e estava fixe. Antes disto ainda tínhamos tentado fazer uma fogueira, mas hora e meia depois o fogo ainda não queria nada connosco, pelo que desistimos. Estava a gostar do Joel. Tínhamo-nos conhecido às três pancadas e, se por um lado não andávamos já aos abraços como quando recém-amigos apanham a primeira bebedeira juntos, por outro ‘tava-se bem, não havia grandes cenas. Éramos educados um com o outro, mas genuinamente. “Por mim posso ir p’ráli ou p’ráli, que achas?”, perguntava um. “P’ráli”, respondia outro. E lá íamos.

Metemo-nos a caminho no dia seguinte, e fomos desaparecendo da costa. Na verdade, correcta ou erradamente, tinha a nítida sensação de que já tínhamos subido bastante, pela geografia dos locais, mas não o estava a sentir. Andávamos bem, ao nosso ritmo, e parámos ainda faltava uma hora e tal para o sol se pôr. O Joel curte (ou curtia, sendo que esta noite, por exemplo, estamos bastante à vista) acampar em sítios onde ninguém veja. A mim não me faz diferença. Pensando que o meu amigo o preferia por uma questão de segurança, lembrei-me de sugerir simplesmente pedirmos a alguém para acamparmos no campo deles. Depois de termos jogado uma futebolada de dez minutos com uns putos, andámos uns quilómetros, e parámos na primeira casa com alguém cá fora. Tentei começar em francês com aquele homem p’rai de trinta e tal anos e os dois adolescentes, mas vi logo que não ia dar, pelo que, ao que me parecia bastante bem executado, expliquei que queríamos dormir com a nossa tenda ali, no campo deles. Os gajos eram só sorrisos e ‘tá-se bem, pelo que lá nos afastámos, quando começava a ficar desconfortável estar ali em silêncio a sorrir e olhar uns para os outros, e comecei a tirar as cenas. Eis que aparece uma senhora de bandolete e pijama cor-de-rosa e vem dizer que não tinham quartos. Iá, foi o que os outros ménes tinham percebido – que estávamos à procura de um quarto! Expliquei a nossa cena, e a mulher pede-nos a identidade. Pediu desculpa, que há pessoas de bem e de mal e não sei quê, eu disse-lhe para não se preocupar, enquanto lhe estendia o meu cartão do cidadão. Ora como a senhora não tinha ali nenhum scanner para ver em quantos países éramos procurados, não percebi muito bem a necessidade daquilo. Talvez ela quisesse estudar a nossa reacção quando nos pedisse a identificação – se hesitássemos, era porque éramos procurados por termos queimado doze igrejas em Bratislava! No final de tudo apercebi-me de que tinha tido uma conversa em francês sem problema nenhum. Ter jeito para línguas é demais!
                 
Talvez estivéssemos à espera que nos viessem oferecer um chá ou algo assim, mas nada feito. Na verdade, e apesar de já ter estado em Marrocos, estava a curtir este povo. Guardo simpatia pelos povos muçulmanos. Como já viajei um bocado, sinto-me no direito de tirar ilações das minhas experiências, e a verdade é que sinto o povo muçulmano mais simpático e hospitaleiro do que os restantes. Mas pode ser que isto advenha de, também na generalidade, serem países menos desenvolvidos. E posso estar então a confundir conceitos, numa falácia de lógica. A simpatia a ser uma característica comum aos países menos desenvolvidos também é algo que faria sentido. Porque no Ocidente nós cultivamos o individualismo de uma maneira desenfreada. Regamos todos os dias a planta do nosso ego, e acabamos por achar que somos especiais, incríveis, intocáveis. Achamo-nos tão importantes que acabamos por achar que, por isso mesmo, há muita gente dedicada a nos lixar a VIDA. Somos tão importantes que acabamos por nos proteger de uma maneira que prejudica quem precisa de ajuda. Como quando ando à boleia. O pessoal quer proteger-se tanto da minúscula possibilidade de eu lhe fazer mal, que acabam por não me ajudar. Apenas um pequeno exemplo que, infelizmente, creio ilustrar, de certa forma, o comportamento geral.
               
