sexta-feira, 29 de abril de 2011

Gilgit - Hunza (continuacao do texto anterior)


 para quem ja leu o texto anterior, o mesmo continua quando as letras, neste mesmo texto, ficam grandes

Gilgit foi perfeito! Passei uns dias de sonho naquela vilita, e conto voltar, quem sabe quando (?), passar um mês ou dois a escrever. Acho que é dos sítios mais porreiros para isso que já encontrei. Pausa. Sacudo uma aranha que se aventura aqui por territórios pedrísticos. Estou em Hunza, e já vão alguns dias desde que escrevi pela última vez.
           
 A minha rotina inicial de cada dia era imutável. Acordar, tomar banho, e esparrachar-me (?) na espreguiçadeira paquistanesa no alpendre a ler cerca de duas horas. 1984, do Orwell, que já acabei e de que falo um pouco de seguida. Fui à ner pôr-me a par com algumas cenas que não têm importância nenhuma, e o sol já se estava a pôr quando voltei para casa. o Qayum estava de saída, e quando lhe perguntei onde ia, disse que ia levar comida para os cães. Tinha-me falado que uma cadela tinha parido sete cães ali num campo ao lado, e que ele ia lá dar-lhes de comer. Sem obrigação nenhuma o homem, não só não os meteu num saco e mandou ao rio, como lhes dava de comer. Lá fui com ele, e depois de atravessarmos um par de campos em puro breu, chegamos aos famintos. Estivemos lá meia horita, e quando voltávamos ele encontrou um amigo qualquer, sentamo-nos lá no meio de um campo de batatas e eles fumaram produtos nacionais, tranquilamente. Quando voltámos, estivemos a conversa um pedaço, jantámos, tomámos chá e fui dormir. Nessa noite reparei que mais uma vez não havia carne, e fiquei a pensar se o homem seria vegetariano.
           
No domingo acordei filadinho em ir ver a estátua do Buda que havia algures p’rali. Acabaria por não se concretizar. Como mais tarde percebi, não podia fazer planos em Gilgit, por acabava sempre por ir ao saber da corrente, sem me despachar para fazer fosse o que fosse. Como manda a lei. Pois estava pronto para bazar quando o Qayum disse que o Yasir e mais outro rapaz vinham lá almoçar, e se eu não queria ficar. Ok, ‘tá tudo. Lá continuei a ler, até que os gajos chegaram. Tivemos à mesa p’rai três horas. Uma de volta da comida e conversa (ora em espanhol ou inglês, para mim, ora em shina, a língua local, para o outro méne paquistanês), outra hora antes do preparo e outra com chá. O chá daqui é sublime, o melhor que já bebi. Não se limitam a adicionar leite, como na Inglaterra, mas fervem o leite com o chá também. Experimentem. Yellow Label.
           
Quando os gajos bazaram já eram p’rai quatro, ou quase. Mandei-me numa caminhada que curti bué. Passei pela rua principal da vila e segui em direcção ao rio. Pelo caminho passei pelas casas do pessoal, caminhos estreitos, campos de um pouco de tudo, vacas, galinhas, cabras, e putos a jogar cricket. O que mais me atraía naquilo era a paz de toda aquela atmosfera. O silêncio era rompido pelo Vento a deslizar na vegetação ou os ocasionais gritos da pequenada em êxtase. E sentia-me dentro daquilo. Estava ali, na boa, e adorava cada passada. Adoro o verde. Acho que no Paquistão voltei a apaixonar-me pela natureza. Ou voltei a lembrar-me que estava apaixonado. Tipo aqueles casais que estão juntos há tanto tempo que nem reparam que ainda há amor a uni-los – reparando quando estão, por exemplo, de férias, ou num aniversário qualquer.
           
Andei pela beira do rio, com calma, e quando decidi voltar para cima, encontrei o méne que algumas horas antes tinha cozinhado para nós. Pelos vistos ele tinha um cafézito. Ele disse hotel, mas era um barraco de cimento de uma divisão. Parecia mais um sítio para descontra. Ele não falava inglês mas convidou-me para um chá e uma sanduíche, que eu prontamente aceitei.
           
Quando cheguei a casa já era de noite. Tinha comprado três ovos, dois tomates e uma cebola, no dia anterior. O Qayum foi para a cama, eu deixei o computador a tocar um sonzinho e fiz uma omolote.
           
Esqueci-me de referir. Quando o outro méne cozinhou para nós, fez galinha, e o Qayum comeu. Ou seja, não é vegetariano. Onde estou agora, em Hunza, já tive três refeições com eles e ainda não comeram carne. Acho que é simplesmente porque não se podem dar ao luxo de comerem carne quando lhes apetece. Se calhar é como dizem que era dantes em Portugal, “quando o rei faz anos”...
           
Na segunda também não cheguei a ver o Buda. Caguei p’ró Buda. Quando pousei o livro eram p’rai três da tarde, tendo já almoçado. Desta vez fui dar uma volta para o lado oposto de onde tinha ido no dia anterior. O Qayum deu-me boleia até ao centro, fui tirar uma fotocópia do passaporte e mandei-me a caminhar sem destino. A dada altura começei a subir, e quando dei por mim estava entre os campos, com uma visão sob toda a vila, ou cidade, ou lá o que é. Estava calor mas confortavelmente fresco debaixo da sombra das árvores que me protegiam. Andei assim a caminhar cerca de duas ou três horas, e adorei.
           
Gilgit foi isto, mais ou menos. Dias passados num hostel de dois euros e meio por noite, horas deitado ao sol a ler, conversas com um cota super bacano e boa pessoa, e caminhadas sem destino, vibrando com as vistas que pairavam sobre os meus olhos. Quando, na terça, lhe perguntei quanto lhe devia, disse que era o que eu entendesse. Ora por noite eram dois euros e meio, paguei-lhe as três noites mais três euros e meio pela comida. Para quem possa achar que fui forreta, é um preço justo. E o problema é que estou outra vez apertado com dinheiros. Não fiz bem as contas e aqui não dá para levantar dinheiro. Mas está tudo tranquilo, tenho dinheiro para água e para voltar a Islamabad, onde posso levantar guitel.
           
