domingo, 25 de maio de 2014

Entrada na Guiné-Conacri


Lá fora há relâmpagos e trovões a saldo. Está na hora da chuva. E eu estou aqui dentro, no quarto do Mohamed, a ouvir Lisa Ekdahl, com o computador ao colo, enquanto ele foi rezar. Estou, definitivamente, numa nova etapa desta viagem. E estou a adorar! O Senegal, ah Senegal, foi muito bom, mas agora percebo que foi fácil, muito fácil. África a sério? Sim. Mas não tanto, talvez. Se bem que, que sei, eu que estou ainda na Guiné-Conacri?
                
Ontem, aquele grande dia que, tanto me faz sentir inveja como pena do meu eu dessa jornada, parti de Saltinho com a ideia de mudar de país. Estava a quarenta ou cinquenta quilómetros da fronteira, e depois tinha Boke a setenta e poucos quilómetros daí. Daria para fazer tudo no mesmo dia? Daria. Se estivesse em Marrocos, na Mauritânia, Senegal... Mas aqui a estória é outra, aprenderia.
                
De manhã sentia-me um bocado em baixo, meio tristonho. Não estava a curtir muito a dificuldade de encontrar água ou o que comer, e questionava-me se seria assim daí em diante. Havia algo mais, mas não sei bem que era. Chuviscava, e pensava também no que faria quando começasse a chover à grande. Havia ainda algo mais, mas não sei... talvez aquela tristeza que aparece sem grande razão. Topei-a logo quando me senti irritável logo de manhã com algo que um gajo fez, já nem me lembro, o que quer dizer que não foi nada de especial.              

O alcatrão deixou-me a uns vinte ou trinta quilómetros antes da fronteira, quando dei o meu passaporte para o pessoal carimbar do lado da Guiné-Bissau. E depois também me deixou a estrada, pouco antes de chegar à Guiné.
- A fronteira é para ali, não é? – perguntei a uns militares que bebiam chá, apontando para a continuação da estrada de terra batida.
- Não, é para ali! – responderam, apontando para umas casas de telhado cónico de palha. Meio confuso, segui, e realmente vi um caminho, mas não podia ser aquilo.
- A fronteira é por aqui?
- Sim, é – responderam. Aquilo era um trilho pelo meio da floresta. Tão espetacular quanto incómodo. Mas que se lixe, vamos! Lá fui pelo rego até que vi uma bandeira parecida com a da França e assumi ser a fronteira. Olhei à volta e vi um militar, depois outro, numa casita sem janelas. Aliás, era um muro a toda a volta, um telhado de palha, uma cama e uma secretária. Entreguei o meu passaporte ao homem que, confuso não sabia bem que fazer. Ia aparecendo um ou outro para dar o seu bitaite e o gajo às tantas começou a escrever no passaporte. Fiquei um bocado de pé atrás com aquilo, até que ele lá desencantou um carimbo de dentro de uma gaveta da secretária. Coisas com carimbo são sempre mais credíveis.
                
Enquanto tudo isto se ia passando eu comia o meu almoço, uma baguete com uma lata de sardinhas e uma garrafa de água de litro e meio que um guarda me tinha oferecido. A fome apertava, e quando perguntei, do lado de Bissau, se havia restaurantes do outro lado da fronteira, um guarda disse-me “Sim há muitos, há muitos!”. Pois ele se calhar pensou que eu estava a perguntar do outro lado da fronteira tipo no país inteiro. No país inteiro realmente há bastantes. Não há muitos, mas há bastantes. Do outro lado da fronteira mesmo, é que não havia nenhum!
                
Despedi-me dos simpáticos senhores e pedalei um bocadinho vila dentro, até que encontrei uma senhora que vendia umas cenas tipo umas bolas de berlim sem açucar ou creme. Não era lasanha, mas achei que provavelmente não ia encontrar muito mais até fosse onde fosse que eu ia. Comprei dez, a pensar que ia ser isso o meu jantar. Continuei mato adentro, embasbacado com o cenário e com aquela estrada. “Então por isso é que a estrada era apresentada a tracejado no lonely planet”, pensei. Ainda encontrei uma senhora que vendia bolachas, mas só tinha francos da Guiné suficientes para um, que trouxe.
                
Estava com vários sentimentos ambivalentes dentro de mim. A tristeza da manhã permanecia, talvez exacerbada pela dificuldade em pedalar por aqueles lados. Ao mesmo tempo, essa mesma surpresa com todo o meu ambiente, também me deixava tão admirado, que não tinha como não traduzir isso por vezes num sorriso. Esse sorriso entrava dentro de mim e lá me amenizava. A estrada alaranjada estava a custar bastante. Subia e descia constantemente, e tinha de pedalar com cuidado entre calhaus e pedritas. Ao mesmo tempo, eu estava no meio da floresta. Mesmo no meio da floresta. Estava com alguma fome, tanto no estômago, como na mente, pensando que não sabia como me ia safar. Mas ao mesmo tempo sabia que algo haveria de acontecer.
                 
Quando vi o rio delirei. Tinha feito uns quinze quilómetros em p’rai hora e meia. Vi o rio ao longe mas nem me passou pela cabeça não ter ponte, e perguntei a um  guarda por quem tinha passado se se podia nadar. Ele, não entendendo a minha pergunta, até porque “nadar”, em francês, não deve ser “nadê”, disse que eu chamava o rapaz da piroga e ele vinha-me buscar. Aproximei-me então e lá vi o rapaz, lá ao fundo. Tinha à minha frente um belo cenário. A estrada descia com alguma agressividade e acabava no rio que, calmamente, seguia para a esquerda. Mesmo à minha frente uma piroga boiava, ao longe via um camião no meio da água, que mais tarde percebi estar abandonado sob um transporte. Do outro do rio casitas com telhado de palha.
                