Na noite anterior, a primeira de campismo, tinha rapado um frio tremendo. Nessa noite, a da senhora da interpol, apesar de não ter tido tanto frio, acordei ao som da chuva. Que lindo! Nada disso! Ainda por cima tinha deixado as minhas botas lá fora! Isto porque o cheiro a rosas que emanava era demasiado intenso.
                 
Saí, cumprimentei o céu chuvoso e as gotas na cara, olhei para o lado e reparei que se metesse um peixe nas minhas botas o gajo conseguia viver, bastava inclinar-se um bocadito. Lá desmontei a tenda, toda molhada, calcei as botas, a fazer chéque chéque, e arrancámos, debaixo de chuva. Estávamos p’rai a cem quilómetros de Rabat, a capital, e na noite anterior tinha enviado mensagem ao Vangelis a pedir-lhe para enviar uns pedidos de sofá em meu nome para esta cidade. Se tivéssemos sofá, ia até Rabat custasse o que custasse. Estava encharcado, queria tomar banho e relaxar um bocado. Se não tivéssemos sofá, íamos até onde desse. Além destas desvantagens, o Vento também não estava a ajudar, e por tudo isto eu estava em modo-missão. Não estava a curtir, queria era chegar ao destino.
                 
Até que o dia fio passando, e a paisagem foi mudando. Chegámos a Kenitra, comemos qualquer coisa e desapareceram duas horas. Foi incrível. Chegámos às duas e pico, comemos, andámos um pedaço e de repente eram quatro e tal. Saímos de Kenitra e o céu começou a abrir. Fomos seguindo sempre e vimos uma estrada que dava para a direita e talvez para... sim, a praia! Já tinha saudade. Afinal de contas tinham passado quase dois dias...
                 
Pedalámos, tentámos meter-nos mato adentro mas não dava. Continuámos e chegámos à vila. Era uma vila constituída por alguns quarteirões e uma marginal com alguns restaurantes e tascozitos onde o pessoal se encontrava e fumava uns valentes canhões. Aliás, este é um factor marroquino. Apesar de já ter noção que era assim, não estava à espera que fosse tanto assim. Aqui fuma-se ganza como quem bebe um fino em Portugal. Um fino talvez não. Fuma-se ganza como quem bebe uma bebida branca em Portugal, em termos de prevalência.
                
Acampámos numa duna. O mar estava ali, a dançar sozinho, e nós a curtir os segundos que passavam da existência de quem está em Marrocos e tem toda uma VIDA para curtir. Fomos dar uma volta pela vila, comendo uma cena aqui, uma cena ali, e regressámos à base passado hora e tal. Descontraímos, comemos uma sanduíche, e depois sentámo-nos cá fora à volta do fogão e debaixo das estrelas a conversar, cozinhar, e eventualmente comer. Na noite anterior tínhamos ficado na minha tenda umas duas horas no paleio. Nesta noite foi a vez da tenda do Joel.

Hoje acordámos às nove e tal. Como ontem, ao chegar, me apercebi que tinha partido um raio, virei a bicicleta ao contrário e comecei a empreitada de o arranjar. A primeira meleita da Bicicleta, que já fez p’rai 1500 quilómetros e ainda não teve um pneu furado! A cena é que carrego todo o meu peso nos alforges traseiros, e isso acaba por ser excessivo. Tenho de arranjar uns alforges para a frente.
                 
Com a bicicleta virada do avesso, apercebi-me que afinal tinha partido dois raios. Tirei a roda, e como estava a sentir-me um bocado Tóino pedi ajuda ao Joel. O rapaz também não sabia o que fazer. Parecia ser preciso retirar o carreto, e isso só numa oficina. Pensámos em ir até Rabat e arranjá-la lá, mas vendo o mapa parecíamos estar mesmo ao lado de Kenitra, novamente, pois para ir para a praia tínhamos andado um bocado para trás. Seguimos pelo mar e fomos dar aos subúrbios desta cidade. Perguntámos ao pessoal e lá fomos ter à loja. O Joel foi procurar comida e internet para enviar uns pedidos de sofá para Casablanca e eu fiquei lá à espera. Quando acabaram de arranjar uma das várias motorizadas que iam aparecendo com problemazitos, os rapazes cheios de óleo na cara dedicaram-se à minha roda. Ia aparecendo malta. Uns que falavam comigo em francês, outro que falava inglês, e um senhor mais velho com cara de simpático que falava comigo em italiano.
                
