sábado, 21 de abril de 2012

Chegado a Odessa


Meio estremunhado com o sono levantei-me na segunda-feira finalmente destinado a chegar à Ucrânia. Estudei as minhas hipóteses e fui para a estação de autocarro, os tais furgões. Mal cheguei entrei logo num. Fechei a pestana e só voltei a abrir na fronteira. Foi tudo tranquilo, e lá cheguei a Odessa. Estava um frio tremendo, e meio a tremer fui caminhando rua acima em direcção ao que me parecia ser o centro da cidade. Ia perguntando ao pessoal mas o inglês não é uma língua que abunde por estes lados. Mas iá, lá me orientei. Encontrei um sítio com internet e combinei encontrar-me com o Sergey, o meu anfitrião.

O gajo não tinha sido nada específico quanto ao nosso encontro. “Eu vou aparecer em casa entre as oito e as nove, podes esperar no meu pátio, a morada é esta”. E pronto, lá apareci às oito e estive a gelar até às nove e pico. Mas ‘tá-se bem.

O Sergey não é daquelas pessoas com quem um gajo sai à noite e é uma loucura e de repente ficamos logo manos. Mas isso não quer dizer que não seja um gajo fixe, claro. Porque é. Tem vinte e três anos e vive meio em part-time com a Lena, sua namorada de há três ou quatro meses. Depois dos habituais cumprimentos, entrámos naquele prédio velho, descemos umas escadas e estávamos no seu apartamento, onde eu não me ducharia nenhuma vez nas três noites em que lá estive. Pá, se tenho de tomar banho de água fria na Índia num terraço qualquer, ou na Tailândia à noite numa ilha paradisíaca como aconteceu no passado, manda vir, não há crise. Mas se tenho de tomar banho de água fria na Ucrânia num quarto-de-banho sem aquecimento, prefiro andar a cheirar à homem uns diazitos mais. Entrando na casa damos com a cozinha. O quarto-de-banho está do lado de quem entra, e seguindo em frente damos com um quarto, que está ligado a outro sem porta. O Sergey e o seu colega de casa, que não estava lá naqueles dias, pagam quarenta euros cada um, porque o senhorio é amigo deles. Normalmente seriam duzentos euros, no total. É um bom preço comparado com Portugal, mas é certo que as casas por onde tenho passado não são propriamente modernas.

Sentámo-nos à mesa na cozinha enquanto o Sergey ia preparando a comida. Por “preparando” refiro-me a cortar um alface. Comemos salada, algas, e uma cena que era fixe, tipo pickles, mas tipo massa. Quando perguntei se era vegetariano disse que era vegano cru. Isto é, não só não come carne (vegetariano) como não come qualquer produto animal (vegano) como não come nada que seja cozinhado! Conheço uma rapariga que também aderiu a isto, e não conheço mais ninguém. Mas esta rapariga é alguém que nunca comeu carne na VIDA, passou a ser vegana aos não sei quantos anos de idade e passado alguns anos passou a vegana cru. Já o Sergey há seis meses ainda comia carne! Quando lhe perguntei as razões, sendo que há que o faça pelo ambiente e os recursos que se gastam na produção de matérias animais e há quem faça simplesmente pelos animais, disse-me que o fazia por uma questão de saúde. Ainda comia pão, mas era algo que supostamente desapareceria. Pá, assim sem investigar e dizer só a minha opinião sem mais nem menos, não vejo o propósito. Não sei até que ponto é que é assim tão mais saudável. Mas é a cena dele, e uma muito mais responsável do que a minha, posso dizer... E assim jantámos salada três dias seguidos.

O Sergey tem vinte e três anos, tal como a sua namorada. São ambos apaixonados do alpinismo e foi assim que se conheceram. Contudo, ele trabalha como informático e ela outra cena assim aborrecida, o que é completamente contrário às pessoas que me parecem ser. E é por isso mesmo que vão mudar de ramo. Ele vai passar a ser tipo guia ou instrutor de alipinismo, o que me parece altamente.

Uma cena que achei estranha foi o sistema militar que têm por cá. Têm de cumprir o serviço até aos vinte e cinco anos de idade. Até aqui nada de estranho. O que é estranho, para mim, é que só se pode tirar um passaporte internacional (sendo que também têm passaporte nacional) se se tiver cumprido o serviço militar.

- Se estás a estudar, por exemplo... podes tirar um passaporte internacional e podes viajar. Mas quando esse expira, se já acabáste de estudar, tens de fazer o serviço militar, caso contrário não podes tirar outro passaporte internacional. Ou seja... com o teu passaporte nacional podes ir à Rússia, e é isso...
- Então que vais fazer tu? O serviço militar?
- Não... o meu pai vai tentar falar com alguém para ver se conseguimos pagar para me safar.
- Tipo... corrupção?
- Sim – respondeu, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Que pelos vistos é, por estes lados.