Foi aqui que o dia começou realmente a virar. Foi quando estava naquela piroga, que o rapaz de t-shirt que já foi branca há muita terra atrás comandava, e olhava à minha volta, piscava o olho à Mónica a ver se não ia mesmo cair ao rio, e tocava ao de leve na água com as mãos, que comecei a apreciar a loucura daquilo tudo. Eu estava ali! Eu estava ali! No meio da floresta, com aldeias de dez ou vinte pessoas de vez em quando, de pessoas que vivem indo apanhar fruta! Eu estava ali! Saí da piroga, os putos acenavam, um ou outro choravam por ver um branco. Encostei a bicicleta, tirei as botas, as meias, os calções e a t-shirt e entrei! Livre! Se aquele rio me tinha começado a carregar as baterias quando o avistei, naquele momento, dentro dele, todo eu era outro. Apercebi-me, mais que nunca, que vivia um momento único.
               
Com a minha nova VIDA, deixei a aldeia. Não andei muito até que começou a chover. A primeira  chuva africana. “Tenho de parar no próximo sítio”, pensei. Virei à esquerda, e eis que dou com, sei-o hoje, Kissomayo, uma pequena aldeia. Abriguei-me debaixo de um coberto de palha, e a canalha rodeou-me logo, também o fazendo um senhor com cara de simpático, a quem perguntei se podia meter a minha tenda ali. Iam chegando mais putos com mangas, que me entregavam. O homem disse que ali não era bom, e levou-me para outro, que não só não tinha uma fenda no meio, como também tinha um plástico por dentro e tudo! Era o sitio perfeito! Apareceu outro a dizer que eu devia ficar à beira da polícia que estava ali ao fundo, mas disse que não havia problema.
                
Como que a fazer de parede tinha, só de um lado, uma mesa de lado. Com a bicicleta já abrigada, pousei os cotovelos na beira da mesa e fiquei a apreciar. Outros cobertos de palha estavam a ser feitos, ou estavam já destruídos. Árvores por todo o lado, e uma estrada que vinha da direita e me tinha visto chegar. Outra, mais abaixo, que vinha de Bissau, vim a saber. Putos. Quinze ou vinte putos a brincar. Chuviscava e eu percebi, neste instante, que estava numa nova fase desta viagem. E estava a adorar. Tinha começado o dia meio cocó, tinha tido uma ou outra mudança, um ou outro baque, e eis que estava a adorar cada segundo não obstante os pés molhados ou não ter perspectiva de jantar nem pequeno-almoço. “É por isto que eu viajo”, pensei. Pelo improviso, pela malta a ser porreira connosco. Até a chuva na testa me agradava, parecia difente. Sim, é água, simplesmente mas, para mim, a chuva em África, por mais igual que seja à da Europa, é diferente, sei-o agora.
                
Olhei para trás e, vendo as seis ou sete mangas num canto dos meus aposentos, lembrei-me do Dizzy, um vegano irritante que conheceram em Phuket, na Tailândia, três anos antes. “Espero que ele tenha razão e um gajo possa mesmo viver só de fruta”, pensei, achando que isso, as bolas de berlim e o pacote de bolachas seriam o meu sustento.
                
Montei a tenda e fui dar uma volta. Desci, segui uns metros pela estrada e um senhor chamou-me. Era o Youssouf, o chefe da polícia. Levou-me para o seu escritório, uma casita de barro também sem janelas, e sentámo-nos para ele apontar os meus dados. Chegou entretanto o Cond, o adjunto, um homem magro, com aperto de mão forte, e daqueles que entra a matar e depois acaba por ser um gajo simpático.
                
- Mas porque é que tu viajas, qual é o teu propósito? Queres fazer o quê? Passas aqui, e vais à tua VIDA!
- Sim, é verdade... eu viajo para conhecer... novos países, novas culturas... também para quebrar barreiras e estereótipos... por exemplo, muita gente pensa que África é muito perigoso. Eu gosto de ir aos sítios, apreender a minha própria realidade, e depois partilhá-la.
- África é perigoso?! O Ocidente é que é perigoso! – e continuou um pedaço sobre o facto de um gajo poder andar em África na boa e no Ocidente é sempre preciso papéis a toda a hora e cenas do género – Tu, por exemplo, estás aqui a falar comigo, mas no teu país estavas-te a marimbar para mim – aqui tive de travá-lo.
- Hei! Tu não me conheces! Não me conheces de lado nenhum! Eu não sou assim. Tu tens uma ideia das pessoas do Ocidente, que não é necessariamente verdade, e pensas que toda a gente é assim. Mas, para mim, uma pessoa é uma pessoa, seja aqui, no Ocidente, ou na China – e senti que aqui o homem aligeirou. Quase parecia que me estava a testar.
- Há algum sítio onde se possa jantar aqui? – perguntei ao Youssouf.
- Tens ali aquele restaurante – respondeu, apontando para o outro lado da pequena rua.
- Que é que eles têm?
- Ovos e café.
- Ah... pois eu queria algo que eu pudesse comer e fazer “aaahhh” – disse, com a mão no estômago. O homem achou piada a isto e disse que comeria com eles, o que para mim foi como se me tivessem dado oito quilos de ouro. Estava safo!

O Cond levantou-se, disse para lhe ir mostrar o meu hotel, e quando chegámos ele disse “Ah, estás bem”, como se eu estivesse realmente no Sheraton, e disse para eu descansar que depois me vinha chamar para comer. “Mas que pessoal é este?”, pensei.