Tinha aceitado o preço de dois euros pelo reparo. Não sei se foi esticado por não ser de cá. E como não sei, prefiro achar que foi justo. Entretanto o Joel apareceu com comida, e quando me sentei lá no chão encostado à parede a comer apressaram-se a trazer-me um disco de esponja para me sentar e um jarro com água. E não ia ficar por aqui. Quando a bicicleta estava pronta, estendi-lhe cem dirham e o rapaz fez um gesto tipo “daqui a um bocado”. Na verdade, tinham-me perguntado se eu queria chá. E claro, tinha dito que sim. Pois na próxima meia hora o homem dedicou-se ao chá. Desde ir buscar mesa e cadeiras à loja do lado, a fazê-lo e esperar que maturasse. Se por um lado queria fazer-me à estrada, porque já tínhamos perdido algum tempo, por outro ‘tava-se bem ali, e não tínhamos perdido tempo nenhum porque estávamos a viver Marrocos.
                 
Nesse dia quase atropelei uma senhora. Ia atravessar a estrada, tinha olhado para os dois lados mas, por alguma razão, não me viu. A razante foi tão forte que lhe bati nos garrafões que trazia vazios. Tento tirar lições destas cenas. Tipo quando um homem abriu a porta do camião e eu quase levei com ela – agora tento inclinar-me sempre para o outro lado. No caso da mulher, agora uso sempre a minha campaínha.
               
Passámos Rabat, que pareceu ser porreiro, e seguimos sempre pela costa com tranquilidade. Quando o sol amaeaçava pôr-se virámos à direita para um campo antes da praia e pensámos em acampar lá. Perguntei a um senhor, em francês, se dava, mas ele disse que não. Vim a perceber que não me tinha compreendido. Ele tinha apontado “p’ráli”, e para lá fomos. Montei a tenda com alguma dificuldade. Isto porque ainda não a enrolo com perfeição, e no final não há espaço para as varetas. Pelo que tive de as levar em separado. E claro, a meio do caminho só as ouvi a cair no chão. Um rapaz apressou-se a juntá-las, e foi com algum desagrado que percebi que a uma das duas tinha-se partido o elástico, e as peças estavam todas soltas. Pois quando estava a montar a tenda, meti as varetas todas umas nas outras e estava a fazer aquele semi-círculo normal, quando uma ponta deslizou, e isso fez com que elas disparassem em todas as direcções. Perdi assim um e fiquei com a tenda toda torta.

Tínhamos já montado a tenda quando vemos um par de focos a aproximar-se. Um deles era o senhor que nos tinha dito que não podíamos lá acampar, o outro era, o que me pareceu, o seu patrão. Todo simpático começou logo por dizer para irmos acampar para a frente de casa dele. Dissemos que não era necessário, sendo que já tínhamos montado as tendas e o homem logo “sem problema, sem problema!”. Perguntou se tínhamos fome e dissemos que íamos cozinhar daí a pouco. Disse que jantava connosco, que éramos bem-vindos, e quando se foi embora ficámos sem perceber bem se nos oferecia o jantar ou se vinha jantar connosco o nosso jantar. O que era na boa, claro. Não passou mais de meia hora até aparecer o seu empregado/pastor e um puto com um tabuleiro com aquele chá marroquino maravilhoso e duas malgas com umas papas altamente! Faltava um toque destes à hospitalidade marroquina.

Ainda pedalei até a um café, de onde escrevi a primeira parte deste texto, e de onde procurei um sofá para o dia seguinte em Casablanca. Ao pedalar para esse café, sem alforges, apercebi-me que acho que vou continuar a pedalar quando voltar a Portugal. Sem alforges a bicicleta voava!