Apanhei o autocarro sem saber se me podiam albergar ou não. Mas felizmente ganhei o hábito de, com cada pedido de estadia, pedir também o número de telemóvel. Assim, passadas quatro horas de ter deixado Gilgit, e a meia hora de Karimabad (em Hunza) liguei ao Gulham. Ele disse que me podia albergar, e para eu ir ter a algo que soa como Azeirabad. Fixe. a minha outra opção era dormir debaixo das estrelas. Quando cheguei à dita povoação meti conversa com um pessoal que passava o seu tempo fora de um cafezito, e eles ligaram ao Gulham, que mandou o seu filho vir buscar-me. Enquanto esperava conheci o Karem, que é amigo doJoão Garcia, o alpinista português. Conheceu-o em 2007 e depois esteve com ele em 2009 também, creio. Tinha um livro autografado pelo gajo e tudo.
           
Entretanto apareceu o puto. Não me lembro do nome dele, apesar de já termos estabelecido uma relação porreira. Aliás, sinto que entrei de cabeça nesta família. Hoje (quinta) andei o dia todo com um primo esquerdo do meu anfitriãoi, era para dormir em casa dele, e amanhã vou ter com ele e os seus amigos à escola, onde assistirei a um par de aulas. Já aí chego.
           
O filho do Gulham, de doze anos, fala inglês que se farta, fiquei agradavelmente supreendido. Nos quinze minutos que demorámos a chegar a sua casa foi-me contando acerca dos sítios que havia para ver e dos festivais que celebravam. Apesar de já ter escurecido fui percebendo onde estava. Sempre gostei de provar a verdadeira cena dos países, quando possível, não me limitando às capitais. Costuma ser porreiro, seja o sítio o que for. Ora quando se mistura esta autenticidade procurada com montanhas de mais de sete quilómetros de alturas protegendo centenas de pequenos campos verdejantes, um gajo sabe que não pode ficar muito melhor. Claro que era de noite, e não podia ver isto, mas podia sentir, atravessando aquelas ruitas estreitas ladeadas por muros feitos por alguém, ou ontem ou há cem anos, pondo pedra sobre pedra.
           
Chegámos e a família estava na sala de estar. O Gulham identificou a zona como sala de estar, mas é a casa, simplesmente. Esta família, sem querer, ofereceu-me uma perspectiva que nunca ou raramente tivera a oportunidade de abraçar. Vivem naquela divisão quatro ou cinco pessoas, dependendo se a tia do meu anfitrião, de 85 anos, está presente ou não. A luz, como no resto do Paquistão, não está disponível durante uma boa parte do dia, e não têm água corrente durante o Inverno (considerando-se esta altura como ainda Inverno, sendo que os glaciares ainda não começaram a derreter). A lista fica muito mais pequena se disser o que têm... a divisão é do tamanho de duas mesas de bilhar. Têm um armário embutido na parede, uma televisão, uma fornalha onde cozinham, um balcãozinho, uma estruturazinha de madeira onde amassam o pão... e acho que é isso. Apesar de me parecer óbvio, acho importante referir que não estou a dizer isto simplesmente para expor a pobreza de outros que não nós. Refiro isto porque estas condições deram-me, como disse, uma maneira de ver as coisas que apesar de não ser nada nova, se tornou mais um bocadinho real. Podemos convencer-nos de um pouco de tudo, mas por vezes é necessário ver para crer, ou para sentir os seus efeitos em nós. Escrevi um texto sobre as posses e bens materiais a que por vezes damos uma importância imerecida e que jogam um papel que não lhe pertence na determinação da nossa felicidade. Por isso mesmo não me alongarei mais, sendo que publicarei este texto brevemente.
           
O Gulham reformou-se da sua posição de contabilista no exército quando tinha 33 anos, em 1992. O pai estava doente, a mãe, que morreu pouco depois do pai, não podia trabalhar, e o rapaz teve de fazer o que pôde. Desde então passa os seus dias de volta dos seus doze campos, onde cultiva apricots (não sei o que é em português e não tive net ainda para traduzir), erva (que armazena para no Inverno dar às vacas), maçãs, peras, feijões, batatas, entre outros. Tenho de melhorar o meu conhecimento nesta área. Noutro dia vi um episódio de How I Met Your Mother em que os gajos falavam daquelas falhas crassas que toda a gente tem. Acho que uma das minhas é neste campo. Ele perguntava-me que cultivavamos em Portugal e eu lá ia respondendo, mas com a mesma facilidade que um coxo a correr os cem metros barreiras.
           
Tal como toda a gente que conheci, tem vários irmãos e irmãs, e tem também seis filhos, dois dos quais vivendo consigo, o puto e uma miuda. Perguntou-me se em Portugal tínhamos o sistema de família conjunta (foi a melhor tradução que encontrei). Ora aqui está algo nesta cultura com que me identifico tanto como me identifico com uma faca podre! Quiçá se aqui tivesse nascido, teria aprendido a ver as coisas com outros olhos, e o que para mim parece estranho e inaceitável seria apenas... normal. No Paquistão o costume é, quando um filho se casa, continuar a viver na casa dos seus pais, com a sua mulher, até que os pais morram. Depois continua. Seja um, sejam dez. Quando lhe perguntei como seria então, se o filho dele se casasse, por exemplo, em Lahore (uma cidade a trinta horas daqui), ele disse que o filho ficaria lá, e a mulher viria viver com eles. A razão, disse-me, é que chegada certa altura, os idosos não se conseguem safar sozinhos, e precisam de alguém que cuide deles. Eu tinha acabado de chegar e não quis pôr-me a armar com as minhas filosofias de mudança e adaptabilidade, pelo que não comentei. Não considero isto cobardia, simplesmente acho que há momentos e momentos, e é sempre importante avaliar a situação e ter em conta que há um sem número de factores que, por não pertencermos, não estamos a ter em conta. Por outro lado, também acho importante não mentir quando nos perguntam a nossa opinião. Mas até nisto podemos dizer a mesma coisa de diferentes formas. Se ele me perguntasse o que eu achava eu tanto podia dizer “eu acho isso terrível!” como poderia dizer “pá de onde eu venho isso é algo que nunca acontece, e isso faz com que, para mim, seja difícil entender...”. São coisas...
           