Dormitei um pouco, enquanto uns putos do lado de fora ia chamando “porto, porto!”, aparentemente como se diz “branco” em Peul, e fugiam a sete pés quando eu simulava abrir a tenda, até que o Cond lá me veio buscar. Fora de uma casinha, uma senhora cozinhava com três grandes tachos à frenet, sentada num banquinho. À minha frente tinha uma travessa de arroz com um molho vermelho que dava para três pessoas comerem bem, e dois sacos de água potável. Comi tudo. Quando, no final, perguntei se tinha de pagar alguma coisa, o Youssouf disse “Não, ‘tás em África, isto é hospitalidade!”, enquanto, ao mesmo tempo, a cozinheira gritara um “Eh!”, como se eu tivesse perguntado se os tachos eram feitos de esferovite.

De barriga cheia deitei-me nessa noite, deliciado com o meu caro ser-humano.

Hoje acordei, desmontei a tenda, e fui ter com o Youssouf para trocarmos contactos. Fui ao “restaurante” e tinha acabado de dar a primeira trinca na minha sandes de omolete quando o chefe da polícia passou e disse “Pedro, vamos comer!”.

Tinha setenta e tal quilómetros até Boké, que seriam feitos à justa tendo em conta a estrada que abracei. Apesar do sobe e desce constante, e das inúmeras poças de água, fez-se melhor do que no dia anterior. Só que caí duas vezes! A primeira foi uma semi-queda. Um mero deslize do pneu de trás e fui ao chão, sem me aleijar em lado nenhum. Já na segunda, ia a mais de vinte à hora, falhou-me ali um milímetro na beira de uma poça de água, a roda da frente deslizou e fui de zorro. Rasguei os calções e a minha anca direita ganhou uma nova cor. Cor carne-viva. Mas tudo tranquilo. O mais importante é que a bicicleta continuava impecável. Muito me admirava a Mónica, portando-se como uma campeã apesar de pedalar sobre pedras bicudas e com tanta trepidação que poderia fazer qualquer parafuso saltar.

Estava nas últimas quando cheguei ao alcatrão de Boké. Já andava com um ouvido entupido e já bocejava, os sinais da canseira, que às vezes leva à Matadeira. Fui a um hotel perguntar o preço e o rapaz disse-me que era barato, vinte euros. “Não, obrigado”. Fui até ao centro, e procurava um sítio com internet quando falei com o Mohammed, que dizia não haver um. Perguntei-lhe onde podia comprar um cartão sim e ele levou-me a uma loja. Perguntei onde havia hotéis e ele disse que era lá ao fundo. Perguntei se podia meter a minha tenda em casa dele e ele disse que sim. Assim, sem mais nem quê.

Viemos para casa dele, deixei as cenas no seu pequeno quarto e fomos ao rio para eu tomar banho enquanto ele, por sua iniciativa, lavava a minha roupa. Um muçulmano de trinta e cinco anos que reza cinco vezes ao dia e que, ao que parece, realmente pratica a sua religião.


22h03-3ª-20-5-14

Boké, Guiné-Conacri

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Laayoune e as Conversas Sobre Igualdade

- É na boa eu ficar duas noites? – tinha perguntado ao Bakkar, pouco depois de ter chegado a Laayoune.
- Sim, claro, mi casa su casa! – respondeu.
- Quando é que vais embora? – perguntou, no meu segundo dia.
- Amanhã.
- Não, vais depois de amanhã!
- Hum... posso pedalar amanhã cem quilómetros, depois apanho boleia para trás, fico aqui, e no dia seguinte faço o inverso e continuo...
- Não. Ficas aqui mais uma noite, e depois no dia seguinte vais.
- Hum, okay... – assenti.
- Quando é que vais embora? – perguntou-me, quando acordámos no último dia.
- Vou hoje, pá.
- Não, vais amanhã!
- Não, méne, vou mesmo hoje. Obrigado.

Acordámos depois da primeira noite e tomámos o pequeno-almoço. Passámos a tarde a dar umas voltas, estilo Bakkar. Caminhar um pedaço, cumprimentar alguém, ir à loja de um amigo, passar por casa a ir buscar qualquer cena, ir ao mecânico ao lado de casa da irmã beber um chá. À tarde, depois de comermos qualque cena, voltámos a falar de religião. O meu anfitrião, apesar de não ser muito praticante, era muçulmano devoto, e cria ser mesmo a melhor religião, algo comum aos muçulmanos que conheci. Senti que podia explorar um bocado a cena com o Bakkar, e aconselhá-lo a abrir a mente um bocado. É legítmo questionar-se quem sou eu para pedir tal coisa, mas acho que o tema e a minha posição sobre o mesmo é forte o suficiente para que o possa defender venha quem vier.
                
- O Corão supostamente é um manual sobre como ser, ao que parece. Mas o Corão foi escrito há quase mil e quinhentos anos... Há muita, muita coisa, que não se adequa! Como a cena do testemunho de um homem valer o testemunho de duas mulheres. Pá, isso é uma cena que, quer queiramos, quer não, não faz sentido nenhum!
                
- Mas, sabes... – dizia o meu amigo – O leite de uma mulher que tem um filho é muito mais forte do que o leite de uma mulher que tem uma filha – Isto demorou algum tempo, porque o inglês do Bakkar não era perfeito e eu não estava a conseguir perceber o que ele queria dizer. – E isso quer dizer alguma coisa...
                