Depois de jantar eles quiseram ver algumas fotografias da minha viagem Daqui Ali. Fico sempre um bocado naquela, porque não quero aborrecer o pessoal. Toda a gente sabe que não há nada mais aborrecido do que o pessoal que decide que toda a gente tem de ver as suas fotografias. Mas eles curtiram e a Lena ficou cheia de vontade de ir ao Vietname...

dezanove e cinquenta e quatro, domingo, onze de Março de dois mil e doze
algures entre Sevastopol e Kiev, Ucrânia

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O Fim-de-Semana em Chisinau


Na quinta-feira fui à Gagáuzia. A Gagáuzia é uma zona autónoma onde o pessoal supostamente fala uma língua diferente, tem uma capital, hino, bandeira, essas cenas todas. Então eu fiquei curioso. Apanhei um autocarro de dois euros e tal e lá fui. Curtia ter-me encontrado com alguém mas não consegui. Talvez tivesse sido diferente, porque a Gagáuzia, ou pelo menos Comrat, a sua capital, não tem nada que ver.

Mas que é que fui lá fazer? Quando cheguei, percebi logo onde tinha ido parar. Dei uma volta pelo mercado, depois caminhei p’rai uma hora e tal, até que chegou a hora do almoço, e com ela um pretexto para fazer uma cena diferente e acabar com “ver as vistas” que não existem. Depois do almoço dei mais uma voltita e ok... constatei que não havia memso nada. Mas que se lixe, foi fixe na mesma. Quando viajo e vou a sítios, até esterqueiros como Comrat acabam por ser fixes. Porque o estado natural é o da fixeza. Se muitas vezes na nossa VIDA o estado natural é o da normalidade e talvez precisemos de estímulos, ou positivos para o fazer fixe, ou negativos para o fazer chunga, quando em viagem o estado normal é o da fixeza.

Mas já chegava de fixeza de Comrat e pus-me a caminho de volta a Chisinau. Tentei a boleia, mas pararam três carros e não aceitaram que não pagasse. É tão fácil boleiar na Moldávia que acaba por ser difícil. E neste caso nem acho mau que me peçam dinheiro. Porque não é naquela de “fónix para o gajo é igual”. Porque não é. Porque há tanta gente à boleia, a usá-la como apenas mais um meio de transporte, que levar-me de graça implica não levar outra pessoa a pagar. Por isso fui de autocarro, que pelos vistos é quase o mesmo preço que se paga à boleia.

Fui ter a casa do Bill e depois fomos a um encontro de couchsurfers onde conheci pessoal muito porreiro. Como a Paulina, uma moldava que esteve a viver na China e nos EUA, a Elena, que já passou alguns meses em trabalho no Paquistão ou a Dani, também moldava, que trabalha com exportações de vinho moldavo para a China, país para onde vai viver brevemente. Encontrei também o Nuno, um português que estava lá um mês e meio num estágio e que vai para a Indonésia de seguida por três meses, o Aba, um nigeriano que trabalha numa organização não-governamental e o Iorguis, que trabalha para a Amnistia Internacional. Enfim, bastante pessoal, cada um com uma estória diferente e interessante para contar, mesmo como eu gosto. Era o primeiro encontro na capital moldava e eles queriam ver se pegava e faziam a cena semanal.

O Aba estava a tentar convencer-me a ir à festa que teria em sua casa no dia seguinte, na sexta-feira. Eu disse que não era possível porque ia para a Ucrânia nesse dia. Bem, acabei por vir para a Ucrânia na segunda-feira... o Bill ia ter amigos a visitá-lo, e por isso fiquei, assim sem planear muito, com o Aba.

A festa foi muito fixe. Éramos quinze a transitar entre a cozinha e a varanda e o Aba tinha um sistema musical inovador (para mim), sendo que fazia o ritmo e estilo da música acompanhar o estado de ebriedade em que ele achava que as pessoas se encontravam. Claro que numa altura alguém quis mudar a música e lixou o sistema. Curti a noite, e curti aquele pessoal. E por isso mesmo deixei-me ficar. Dei-me especialmente bem com o Aba, o Nuno tuga e a Diana. No sábado tivémos um serão mais calminho mas ainda assim fez-me acordar no domingo tarde o suficiente para decidir bazar para Odessa só na segunda-feira. Tinha bastante tempo ainda, não havia por que me apressar... O domingo foi passado essencialmente em casa à conversa, saindo só para irmos comprar alguma coisa para comer.

Segunda-feira, Ucrânia...

onze e quarenta e cinco, quarta, sete de março de dois mil e doze
algures entre Odessa e Sevastopol

domingo, 1 de abril de 2012

Em Casa do Bill em Chisinay


Quando cheguei de Orhei Vecchi fui buscar as minhas cenas a casa da Victoria e depois fui ter com o Bill. Estava meio perdido quando entrei num bar a pedir direcções. Um rapaz acabou por me levar lá de carro, o que é sempre porreiro.