Outro aspecto completamente diferente desta nossa geração sem remuneração é a diferença entre sexos. São as mulheres que fazem tudo. Foi um momento peculiar quando o Gulham me perguntou se eu queria lavar as mãos. Eu disse que sim e levantei-me – estávamos todos, como é costume, sentados no chão. Ele disse para eu me deixar ficar, e a sua filha apareceu com um cântaro e um pote. Deixava correr água do primeiro para o segundo, com as minhas mãos algures no meio a purificarem-se. Uma serventia à qual não estou acostumado, de todo.
           
Penso agora para comigo como poderão ser interpretadas estas observações, e consciente de que há almas mais limitadas que as outras, tenho receio que usem estas diferenças que aponto como provas irrefutáveis de que esta é uma sociedade assim... ou assado. Mas confio que percebam que vou dizendo o que vejo, seja o que eu veja algo percebido como positivo e interessante, ou negativo e interessante.
           
Entretanto apareceram dois primos da família. O Riaz, meu novo amigo, de 23 anos, e o outro rapaz de 20 anos, de aspecto completamente irlandês (ruivo, sardas, olhos claros), também porreiro mas cujo nome não me lembro. Convidaram-me para uma celebração na sua escola no dia seguinte, de manhã. Apesar da hora, disse ‘tá tudo.
           
Antes de dormir vi um filme muito interessante chamado With Eyes Wide Open. Recomendo, a quem o consiga encontrar. É israelita e centra-se num caso homossexual entre um talhante casado e o seu empregado. Ainda tenho de perceber a minha aversão com a religião. Os gajos eram judeus e no filme está muito bem exposta (parece-me, nunca fui a Israel) aquela cultura de bairro onde o rabi é que sabe o que é bom, e onde o pessoal age de acordo com aquilo que acha que o gajo lá em cima quer.
           
No dia seguinte o gajo não apareceu. Fui então, nessa manhã, com o Gulham e a sua mulher até uns campos que têm ali perto, e fiquei sentado enquanto um méne amigo com um tractor lavrava a terra. Isto demorou cerca de duas horas. Posto isto, fui dar uma volta com o Gulham. Caminhámos cerca de duas horas, até que ele teve de ir fazer umas cenas quaisquer, e me deixou responsável pela minha própria expedição. Ora Hunza é algo como eu nunca vi. Acho que posso dizer isto com boa certeza. O Paquistão foi o quadragésimo oitavo país que visitei. Já vi cenas do outro mundo, paisagens de cortar a respiração e monumentos de provocar tonturas. Tenho ainda de digerir isto tudo e perceber se é, ou não, o sítio mais belo onde já estive. Mas a certeza de que se não o é, é um dos mesmos, está comigo para ficar. Como disse, são montanhas a toda a volta, um vale imenso, campos e campos com uma ou outra casa a retirar a monotonia do cenário, ruelas de terra, crianças a brincar, um quase-silêncio dentro de mim. Andei o dia todo, até ficar todo partido. Acho que um bom indicativo do que sentia é dizer que, contrariamente ao que quase sempre faço, não ouvi música no meu ipod. Parece que ia estragar a cena um bocado.
           
Caminhei mais duas horas depois do Gulham ter ido embora. A dada altura entrei numa propriedadezita guardade por uma vaca e uma vitela, passei pelo campo e dei comigo na beira de um desfiladeiro, onde me sentei, aí sim a ouvir música, algo calmo, a apreciar a vista para o forte e o rio lá em baixo. Fui abatido por uma calma e confortável tristeza. Dei de caras comigo. Talvez os momentos mais reflexivos não sejam aqueles que advêm do êxtase, mas da sublime ternura provocada por uma convidade melancolia. Pensei em momentos, acho, na sua efemeridade e no poder que têm para nos definir. Tenho passado muito tempo com muita gente, mas como viajo sozinho, é apenas natural que passe longas horas tendo-me apenas a mim como companhia. Isso leva-me a pensar, e a tentar perceber pequenas coisas e o porquê das mesmas. Por isso mesmo tenho-me apercebido de momentos, aqui e ali, em que possa ter estado menos bem, ou até mal, aparecendo esta clarividência com mais frequência do que quando em casa. Como um jogador de futebol que vê o seu próprio jogo na televisão e percebe que não devia ter passado a bola para ali, ou ter pedido falta naquele lançe. Gosto disso.
           
Voltei para casa e cheguei todo partido. Fiquei a pensar se não será por não estar habituado a fazer esforço em elevadas altitudes e isso exige mais de mim do aquilo a que estou habituado. Vi um documentário sobre o Joe Strummer, vocalista dos The Clash, um palerma confuso mas com boas ideias, carácter e carisma. Jantei com eles, pão e batatas, e apareceu o Riaz, que veio desculpar-se por não ter aparecido. ‘Tá-se bem. Aparentemente não dava por motivos de segurança e não sei quê. Estranho, mas é assim. Prometeu que no dia seguinte, hoje, viria buscar-me para me mostrar Aliabad e outras vistas.
           
Ora o que eu não esperava era que o gajo aparecesse às nove da manhã. Mas ok, ‘tá tudo. Foi um dia muito longo, mas altamente. O gajo é mesmo porreiro. Quebrar o gelo com ele foi instantâneo. Depois de tomar o pequeno-almoço fomos caminhando pela beira do bosque, conversando disto e daquilo. Tal como quase toda a gente que eu conheço, pensava que eu conseguia ler mentes por ser psicólogo. “Eu gosto de estar sozinho, quando estou em casa. Porquê?”, perguntava-me. Sei lá! Porque sim! Porque gostas da tua privacidade, tal como os restantes mortais.
           
Perguntou-me se eu queria ver o seu liceu. Como sempre, disse que sim. Acho que é uma boa política quando um gajo anda em viagem – aceitar tudo! Bem, quase tudo. Lembro-me agora daquela estranha massagem que recebi em Lahore sentado num tapete enrolado na beira da estrada! Risada (fica mal escrever “lol”, se calhar...)! Entrámos e estávamos a beber um chá, quando ele me disse que os seus amigos me queriam conhecer. Levantei-me e encaminhámo-nos para a biblioteca, onde o pessoal conversava, sentados num círculo em forma de zero. Sentei-me lá com o pessoal e, basicamente, nas duas horas seguintes foi como se eu estivesse a dar uma palestra sobre a sociedade ocidental. Tentei deixá-los à vontade para perguntarem literalmente tudo o que quisessem. Era pessoal porreiro, interessado, muito curioso acerca de “como se faz noutros sítios”. Percebi também que, concerteza devido à raridade do evento, achavam entusiasmante ter um estranjeiro ali.
           