- Não, pá, não quer dizer nada! Em primeiro lugar, acho isso difícil de acreditar, mas que se lixe, não interessa... Mesmo que isso seja verdade, isso não pode nunca, nunca, ser argumento para defender que o homem é mais forte, potente, inteligente ou superior à mulher! Porque se queremos usar argumentos desse género, méne, há mil para cada lado. Eu também podia dizer que é a mulher quem transporta dentro de si o milagre da VIDA e que, por isso, devia ser superior! Mas não digo, porque também não faz sentido nenhum!
                
Daí evoluímos para algo que eu tinha dito anteriormente. Ele tinha-me perguntado se eu preferia Marrocos ou o Saara Ocidental, e eu tinha dito que tinha acabado de chegar ao Saara, e não podia responder com exactidão. Mas, ainda assim, disse-lhe o que me agradava por estes lados, e o que me desagradava, e o que me desagradava, e desagrada, está relacionado com o argumento no Corão sobre o testemunho da mulher valer menos, de certa forma.
                
- Uma coisa que eu não curto aqui é a diferença entre o homem e a mulher. Vais a qualquer café e é só homens! Não vês mulher nenhuma! – disse.
- Mas elas podem ir!
- Será que podem? Quer dizer, eu imagino que não é ilegal... mas isso não quer dizer que possam, no outro sentido da palavra. Como é que era se uma mulher fosse a um café sozinha e estivesse lá a fumar um cigarro?
                
- Ah, o pessoal ia falar... não era bom – exacto! E aqui está uma das razões pelas quais é bom viajar! Eu sei que sou muito crítico em relação à nossa sociedade ocidental, e várias vezes a comparo com estes sítios e a deixo numa luz fraquinha. Mas isso é porque eu almejo a melhor sociedade possível, onde primam a igualdade e o amor, a frontalidade e o respeito, a. E por isso, apesar de não ser nenhum revoltado, continuo a reparar nas coisas que estão mal nos nossos mundos, e talvez falando disso, e sendo eu a pessoa que acho que deveria ser, talvez esteja a fazer a minha pequena parte para melhorar. Ora, com esta cena em particular, da desigualdade que vejo entre homens e mulheres por aqui, digo que é essa uma das boas razões pelas quais devemos viajar, porque quando vemos algo melhor noutros lugares podemos tentar trazer essa qualidade para o nosso lugar, e quando vemos algo pior, apesar de, na grande parte das vezes, infelizmente, não ser o nosso papel tentar mudar, podemos, no mínimo, apreciar o bom que temos. Tenho pensado um bocado nisto... A nossa sociedade está longe de perfeita... as mulheres ganham menos que os homens para os mesmos cargos, há mais homens que mulheres em cargos de maior responsabilidade, os homossexuais não podem adoptar uma criança, o capitalismo, no seu esforço de ver as pessoas como números esquece-se da humanidade de cada um e a corrupção, tanto activa como passiva, é comum. Contudo, há vários campos em que estamos cada vez melhores. Eu acho que devia mudar tudo de uma vez, mas há muitos que dizem que não podem ser. Assim sendo, apesar de não ser de uma vez, as cenas vão mudando. Iá, as mulheres não são tão respeitadas, de certas formas, quanto os homens, mas há vinte anos era pior, e há quarenta o marido dava umas por fora e quem levava nas trombas era a outra! Iá, os homossexuais ainda não podem experienciar a maravilha que deve ser a paternidade, mas há alguns anos era perseguidos e ostracizados! Acho importante dizer que eu acho, mesmo, que devia mudar tudo de uma vez, e tudo o que ainda não alcançamos é vergonhoso e resultado de mentes atrasadas e de cimento que custam a felicidade de muita gente. Ilustro apenas estes pontos de uma luz mais positiva pois estou comparando com o que vejo noutros países e com o que se passava há muitos anos.

O Bakkar tinha dito que eu tinha de ir a casa de um amigo dele ver mais uns vídeos sobre o Saara Ocidental, eventualmente. Estávamos em casa do Sharon quando ele disse para irmos, mas o seu amigo não nos deixava sair. Estava na palhaçada a enrolar um turbante à volta da cabeça, com óculos escuros, ficando a parecer aquela imagem que temos de um terrorista, e quando nos tentávamos levantar ele dizia para ficarmos. Estávamos lá uns dez ou onze. “O Eduardo”, um espanhol que o Bakkar tinha albergado, “disse que este era o grupo de amigos mais maluco que ele tinha conhecido”, disse o Bakkar. É verdade que o pessoal era boa onda e bem disposto, mas não consegui deixar de pensar que o Eduardo, ou era um courista, ou não tinha conhecido muita gente. Atravessou-me assim de repente a mente as festas que tinha em minha casa, em Birmingham quando quase tudo, quase, quase tudo, era possível...
- Vamos lá amanhã! – pedi ao Bakkar.

- Não, vamos hoje! – respondeu o rapaz. E lá fomos. E o méne não tinha os vídeos... Estivémos lá um bocado, bebemos um chá, e bazámos, voltaríamos no dia seguinte, para o que seria uma tarde intensa. 

segunda-feira, 12 de maio de 2014

até Laayoune

Em Tarfaya passei a tarde do segundo dia no café. Troquei umas palavras no facebook com o Santana e contei-lhe dos meus problemas com os furos. “Deves ter algum espeto no pneu”, disse logo, “Vira o pneu do avesso e vê”. Achei que não devia de ser isso, porque já me tinham dito para limpar o pneu, a câmara de ar e a fita da roda, e assim o tinha feito com precisão, e nada. Contudo, a meio da tarde fui ver a miúda, e pensei em, em vez de passar um pano por dentro do pneu como no outro dia, passei o dedo. E eis que apareceu o espeto! E determinado! Tanto que precisei de uma pinça para o arrancar. Pois quando me tinham dito que eu devia ter alguma cena na roda, achei que fosse tipo umas pedritas ou cenas assim que depois com o peso fizessem furo. Nada disso. Senti-me em parte aliviado por ter resolvido o problema, e em parte meio estúpido por não ter pensado logo nisso. Às vezes não dá...