O Bill é um americano de Chicago de vinte e oito anos que, pelo seu cabelo ruivo, parece um inglês. Vive sozinho numa casa enorme, com duas salas de estar, uma cozinha, escritório e dois quartos. Diz que os duzentos euros que paga por aquela casa é baratinho porque é de um amigo dele ou uma cena assim. O preço normal seriam trezentos, ou por aí, o que é impressionantemente barato. Imagine-se um casarão a dez minutos a pé do Rossio em Lisboa por trezentos euros...

Sentámo-nos na cozinha com um copo de vinho caseiro moldavo. Curto muito o vinho moldavo, especialmente os vinhos caseiros que bebi. É um gajo muito porreiro, o Bill, e com quem se pode conversar muito tempo sobre um pouco de tudo. Advém de uma família que teve bastantes dificuldades mas que conseguiu que todos os seus filhos seguissem o caminho que quiseram seguir. O Bill tem curso de contabilidade. Esteve um ano em Budapeste e agora está a fazer investigação em Chisinau ao abrigo de uma bolsa de estudo e dá também aulas numa universidade.

- A primeira coisa que disse aos meus alunos foi que o sistema dos envelopes para boas notas não ia funcionar comigo... – dizia.
- Como assim?
- Aqui o pessoal compra as notas. Dão envelopes aos professores. Até há uma espécie de escala... quanto mais dinheiro, melhor a nota.
- Mas... como... como é que isso é possível?
- Olha, é assim... na Ucrânia é pior. Um amigo meu esteve lá e disse que em algumas universidades até há uma gaveta com pastas com os nomes dos professores onde os alunos põem o dinheiro. Uma gaveta só com esse propósito, já viste?... – não, não vi. Que loucura. E estou neste momento num comboio na Ucrânia e um amigo do meu anfitrião acabou de o confirmar. Perguntou-me como era o sistema de educação em Portugal e eu disse que não lhe sabia dizer muito bem porque não tinha muito com que comparar. Ele depois disse que perguntava precisamente acerca disso... se em Portugal também era assim.

Falámos um bocado acerca do racismo que ainda subsiste muito mais do que chega até nós, e falámos do sistema capitalista em que vivemos, ambos com muitas reservas mas nem por isso com uma solução melhor, até que fomos dormir. Curti o chavalo.

Tirei o dia seguinte para não fazer nada em especial. Acordei à hora que me apeteceu, dei uma volta pela cidade, e estacionei num restaurante com internet para escrever um bocado. Era véspera do dia um de Março, e o Bill tinha sido convidado para casa da Larissa para fazer umas ceninhas que costumam fazer neste dia. É que no dia um de Março eles começam a celebrar a primavera. Um bocado cedo, mas talvez seja para dar esperança. Então a ideia nessa noite era o pessoal trazer uns snacks e uma bebida ou algo assim, juntar-se todo em casa de um amigo e fazeres uns broches vermelhos e brancos que usam ao peito. A lenda... esqueci-me. Mas tem a ver com neve e sangue. O Bill veio ter comigo ao restaurante e fomos lá ter. Mas antes disto ainda tivemos um episódio porreiro.

Estávamos no autocarro e o Bill pediu ajuda a um senhor, mostrando-lhe a morada. Ele saiu connosco, deu a entender que nos levava lá em troca de cinco minutos de conversa em inglês. “Five minutos. English. Speak”. Na altura foi um bocado estranho, mas lá dissemos “ok”. Atravessámos a estrada com aquele senhor de gorro e óculos, metemo-nos por um quelho e fomos dar a um prédio. Ele voltou a repetir aquelas palavras enquanto entrávamos num prédio cinzento, avançámos uns metros e, quando dei por ela, estou sentado num sofá no hall de entrada, o Bill À minha esquerda, ambos com um copo de vinho moldavo caseiro na mão. Curti a cena. O Slavic (assim se chamava) queria que nós falássemos com a mulher e o filho, que estavam a aprender inglês, na esperança de se mandaram para a Carolina do Sul, nos EUA, onde tinham um familiar, ou para a Nova Zelândia, onde tinham outro. Mas a preferência era o outro lado do mundo. Sempre que o copo chegava a um terço o homem lá se apressava a encher-nos o espírito. Estivemos lá uns vinte minutos e a dada altura eles pediram ao Bill se se podiam voltar a encontrar.

- Claro. Eu ensino-vos inglês e vocês ensinam-me russo – respondeu o ruivo, para gáudio do puto de onze anos.

Depois fomos para casa da Larissa. Toda a gente tinha trazido algo, por isso aquilo parecia um banquete de doces. Éramos uns doze. Foi uma noite porreira. Conversámos um pedaço na cozinha e depois fomos todos para o quarto da Larissa, onde o pessoal trabalhou no seu Maersyshore (soa assim, mas não se escreve assim certamente). Faziam as cenas com aquele tipo de barro que um gajo põe no forno.

onze e sete, quarta, sete de março de dois mil e doze
algures entre Odessa e Sevastopol