- Na tua sociedade – como diziam – basta ir ter com uma mulher e perguntar se ela quer fazer sexo? – perguntaram-me, a dada altura. Parti-me a rir, e eles comigo. Eles pensavam que lá por terras tugas e arredores era assim... “ó maria, com’é’qué dás o pito?”.
- Bem, não é assim... é certo que é muito diferente do Paquistão, mas fazer isso seria considerado simplesmente rude pá... – expliquei. Quando me perguntaram acerca das diferenças entre as “sociedades”, pensei um bocado, não querendo ofendê-los, mas disse a verdade. Ou melhor, disse a minha verdade. Que há muito mais liberdade, para fazer seja o que for (dentro dos naturais limites) e que isso faz toda a diferença. Perguntaram-me acerca da minha religião. Como já expliquei noutros textos, normalmente digo cristão, porque acho que das pessoas que me interpelam na rua, algumas se ofenderiam se eu dissesse que era ateu, ou agnóstico. Ia estar a negar a existência de algo que eles prezam, e isso adviria da minha decisão e não de ter nascido noutro país. Mas com estes gajos senti-me à vontade pare dizer que não tinha religião nenhuma e um deles disse algo muito sábio – “a melhor região é a humanidade”. Humanity. Ele não se referia à humanidade enquanto aquilo de que fazemos parte, mas enquanto a forma como podemos lidar uns com os outros, com humanidade.
           
Ficámos lá um pedaço e depois segui caminho com o Riaz e mais outro amigo. Andámos pelas varias vilas horas a fio, a conversar, rir, gozar um com o outro, tirar fotografias e comer. Almoçámos de graça num restaraunte de um amigo do Riaz.
           
E por toda esta corrida estou cansado e a pestava pesa. Por isso mesmo por aqui me quedo. O resto do dia foi muito fixe, é isso.

11h45-5ª-28-4-11
Hunza, Paquistão

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Gilgit (incompleto)


Isto nem sempre esta facil de publicar, por isso hoje so pode ir um texto incompleto! As minhas desculpas.

Gilgit foi perfeito! Passei uns dias de sonho naquela vilita, e conto voltar, quem sabe quando (?), passar um mês ou dois a escrever. Acho que é dos sítios mais porreiros para isso que já encontrei. Pausa. Sacudo uma aranha que se aventura aqui por territórios pedrísticos. Estou em Hunza, e já vão alguns dias desde que escrevi pela última vez.

A minha rotina inicial de cada dia era imutável. Acordar, tomar banho, e esparrachar-me (?) na preguiçadeira paquistanesa no alpendre a ler cerca de duas horas. 1984, do Orwell, que já acabei e de que falo um pouco de seguida. Fui à ner pôr-me a par com algumas cenas que não têm importância nenhuma, e o sol já se estava a pôr quando voltei para casa. o Qayum estava de saída, e quando lhe perguntei onde ia, disse que ia levar comida para os cães. Tinha-me falado que uma cadela tinha parido sete cães ali num campo ao lado, e que ele ia lá dar-lhes de comer. Sem obrigação nenhuma o homem, não só não os meteu num saco e mandou ao rio, como lhes dava de comer. Lá fui com ele, e depois de atravessarmos um par de campos em puro breu, chegamos aos famintos. Estivemos lá meia horita, e quando voltávamos ele encontrou um amigo qualquer, sentamo-nos lá no meio de um campo de batatas e eles fumaram produtos nacionais, tranquilamente. Quando voltámos, estivemos a conversa um pedaço, jantámos, tomámos chá e fui dormir. Nessa noite reparei que mais uma vez não havia carne, e fiquei a pensar se o homem seria vegetariano.

No domingo acordei filadinho em ir ver a estátua do Buda que havia algures p’rali. Acabaria por não se concretizar. Como mais tarde percebi, não podia fazer planos em Gilgit, por acabava sempre por ir ao saber da corrente, sem me despachar para fazer fosse o que fosse. Como manda a lei. Pois estava pronto para bazar quando o Qayum disse que o Yasir e mais outro rapaz vinham lá almoçar, e se eu não queria ficar. Ok, ‘tá tudo. Lá continuei a ler, até que os gajos chegaram. Tivemos à mesa p’rai três horas. Uma de volta da comida e conversa (ora em espanhol ou inglês, para mim, ora em shina, a língua local, para o outro méne paquistanês), outra hora antes do preparo e outra com chá. O chá daqui é sublime, o melhor que já bebi. Não se limitam a adicionar leite, como na Inglaterra, mas fervem o leite com o chá também. Experimentem. Yellow Label.

Quando os gajos bazaram já eram p’rai quatro, ou quase. Mandei-me numa caminhada que curti bué. Passei pela rua principal da vila e segui em direcção ao rio. Pelo caminho passei pelas casas do pessoal, caminhos estreitos, campos de um pouco de tudo, vacas, galinhas, cabras, e putos a jogar cricket. O que mais me atraía naquilo era a paz de toda aquela atmosfera. O silêncio era rompido pelo Vento a deslizar na vegetação ou os ocasionais gritos da pequenada em êxtase. E sentia-me dentro daquilo. Estava ali, na boa, e adorava cada passada. Adoro o verde. Acho que no Paquistão voltei a apaixonar-me pela natureza. Ou voltei a lembrar-me que estava apaixonado. Tipo aqueles casais que estão juntos há tanto tempo que nem reparam que ainda há amor a uni-los – reparando quando estão, por exemplo, de férias, ou num aniversário qualquer.

Andei pela beira do rio, com calma, e quando decidi voltar para cima, encontrei o méne que algumas horas antes tinha cozinhado para nós. Pelos vistos ele tinha um cafézito. Ele disse hotel, mas era um barraco de cimento de uma divisão. Parecia mais um sítio para descontra. Ele não falava inglês mas convidou-me para um chá e uma sanduíche, que eu prontamente aceitei.

Quando cheguei a casa já era de noite. Tinha comprado três ovos, dois tomates e uma cebola, no dia anterior. O Qayum foi para a cama, eu deixei o computador a tocar um sonzinho e fiz uma omolote.