Bazei de Tarfaya em direcção a Laayoune, onde me esperava o Bakkar, a quem tinha enviado um pedido através do Couchsurfing, e que me ligara no mesmo dia. Entreguei o meu passaporte à entrada da cidade à polícia, e estava num país novo! O Saara Ocidental! Não fazia ideia do quanto este território quer e precisa ser um país independente até concluir a minha estadia na sua capital.
                
Estacionei a bicicleta à frente de uma oficina de bicicletas e enviei mensagem ao Bakkar, enquanto comia um rolo de canela que comprara ao lado. Entretanto um senhor amigo do dono da oficina meteu conversa comigo em espanhol e fomos falando um bocado, até que o meu anfitrião apareceu, p’rai uma hora depois. O homem que estava comigo estava a ficar chateado, e queria falar ao telefone com o Bakkar e tudo, algo que eu, delicadamente, recusava. Afinal de contas o gajo ia albergar-me, não queria estar ali a dar-lhe tripe por estar a demorar...
               
- O meu amigo é muito nervoso... – dizia o Bakkar, sentado à minha direita, no jipe do Ettaleb, onde a Mónica acompanhava, atrás. (Não resisti a dar um nome à Bicicleta. Estava a pedalar, olhei para ela, e de repente surgiu-me... Mónica!) E, na verdade, não passou muito tempo até o Nervous Guy, como lhe chamámos, tripar bués por o Bakkar estar a curvar-se um pouco para falar comigo e estar a tapar o retrovisor. Todo nervoso, a falar mal e a empurrá-lo com a mão direita. Descurti logo a cena.
                
Em casa do Bakkar tomei banho e quando mudei de roupa saímos. O sol já se tinha posto e esperáva-nos lá fora outro amigo do meu anfitrião, com o seu Fiat Punto de matrícula italiana. Entrámos e andámos a fazer nada p’rai duas horas. Conduzíamos para trás e para a frente, devagar, depois parávamos, o amigo do Bakkar ia Numseionde, andávamos mais um bocado, parávamos, caminhávamos um pedaço pelo mercado, voltávamos ao carro, parávamos para comer umas postas de peixe, e assim sucessivamente. Curti a cena, e achei engraçado como eu nunca fazia ideia do que se estava a passar, para onde íamos, durante quanto tempo. O Bakkar ia cumprimentando pessoas sempre um pouco por todo o lado, e ia-me falando da causa sarauí. Entretanto o amigo dele bazou e ficámos na loja de peixe do meu anfitrião. O Bakkar não tem nenhum emprego em particular, mas tinha p’rai três ou quatro. Vendia meteoritos que encontrava no deserto, às vezes por largas centenas de euros, tinha uma loja de peixe que às vezes abria, outras não abria, recebia algum dinheiro de rendas e também fazia negócio com carros comprados na Europa e vendidos lá.
                
Na loja de peixe mostrou-me alguns vídeos da violência ocorrida numa manifestação para um Saara Ocidental livre, dois dias dantes. Via-se manifestantes, poucos deles, no meio da rua, com uns cartazes e o sinal de V nas mãos, e a polícia a investir de forma brutal. Pancadaria para cima deles. Como o assunto era tão novo para mim, custava-me perceber um pouco a potência daquilo. Por ignorância minha, a primeira vez que tinha ouvido falar de um movimento e vontade de independência daquela parte do mundo tinha sido poucos anos antes através de um amigo, e muito ao de leve. Na verdade, não sabia nada. E, ao mesmo tempo, ouvir o Bakkar deixava-me renitente em assimilar aquilo tudo. Isto porque sentia algum ódio do Bakkar em relação aos marroquinos, e questionava se isso não toldaria o julgamento do que realmente se passava. Ou será que esse ódio era uma consequência do que se passava? Viria a descobrir, de certa forma.
              
- Os marroquinos são estúpidos!
- Não podes dizer isso, pá... Os marroquinos não são todos estúpidos, não podes generalizar assim!
- Okay, okay... eu percebo... Os marroquinos são estúpidos no que toca ao Saara Ocidental – lá amenizou. Lembrei-me de imediato da breve conversa que tivera com o amigo do Abdul, que tinha dito que o Saara Ocidental era de Marrocos... porque sim, e porque os sarauís não se sabiam governar, um argumento tão profundo quanto um prato.
                
Ia aparecendo pessoal na loja do Bakkar, e eu curtia aquilo. Havia ali um sentimento de coesão, de bairro e, no fundo, sarauí. Laayoune tem, disseram-me, dez marroquinos para cada sarauí, mas acho que, por andar com quem andava, não conheci muitos.
- Não tens amigos marroquinos? – perguntei.
- Lembras-te daquele gajo que me veio cumprimentar depois de irmos ver as corvinas? – perguntou, referindo-se a quando chegara um homem, abrira as portas da carrinha e logo se juntou uma multidão à volta dos enormes peixes – Era marroquino. E, mais uma ou duas vezes acho que falou com um marroquino na minha presença, fazendo sempre questão de mo dizer a seguir de onde essa pessoa era.
                
Sinto-me um bocado insensível ou até superficial ao admitir que às vezes me fartava um bocado aquela conversa do Saara Ocidental. Quase que me lembrava o vegano que conheci na Tailândia que fazia questão de me mostrar os vídeos de como os animais eram mal-tratados. A verdade é que todo esse celeuma colidia um bocado com o meu despeito pela noção de nacionalismo. Mas esse é o pensamento-reflexo, que deve ser travado. Às vezes temos ideias, ou noções, que sabemos estarem certas, ou assim o achamos, e depois quando aparece algo que vai um bocado contra essa cena custa-nos encontrar empatia e temos logo um instinto de negar. Vale a pena parar um bocado e pensar. Neste caso, por exemplo... Eu acho que o nacionalismo é mais uma cena que existe para nos separar enquanto humanos, ao invés de nos unir. Eu adoro que haja diferentes culturas no mundo, mas não pode ser uma linha criada pelo homem a dizer que este é melhor que aquele e deve ser separado. Ainda para mais quando somos todos um pouco de todo o lado. Para evitar cenas, acho que uma pessoa é de onde se sente, ou onde viveu a maior parte da sua VIDA. Acho que não tem nada a ver com ascendência, porque se assim for, que se encontre a pessoa cujos antepassados são todos do mesmo país. Não tenho dúvidas de que não há... porque o Homem não surgiu em vários sítios no mundo ao mesmo tempo. Sei que isto pode ser interpretado de várias formas, mas acho uma boa filosofia para nos termos a todos enquanto irmãos.
                
Mas também é certo que estas minhas ideias vêm de alguém que vive num país que fala a sua própria língua, que é antigo, muito antigo, e que foi ocupado pela última vez há muito, muito tempo. Nem eu nem os meus antepassados que conheço viram o seu país a ser oferecido a outro a troco de interesses, como foi o Saara oferecido pela Espanha a Marrocos em 1975.

Da loja de peixe fomos para outra casa do Bakkar, onde vivia mais ou menos, sendo que, ora dormia lá, ora dormia onde deixara a bicicleta. Dois dos últimos amigos do Bakkar, o Bashir e o Sidahmed, conhecido por Sharon, ficaram connosco para a noite e fomos para casa. O Bashir, vim a perceber, era o homem do cobertor. Mal chegámos, enrolou-se num, enrolou um charro e lá ficou na sua, a ouvir o resto do pessoal conversar. Na noite seguinte fui com o meu anfitrião ter a casa de uns amigos dele, e lá estava o Bashir com o seu cobertor. Mudámos de divisão por causa do fumo de um carvão para chá mal calculado, e ele levou o cobertor. Fomos para casa de outro méne a seguir, e ele não levou o cobertor, mas quando dei por ela lá estava ele! Assim, passámos esse serão a beber chá, leite a resvalar para o iogurte misturada com água e açucar e pão, que molhávamos em azeite. Tive pena de eu e o Sharon não partilharmos nenhuma língua, porque parecia ser um gajo muito porreiro, dado e engraçado. Aliás... às vezes, quando conheço alguém em circunstâncias imprevistas e essa pessoa, contrariamente ao esperado, fala uma língua que eu falo, penso nas experiências, e nas pessoas que estou a perder por não falar... todas as línguas que existem. Estou certo que no futuro haverá um daqueles peixes de Babel como no Guia do Boleiante Pela Galáxia e nos possamos todos entender. E não tenho reservas nenhumas pseudo-puras de dizer que esse tipo de tecnologia retiraria a genuinidade às coisas. Quão incrível seria se, quando aquele pastor de um braço me convidou a mim e ao Joel para casa dele, eu pudesse tirar um aparelho daqueles do bolso, entregar-lhe, e nós podermos falar? É certo que às vezes não é preciso, e basta apreciar o momento e o silêncio... mas preferia que isso fosse uma opção.

até Tarfaya

Acho que estou a encontrar o meu lugar enquanto ciclo-turista. Ainda não o encontrei exactamente, porque o simples facto de, agora mesmo, ter insinuado que sou um ciclo-turista deixa-me meio embaraçado. Imaginem um bairro onde toda a gente gosta de futebol. Conhecem os jogadores, tácticas, o nome dos recintos e jogam à bola uns com os outros. Depois imaginem o puto novo que chega ao bairro e quer integrar-se e então aparece no Domingo de manhã para jogar com os outros. Realmente trás uma uma t-shirt de Futebol do Porto, mas trás também uns calções de basket dos Toronto Raptors e uns sapatos de vela. O pessoal olha tipo “Que é que este gajo quer?”, e o miudito, meio a medo, lá vai dar uns pontapezitos na bola.

Pois comigo, apesar de não se ter passado o mesmo com os amantes do cicloturismo, sendo que o pessoal foi sempre excelente em dar-me dicas e conselhos, a verdade é que sinto que mergulhei num mundo completamente desconhecido, e só conhecendo um pouco é que me apercebo do quão desconhecido era. Quando saí de Vale de Cambra era tipo “Iá, é andar de bicicleta... para a frente”. E, iá, é muito isso, mas também é muito mais, seja em termos de logística ou de realmente saber como é que, para nós, vai ser fixe.

Pois o meu lugar enquanto ciclo-turista... Para já, é meio borderline, porque tenho um dia mau e apetece-me derreter a bicicleta e fazer uma sanita com o metal, e tenho um dia bom e apetece-me fazer um altar ao Lord Bike, o inventor do meio de transporte. Anteontem foi um dia mau, em que quase me senti incapaz, ontem foi um dia misto, hoje foi um dia espectacular.