Esqueci-me de referir. Quando o outro méne cozinhou para nós, fez galinha, e o Qayum comeu. Ou seja, não é vegetariano. Onde estou agora, em Hunza, já tive três refeições com eles e ainda não comeram carne. Acho que é simplesmente porque não se podem dar ao luxo de comerem carne quando lhes apetece. Se calhar é como dizem que era dantes em Portugal, “quando o rei faz anos”...

Na segunda também não cheguei a ver o Buda. Caguei p’ró Buda. Quando pousei o livro eram p’rai três da tarde, tendo já almoçado. Desta vez fui dar uma volta para o lado oposto de onde tinha ido no dia anterior. O Qayum deu-me boleia até ao centro, fui tirar uma fotocópia do passaporte e mandei-me a caminhar sem destino. A dada altura começei a subir, e quando dei por mim estava entre os campos, com uma visão sob toda a vila, ou cidade, ou lá o que é. Estava calor mas confortavelmente fresco debaixo da sombra das árvores que me protegiam. Andei assim a caminhar cerca de duas ou três horas, e adorei.

Gilgit foi isto, mais ou menos. Dias passados num hostel de dois euros e meio por noite, horas deitado ao sol a ler, conversas com um cota super bacano e boa pessoa, e caminhadas sem destino, vibrando com as vistas que pairavam sobre os meus olhos. Quando, na terça, lhe perguntei quanto lhe devia, disse que era o que eu entendesse. Ora por noite eram dois euros e meio, paguei-lhe as três noites mais três euros e meio pela comida. Para quem possa achar que fui forreta, é um preço justo. E o probela é que estou outra vez apertado com dinheiros. Não fiz bem as contas e aqui não dá para levantar dinheiro. Mas está tudo tranquilo, tenho dinheiro para água e para voltar a Islamabad, onde posso levantar guitel.

Apanhei o autocarro sem saber se me podiam albergar ou não. Mas felizmente ganhei o hábito de, com cada pedido de estadia, pedir também o número de telemóvel. Assim, passadas quatro horas de ter deixado Gilgit, e a meia hora de Karimabad (em Hunza) liguei ao Gulham. Ele disse que me podia albergar, e para eu ir ter a algo que soa como Azeirabad. Fixe. a minha outra opção era dormir debaixo das estrelas. Quando cheguei à dita povoação meti conversa com um pessoal que passava o seu tempo fora de um cafezito, e eles ligaram ao Gulam, que mandou o seu filho vir buscar-me. Enquanto esperava conheci o Karem, que é amigo doJoão Garcia, o alpinista português. Conheceu-o em 2007 e depois esteve com ele em 2009 também, creio. Tinha um livro autografado pelo gajo e tudo.

Entretanto aparece

domingo, 24 de abril de 2011

Gilgit, Paquistão

Estou no meio das montanhas. O autocarro balança a cada dez segundos, ora para a direita, ora para a esquerda, quase me esmagando no processo. É de noite, já não vejo os apelativos cenários de há um par de horas. Já não vejo as montanhas ao fundo, cheias de neve, nem os riachos ou os putos a jogar cricket no campo. Pela janelita aberta chega-me o Vento, que se amassa gentilmente conta a minha face, trazendo-me mais uma pista, desta feita olfactiva, acerca de onde estou. É que às vezes é fácil esquecer. Contornávamos uma curva ali atrás e parecia-me nitidamente o caminho para a Serra da Freita. Foi uma sensação brutal, fantástica, e instalou-se em mim uma alegria e satisfação inconmensuráveis. As memórias do que quer que tenha vivido aliada ao exotismoe da criação de novas. Estou a caminho de Gilgit, no norte do Paquistão.

Acabei por me desarrepender de ter escolhido o hostel do Malik. Está certo que esperava aquilo cheio de viajantes a caminho da Índia, e isso não se ter proporcionado foi algo que me deixou com imediata vontade de encontrar um couchsurfer que me albergasse. Contudo, conheci o Vinn e a Gisela, um casal luso-belga que fez com que valesse a pena ter lá passado uns dias. Em primeiro lugar, eram muito porreiros. Em segundo lugar, se não fosse pela extensa descrição do Vinn do norte do país, agora devia estar na Índia. Responsabilizo-o pela minha mudança de planos. Fixe.

No domingo fui ver mais cenas. O número de pessoas na rua era estonteante. Era difícil caminhar numa linha recta por mais que alguns segundos. Tinha o mapa na mão e sabia onde queria ir – para o forte. Não sei bem o que se estava a passar, mas havia milhares de pessoas na rua com bandeiras verdes, algumas a dizer “we love peace”, pessoal a gritar “não-sei-quê não-sei-quê não-sei-quê Paquistão” vezes sem conta e uma fila interminável para o Minar-e-Pakistan (um parque com um menir no meio). Ontem , quarta, perguntei ao Asim e ele diss

tenho de parar de escrever porque está impossível com as condições da estrada

Estou num dos hostels mais fixes onde já estive. Pela conjuntura global. O dono da casa, o Qayum é um senhor. Que homem espetacular! Um cota de cinquenta e cinco ou cinquenta e seis (não sabe a sua idade ao certo) que não sabe ler mas que já andou a viajar pela Europa por nove anos, de 1975 a 1982.
   
O Vinn e a Gisela tinham-me falado dele e aconselhado a passar aqui uns dias. Assim, hoje cheguei, e após uma caminhada de quase uma hora sob o sol esturrador, cheguei cá. Falei em espanhol, porque sabia que ele tinha vivido em Ibiza vários anos e essa estabeleceu-se como a língua de comunicação. Demos um abraço e sentamo-nos à conversa. Entretanto a sua mulher trouxe comida e depois ainda comemos uma sanduíche. O hostel é uma casa grande e muito porreira., num terreno com um relvado mdoesto mas bonito e uma piscina para se encher daqui a um mês. Não tem sinal a dizer “Hostel” ou “Guest House” porque ele não está assim tão interessado em publicidade. “Este hostel é mais para pessoas especiais”, diz-me, “Alguém vem cá, diz a um amigo, depois esse amigo diz a outra pessoa... e vai-se fazendo assim o negócio”. Numa olhada no seu livro de check-in noto que tem um hóspede a cada dez dias, mais ou menos.
   