Ontem saí de Guelmim e não demorei muito a perceber que tinha cometido um erro crasso. Parecia que a próxima povoação era só Tan Tan, que estava a 130km de distância e tudo o que eu tinha era um pão e dois triângulos de queijo. Tinha de ir até Tan Tan, não havia hipótese de acampar pelo meio. Na verdade havia outra povoação, mas eu não sabia isto na altura. Fui andando, entrei no deserto, e estava tudo bem, até que senti outro furo. O quê? Outro, depois do primeiro ter sido no dia anterior? Sim, parecia que sim... “Bem, lá terei de me estrear a remendar um furo”, pensei. No início, como o barulho vinha do sítio do furo anterior, achei que o homem não sabia o que fazia, e estava a tentar arrancar o remendo dele quando me apercebi que afinal o furo era ao lado. Mesmo ao lado do outro! Lá remendei a cena. Demorei p’rai uma hora, mas lá remendei a cena. Estranhei ser mesmo, mesmo ao lado do furo do dia anterior, mas tudo bem. Andei mais oito quilómetros e tumba, outro furo, que também apareceu de fininho, com o pneu a esvaziar lentamente. Dessa feita, reparei-o em vinte e cinco minutos. Mas não interessou nada, porque passado um pedaço já tinha outro. Havia algo que eu não estava a fazer bem, certamente, pelo que decidi voltar para trás.




Pedi ao primeiro carro que passou para parar, e parou. Era uma carrinha, já com três pessoas à frente, mas por estes lado isso não é problema. Quando, mais tarde, passámos por uma operação stop, reparei que nem lhes passou pela cabeça ser um problema termos quatro pessoas à frente. E agora nem sei bem se aquilo era para duas ou três pessoas! Tirei as cenas da bicicleta, meti-as na frente, e o homem meteu-a em cima do pneu suplente e amarrou-a com uma corda. Só estava a ver a bicicleta a cair e partir-se toda. Ou então finalmente haver uma justificação para ter uma bicicleta de aço – para poder cair de um jipe em andamento e não partir!

Estava um bocado naquela em relação a pagar ou não ao senhor. Não sabia muito bem se ele era um táxi ou não, porque o méne que vinha à frente a falar comigo disse que ele era familiar dele. O que me confundiu quando ele próprio lhe deu algum dinheiro. Talvez tenha havido um problema de comunicação. Certo é que não me pediu nada, e lá fui à mesma loja do dia anterior. Estava lá outro homem todo janota sentado com o filho que disse que o mecânico estava fora. Disse para eu trazer a bicicleta e de repente estava a reparar o pneu. Perguntou se tinha outra câmara de ar e lá lha dei. No final disse que era um euro, e eu entreguei-lho, meio desconfiado que o gajo simplesmente estava lá sentado a descansar e aproveitou para fazer um biscate. Não que interesse...

Voltei ao mesmo hotel da noite anterior, e depois de tomar banho fui dar uma volta pela cidade. Estava no meu elemento. É a cena que não posso ter a acampar. Quando fico num hotel deixo as cenas no quarto e depois vou dar uma volta. Curto ver a agitação nocturna, a malta na rua a comer e a beber chá. Apesar de recolherem cedo, os marroquinos saem muito à rua.

Devo ter perguntado a umas doze farmácias por álcool para usar como combustível para cozinhar. Só tinham de 70%, até que encontrei uma que tinha a 96%! A onze euros o litro. Disse “Não, obrigado”, e fui comer qualquer cena. Ia pensar nas proporções e no preço que já tinha pago e se valesse a pena voltava no dia seguinte. Sentei-me para comer na cadeira na rua no estabelecimento de um jovem que fazia umas sandes de espetada. Fui interpelado por um senhor muito simpático que, pareceu-me, exigiu ao rapaz que me fizesse o preço justo. Digo isto não só por mo ter parecido quando perguntei quanto era e o homem ter dito algo ao outro com cara feia depois de um preço qualquer em árabe, mas também pelo preço em si. Comi três sandes altamente de espetada e bebi um copo de leite de camelo por um 1,2€. E Estava jantado. Passei pelo Café Bagdade e bebi lá uma meia de leite enquanto fazia umas cenas na net e via o Barcelona. Estou a adorar meias de leite... e leite em geral! Não sei se, por alguma razão, o corpo pede mais, mas os meus últimos luxos têm sido comprar três pacotes de bolachas de seis bolachas cada e comê-las a beber meio litro de leite. Demais! Ah, os simples prazeres...

No dia seguinte voltei à farmácia que tinha o álcool. Estava lá um rapaz e nesse dia o mesmo álcool já era 12 euros! Quando lhe disse para que o queria ele disse que aquilo não era inflamável. “Facilmente inflamável”, dizia, de lado, em espanhol.
- Mas esta é a garrafa original?
- É. Mas este álcool não é inflamável. Se queres álcool para isso tens ali na drogaria – respondeu.
- Mas vamos lá experimentar... – pedi.
- Eu tenho a certeza!
- Só experimentar – voltei a pedir. Pois virámos um bocadito num cartão e quase pegávamos fogo à farmácia.
- Mas o outro é mais! – disse o méne, logo. Okay, vamos lá à drogaria.
Efectivamente, apesar de apenas a 90%, era fixe porque era mais barato. Comprei duas garrafas de 25cl por 1,5€.

Pus-me depois a caminho e mal saí da cidade pedi a um casal francês para me levar na sua auto-caravana até ao quilómetro onde tinha ficado no dia anterior. Quando cheguei pedalei, pedalei, e curti bués! Tinha Vento pelas costas, o asfalto era fixe. Quando vi que faltavam 28km para Tan Tan, surpreendi-me a mim mesmo quando reparei que pensei que se faltasse mais não havia problema! Todavia, cinco quilómetros depois disto o pneu furou. Desta vez foi à homem. Fez mesmo pfiiiiiu! Parei, reparei-o, e segui até Tan Tan sem voltar a acontecer nada, o que, em si, foi uma vitória!

Parei num hotel de três euros mas acabei por ficar num de quatro e meio com internet. Tomei banho e quando saí do quarto estava a dar o Porto no bar do café, um bar com luzes dos anos oitenta cheio de gajos a fumar xixa. Vi a vitória de um zero do Porto sobre o Nápoles e depois fui dar uma volta pela cidade. Cheia de malta! Enfiei-me pelas ruas que me pareciam mais agitadas e parei para jantar uma sopa e umas sandes de peixe por menos de um euro.

Quando voltei ao meu passeio fui interpelado por um marroquino que falava espanhol. O gajo era simpático e estava numa loja de reparação de televisões onde estava  adar... o Benfica! Lá fiquei q ver a vitória dos mouros sobre o Totenhana À conversa com este rapaz que, com a mulher, trabalha meio ano seguido em Maiorca e depois está meio ano de férias.

De Tan Tan a Tarfaya era duzentos e tal quilómetros. Não querendo exigir demais de mim mesmo, pensei em chegar lá em três dias. Mas a verdade é que estava um Vento altamente, e decidi aproveitar. Parei aos vinte e pouco quilómetros para comer meio quilo de laranjas e depois segui até Khnifir, uma povoação cento e quinze quilómetros depois de onde tinha partido nessa manhã. Aquela terra era uma estrada de duzentos metros e restaurantes de peixe e hotéis à volta, nada mais. Fiquei num hotel de quarto euros e no dia seguinte parti para Tarfaya, onde estou agora, sendo que este texto está a ser escrito em vários locais.

O problema com os furos continua. Tinha publicado no facebook as minhas meleitas, e houve pessoal que disse para eu limpar bem antes e depois de reparar o furo. Nem me atrevi a contar que não só sabia desta óbvia necessidade, como também, a dada altura, meti uma pedra em cima do remendo para aquilo colar melhor, deixando toda a área cheia de poeiras. Contudo, quando saí de Khnifir, limpei bem o pneu, a parte de dentro da roda e a câmara, e tive na mesma um furo. Além disso, um dos furos foi depois do homem da loja ter reparado a câmara, e eu acho que ele se ia lembrar disso. Não sei mesmo que fazer... Ontem foi a mesma coisa. Não sei se devia fazer isto, mas ia enchendo e depois pedalava p’rai dez quilómetros até ser preciso encher outra vez. Até que não deu mais e tive de o reparar. Demorei bués porque os remendos que tinha comprado em Tan Tan eram muito grandes e descolavam mais facilmente. Cortei um ao meio, e dava melhor, mas quando eu enchia a câmara ainda saía ar! Como não estava a dar mesmo segui na mesma, e a verdade é que, apesar de tudo, só precisei de encher uma vez, passado p’rai vinte quilómetros, contrariamente ao que estava a acontecer até então. Tenho de tirar uma hora para limpar a bicicleta, que está cheia de areia. Iá, é outro problema, a areia deste deserto parece farinha, mete-se em todo o lado! Ontem, quando virei a bicla ao contrário para a reparar, ficou cheia de areia num dos travões. Pfff....

Fui presenteado por um pôr-do-sol sob os pequenos edifícios desta terra, quando cheguei. Dei umas voltas e encontrei o hotel mais barato, por três euros, onde fiquei. Conheci lá um belga que tinha conhecido os turcos de quem tinha ouvido falar, e que andavam de bicicleta. Pelos vistos tinham conhecido o casal franco-canadiano de quem também tinha ouvido falar por outras pessoas com quem se tinham cruzado, e estavam a pedalar juntos. Pedi ao belga o contacto, e estava a pensar em mandar mensagem e arrancar para Laayoune hoje, a ver se pedalava um bocado com eles. Mas, além de cinco pessoas talvez já ser bués, também não sei se já não partiram, e não me apetece andar atrás deles. Se calhasse, calhava. Assim, fico cá hoje de descanso e amanhã vou para Laayoune, onde também devo parar um dia, se conseguir ficar em casa de um couchsurfer que parece ser fixe.

Tive oito ou nove dias com o Joel, e depois disso tem sido uma viagem solitária. A minha mãe perguntou-me ontem acerca de diversão... a verdade é que diversão não é bem o termo para este tipo de viagem, parece-me. Pelo menos não por Marrocos. Do mesmo modo, se alguém me perguntasse se estava a adorar, não podia dizer que sim. Acho que é como se nos sentássemos à mesa e fôssemos obrigados a comer de tudo o que punham à nossa frente, em pequenos pratos, para caber mais variedade. Para podermos comer o leitão a seguir, primeiro tínhamos de comer um prato de farinha com sal. Depois do leitão, se queríamos comer o arroz de marisco, tínhamos de beber um copo de sumo de urtigas. E assim sucessivamente. No final, se nos perguntasse se adorámos o jantar, íamos dizer que tinha sido uma experiência única, coisa coisas altamente, mas com outras menos boas. Pelo menos para já é o que sinto. O pedalar, em si, não tem sido tão mau, mas quando comparo com a boleia percebo estas diferenças. A boleia ganha pela imprevisibilidade e fáicl deslocação de lugar fixe em lugar fixe, ao passo que a bicicleta ganha pelo esforço conseguido de cada quilómetro ser nosso e por, quer queiramos, quer não, conhecermos ainda mais a fundo um país.

Estou agora deitado numa daquelas peças de três pernas enormes que se usam para fazer um paredão. Conto passar o dia no café, sendo que aqui não me parece haver nada para ver, e conto tirar uma hora, como disse, para olhar pela bicicleta, apesar de não me apetecer nada...


12h02, d, 16-3-14