Mandou-se para a Espanha em 1975 sem falar nem espanhol nem inglês. Trabalhou como condutor, como cozinheiro, e a dada altura entregou-se à VIDA de hippe, sobrevivendo vendendo bijuteria e cenas afim na rua. Viveu na Suiça, amores aqui, desamores ali, e estórias na bagagem e uma experiência, imagino, fundamental para ser aquela pessoa que muito calmamente me falava, do outro lado da mesa, entre algum fumo que se degladiava com a aragem quente.
    “Felizmente, não devo nada a ninguém, não pago aluguer, fui eu que construí isto, ao longo de dezoito anos, por isso o dinheiro, apesar de pouco, não faz assim tanta falta.”
    Depois de comermos fui descansar um bocado. Estava super relaxado e bati uma sonequita até que ele me chamou para ir com ele. Era para eu ir à internet, mas acabei por ir com ele para a sua loja de bugigangas e cenas várias, onde fiquei à conversa com um seu familiar, o Yasir, enquanto os outros penduravam no tecto do pequeno prédio um sinal a publicitar a lojita.
   
O Yasir é um rapaz de trinta anos actualmente à espera que a mãe lhe arranje uma noiva. “Os jovens paquistaneses têm muita frustração, porque as suas necessidades são frustradas”, diz-me, no meio de uma conversa de teor sexual. Agitava frenteticamente o joelho direito enquanto fumava o seu cigarro, e a dadas alturas deixava-me confuso acerca do seu interesse em viver em Giglgit para sempre. As suas palavras iam nessa direcção, mas às vezes havia um ou outro trejeito, uma ou outra crítica, que me deixava na dúvida. “Eu adoro isto! É a minha cidade, onde pertenço. Não posso escapar para lado nenhum por causa destas montanhas, e adoro isso!”, dizia. Quando lhe perguntei o que sentia acerca da sua mãe lhe estar a arranjar uma mulher responde-me dizendo que é assim que as coisas são. Os pais gostam de o fazer, porque sentem a responsabilidade e a certeza de que vão encontrar a melhor opção. “A minha única condição é que tenha educação”, diz, “para poderem acompanhar em conversas e absorver a informação”. É justo. Sabia isto de teoria mas nesta viagem confirmei que, apesar de não ser uma variável determinante e exclusiva, a educação das pessoas tem muito que ver com a maneira como olham o mundo. Digo que sabia isto de teoria porque em Portugal isso já não se passa na nossa geração com frequência. Não há pessoal que deixe a escola aos catorze anos e não há, sem dúvida, pessoal que nunca foi à escola de todo. Falo das gerações mais novas.
   
Apesar do seu critério de educação ser justo, esta cena toda dos casamento arranjados faz-me muta confusão. Muita gente, até pessoal mais aberto e sofisticado, não se importa com isso, de tão enraizado que está. E acontece tão mais do que eu alguma vez imaginei! Na Turquia não me parece que aconteça, mas nas famílias mais conservadoras as famílias têm o poder de veto. Daí para sul ou este, é a razia. O Líbano é o único país onde não calhou falar disso com locais, mas na Síria, Iraque, Irão, Paquistão, é o pão nosso de cada dia para muitas, muitas almas.
    Noutro dia publiquei um comentário acerca da teoria de que a legalização do aborto nos anos 90 nos EUA está relacionada com a diminuição, para metade, dos crimes nessa zona. Pois o número de bebes indesejados diminuia. Com esse número diminuia também, certamente, o número de pessoas que cresciam sem condições sócio-económicas estáveis, ou de pessoas que tinham essas condições mas tinham também a frustração constante de pais que o foram demasiado cedo. Ora imagino, também, em que medida a prática de casamentos arranjados estará relacionada com a qualidade de VIDA e felicidade, no geral. “E aqui é muito difícil encontrar mulheres,... por isso quando as mães encontram alguém, isso ajuda”, dizem-me. Quer dizer que parece haver um problema por debaixo de outro problema, como de resto é costuma acontecer. Quer isto também dizer que uma mudança teria de, necessariamente, implicar outras mais drásticas mudanças.
   
Depois disto tudo era para a internet mas vum para casa com o Qayum e o seu filho, e jantámos ali no alpendre, ovos mexidos com muita coisa. Muito bom. São dez e trinta e quatro e relaxo agora no meu quarto, a ouvir Angus & Julia Stone. A luz já foi, agora só amanhã.
   
Mas falava de Lahore, antes da interrupção. No domingo fui ao forte. Todavia, antes de lá chegar, tive o meu momento estranho do dia. Um parente estava sentado numa carpete enrolada a fumar um cigarro, e quando cruzámos o olhar, ele chamou-me. Como sempre, eu fui. O gajo chegou-se para o lado e convidou-me a sentar-me, batendo com a mão na carpete. Assim o fiz. A dada altura o gajo começa a tocar-me na perna e a apertar, enquanto diz qualquer coisa. Bem, o gajo acaboupor me fazer uma massagem p’rai de vintes. Comigo sentado, assim meio de lado, teve os seus momentos meio estranhos, teve. Mas, percebi mais tarde, é a cena deles. Especialmente no parque de estacionamento de camiões, vi vários camionistas às massagens uns aos outros. Depois no fim não percebi se ele queria dinheiro ou não. Estendi dez rupees, e não percebi se ele queria mais ou não. Acabei por não dar nada e pus-me a caminho.
   
O forte é enorme, parte da Unesco, e completamente desprotegido. Isto é, pode-se andar por todo o lado, ao passo que, parece-me, uma boa parte daquilo ia estar atrás de uma linha ou de um vidro. Não tanto pelo pessoal poder estragar, mas porque parece estar em reconstrução. Há muito tempo. Mas não está. Está é a lentamente cair, se calhar.
   
Voltei para o hostel e a Gisela estava sentada no terraço. As cadeiras e mesas tinham desaparecido, para dar lugar a uma carpete onde o vinha um grupo tocar música sufi. Tínhamos descoberto no dia anterior sermos ambos portugueses, ainda que ela tenha crescido na Bélgica. O Vinn, seu namorado, belga, chegou passado um bocadito e estivemos a conversar um par de horas. Malta fixe. Estavam um bocado desiludidos com os viajantes que tinham conhecido até então. “Tu é das primeias pessoas que é fixe”, diziam. E eu percebo. Falavam de um excesso de auto-confiança que dota muitos viajantes de uma certa arrogância. Não acho que seja necessariamente exesso de auto-confiança, mas já senti o que me descreviam. Como já disse aqui há tempos, há pessoal que pensa que viajar é a cena mais fixe do mundo, e que isso faz deles estrelas. Não são todos, claro. Falo de uma parte significativa apenas o suficiente para ser referida. Depois, dentro da fixeza de viajar de que se sentem donos, há ainda a maneira como a sua maneira de viajar é que é a mais cool. Tipo boleiantes que olham de lado para quem anda de comboio. Ou viajantes de meios de transporte terrestes que olham de lado para pessoal que apanha aviões.
   
Acho que a cena mais importante é não se esquecer que a nossa maneira não é necessariamente a melhor maneira para toda a gente. Porque eu próprio também considero que certas formas de viajar não são necessariamente viajar. Mas não me posso esquecer que isso é para mim. E conquanto proporcione felicidade e auto-satisfação, o pessoal deve fazer o que lhe entender, do modo que entender. Para mim andar à boleia também é mais fixe do que andar de comboio. Aliás, tenho o meu ranking de fixeza viajante. Andar a pé, de cavalo, de bicicleta, à boleia, de transportes terrestes, de barco, e finalmente de avião. No futuro teleporte será a seguir ao avião.
   
Além disto, e recorrendo também a um exemplo que referiram, muitos viajantes têm um certo asco de receber dicas de outros viajantes. Como se fosse obrigatório um gajo descobrir tudo sozinho, confiando apenas em locais, para se achar um valentão bacano. São cenas.
   
A noite sufi foi fixe. Um grupo de músicos a tocar no dormitório das raparigas. Não pode ser no terraço porque a mãe de um vizinho tinha morrido e era mau um gajo estar a cantar, e eles a chorar. Achei interessante e positivo este respeito.
   
No final, Lahore acabou por ser uma cidade fixe. Tem vistas porreiras, uma intensidade que pode ser stressante mas também radical e estimulante. E foi fixe ter conhecido o Vin e a Gisela. Uma cena: na Bélgica quem trabalha mais que dois anos numa empresa pode tirar, uma vez na carreira, um ano para ir viajar ou fazer o que lhe apetecer, a ganhar mais de quinhentos euros por mês, e ter o emprego à espera quando voltarem! Quem trabalha no governo pode tirar um ano a cada dez anos de trabalho! Delírio!
   
Isto sim seria altamente! E mesmo... tenho pensado muito nisto. Acho que um bom equilíbrio na minha VIDA seria viajar quatro meses e ficar oito em Portugal, assim mais ou menos. Mas além do facto que o único emprego que se possa coadunar com isto é o de escritor (nas minhas perspectivas), há outras partes que têm de se ter em conta. Com um filho em crescimento, por exemplo,...

Na terça apanhei o autocarro de volta a Islamabad, onde cheguei nessa noite. Fui jantar com o Asim e um amigo dele, e passei o serão, bem como o resto do dia à procura de soluções para o problema relacionado com ir cem por cento de terra.
   
Apanhei o autocarro para Gilgit, onde me encontro, na quinta. No final sentia-me como se tivesse sido violado por oito gorilas numa altura de cio. Não estava fácil, até a coluna me doia, não era só o cu! As vistas até aqui foram fenomenais. Amanhã vou à net, e depois dar uma volta. Acho que não posso ver nada de super fixe aqui sem pagar, por isso vou ficar no relax, a ler, dar uma volta. Essas cenas de quem não tem nada que fazer!

22h57-6ª-22-4-11
Gilgit, Paquistão

PS – Estou há dezassete dias no Paquistão.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Lahore


Estou na cama do meu hostel em Lahore, que muito prometia, mas que, coitado, não cumpriu. Os tempos são outros. O Jovan, outro que não o meu anfitrião, de Belgrado tinha-me dito que cá tinha estado, mandou-me o link e tudo, para ter a certeza que eu partilharia a sua experiência. O site também prometia, e parecia realmente ser um ponto de encontro de viajantes para Este, com até festa e relax.

Mas os tempos são outros, e o pessoal morre de medo de terras paquistanesas... O pobre Malik, o simpático dono, jornalista reformado, assim mo disse num tom triste e passivo. “Agora! Era agora!”, responde, quando lhe pergunto quando é suposto ser a época alta. “Políticas e cenas assim...”, responde, quando indago acerca do porquê do pessoal não vir. Não é que não venham para este hostel, não vêm é para o Paquistão, porque têm medo, sei lá...

E por isso, neste hostel não se passa nada. Tem cama p’rai para mais de vinte pessoas, mas estamos aqui sete. Mandei uns pedidos para o couchsurfing hoje de manhã, mas hoje, quando ia ver se tinha algum sido aceite, a net não funcionava. Só segunda. A luz também deve estar para ir. Aqui em Lahore parece que há mais poupança do que em Islamabad. Não há luz p’rai durante oito horas por dia.

Hoje andei por Lahore. É uma loucura, caos total! Não tem nada a ver com Islamabad. Ao início não estava a curtir muito. Até pensei em bazar logo amanhã para a Índia. Mas primeir, esta caracterísitca não é exclusiva de Lahore, as cidades indianas são iguais ou piores, e segundo, é uma questão de hábito. Mas de vez em quando lembrava-me da calma e da paz e do cheiro a flores de Taxila, a pequena vila fora de Islamabad, e imaginava-me lá. Mas pronto, um gajo tem de se habituar. Buzinas por todo o lado, e uma poluição como eu nunca vi. Imagino Deli. Este pessoal deve morrer aos sessenta com os pulmões numa cadeira de rodas.

Estou a aceitar um falhanço do meu principal objectivo. É culpa minha, paciência. Não vai dar para ir por terra o percurso inteiro. Do Nepal para a China, ou não dá, ou dá mas pagando milhares... Do Bangladesh para a China, não dá porque há uma faixa de Índia que torna o Bangladesh num enclave. De Myanmar para a China não dá porque... não dá para entrar em Myanmar. Da Índia para a China não dá porque os gajos não são muito amigos... Se tivesse feito melhor a minha pesquisa ia do Paquistão para a China e não ia à Índia. Mas uma viagem destas sem a Índia é como... bem, não vale a pena aquelas cenas de ir a Roma e não ver o papa, porque a frase, em si, já diz tudo, atravessar a Eurásia e não ir à Índia? E depois, a Graciete e a Sofia vão lá ter em Maio e já têm os bilhetes comprados. Se desse, podia pedir outro visto paquistanês e depois voltar, para entrar do Paquistão para a China. De todo o modo, se tiver de apanhar um avião, fá-lo-ei para a menor distância possível. Quinhentos ou mil quilómetros. Tenho de estudar a cena quando tiver tempo. Mas fico um bocado naquela! Bah era tudo menos o que eu queria. Pode ser também que apanhe boleia de um barco da Índia para o sudeste asiático.

Ora teimoso como sou, isto deixou-me a brincar com outras ideias. São só ideiitas, mas andam aí a espalhar a desordem na minha mente. E se chegasse a Singapura em Agosto, em vez de Setembro? E se depois passasse Setembro e Outubro no caminho terrestre de volta a Portugal? Ai o gajo! Cala-te não penses nisso! Era uma esticada valente, mas podia vir ali pela China, Quirguistão, esses Estãos todos, entrar na Turquia e depois era um instantinho.

O ser humano e a sua capacidade de habituação é algo que me espanta. A forma como predispondo-nos a um desafio e abraçando-o, depois parece tão fácil e corriqueiro. Mais ou menos desde que escrevi a minha entrevista para o Notícias de Cambra, tenho vindo a pensar nisto. Que ou o pessoal está muito enganado, ou eu é que não vejo bem as coisas. Isto porque quando penso no que estou a fazer, nem acho digno de uma entrevista para um jornal, ainda que da minha própria terra. Parece estúpido, imagino, mas digo isto com toda a sinceridade, sem falsas modéstias, sem me estar a armar que isto é fácil e não sei quê, a sério. A sério mesmo que falo do fundo do coração. É sair de um sítio, boleiar ou apanhar um autocarro, dormir em casa de eventuais amigos, e depois fazer o mesmo, para outro sítio. Cenas que me impressionam são ir de bicileta, ou a pé, isso acho difícil. Ou dar a volta ao mundo todo, tipo de Singapura seguir para a Indonésia, Australia, Nova Zelândia, um barco para o su, da América do Sul, subir as américas, passar para a Rússia pelo estreito de Bering, atravessar a Eurásia, descer pelo Médio Oriente, entrar em África pelo Egipto, descer a costa oriental e subir pela oriental, e voltar a Portugal.

Não sei que se passa na minha mente, por vezes. Porque reconheço a estupidez desta afirmação, sendo que antes de começar esta viagem, eu próprio tinha uma consciência acerca da magnitude, que agora me escapa. Não sei se é o meu inconsciente a fazer-me fazer mais. Ou se é uma consequência da constatação de que não vou conseguir, provavelmente, o meu objectivo a cem por cento. Não sei o que é.

Ontem deixei Islamabad. Parece que foi há mais tempo. Curti o Asim e os seus amigos. Todos estudantes de medicina. Um muito fixe, que tinha uma maneira de ser mais parecida com a minha, mais ocidental. Outro, o Amir, colega de casa do Asim. Engraçado o Amir. Veio pedir-me ajuda, conselhos, ou o que seja, da forma clássica de “imagina que te acontece isto e não sei quê”. Estabelecemos, sem falar, um contracto interessante, em que continuávamos a falar acerca das suas cenas com certas pessoas-chave, sem nunca dizermos, realmente, que era dele que estávamos a falar. De vez em quando escapava-me, e dizia “tu”, apenas para corrigir de imediato. Curiosamente, coaduna-se com o que o Asim me tinha dito e o que eu tinha lido – que os paquistaneses têm uma tendência a falar à volta das coisas, em vez de directamente.

Deixaram-me no autocarro e passado seis ou sete horas estava em Lahore. Apanhei uma riksha para o hostel e dormi. Tive de dormir cedo porque a luz foi-se e não tinha bateria no computador para me entreter. Hoje, como disse, acordei e andei por aí. Caminhei bué. E tendo-me habituado à confusão, posso dizer que Lahore tem vistas interessantes. Ainda não vi muito, mas a zona do forte é muito porreira. Pagam-se quase dois euros para entrar, mas acho que vou na mesma, amanhã.

Como ponto interessante do dia, tenho o almoço, o segundo almoço. Tinha comido um prato de arroz com vegetais por 35 cêntimos, por isso estava aviado. Contudo, passado p’rai duas horas, caminhava no bazar e dois ménes pediram para lhes tirar uma fotografia. Ora o gajo aqui acede sempre. Eles estavam frente a uma lojita de tecidos, e reparei que distribuiam pães a toda a gente que passava, quase. Após tirar a fotografia, um senhor atrás deles, sentado no chão da loja entre uns seis ou sete amigos, chamou-me. Quando dei por ela estava a almoçar com os ménes. Acabei o que me deram para não fazer a desfeita e quando estava pronto para dizer “hasta la vista”, tendo dado uns minutitos para não paracer que é encher o bandulho e andar, e os gajos meteram-me mais um prato de arroz à frente. Ainda disse que não, mas tive de comer. E não comi mais nada o dia todo, serviu!

Quando estava a voltar do forte um cota meteu conversa comigo. Como muitas vezes acontece, começam por perguntar de onde sou. Falámos um bocadito de futebol e depois ele pôs-se a falar de cricket, e de como é que a equipa do Sri Lanka podia ser muito melhor se tivesse não sei quê, e de como a Índia eliminou o Paquistão nas meias-finais do mundial deste ano. Confesso que, ainda que dizendo que sim com a cabeça, a minha mente debandou p’rai por cinco minutos, sem o pobre homem reparar. Estava à espera daqueles silêncios que servem como porta de saída mas o gajo era esperto e falava sempre com a mesma cadência, por isso eu nunca sabia bem como me livrar daquilo. Eventualmente deu, e bazei.

Amanhã vou ver mais cenas. Daqui a uns dias talvez vá para a Índia.

0h48-s-16-4-11
Lahore, Paquistão

PS – Hoje um pombo cagou-me na cabeça. Nunca me tinha acontecido.