segunda-feira, 18 de abril de 2011

Islamabad


Quetta foi fixe. Pelo menos até os meus intestinos soarem o alarme e o meu cu me faltar ao respeito. São coisas. É que aqui o Pedro é campeão! Campeãozinho e pensa que que é imune às pandeleirices de que nos avisam. Quando estive na Índia (noutra viagem, em 2009), não bebi água da torneira (sabendo-o) e ainda assim tive dos piores momentos de que me recordo no que a saúde diz respeito. Ora no Paquistão, não pensei em seguir a política da garrafa de água. E por isso, manda vir problema! Já passou, mais ou menos, mas não foi muito fixe. A política que muitas vezes sigo, de “se é bom para eles também é bom para mim” nem sempre funciona.
               
Tive uma tarde muito fixe, no dia a seguir ao meu último texto. Era para ir ver o lago em Hannah. Fui caminhando, caminhando, e lá apanhei uma furgoneta para a tal vilita. Uma daquelas hiaces onde iam mais de vinte pessoas e p’rai umas sete no tecto. Isto sim, é fazer render o gasoil! Mesmo.
               
O pessoal, contrariamente a muitos outros em Quetta, não eram propriamente doutorados em literatura inglesa, por isso quando perguntava onde devia sair para ver o lago, eles respondiam-me “yes”. Já percebi que isto é uma característica nacional. É raro pedirem para eu repetir. Muitas vezes faço perguntas e eles respondem que sim. Como quando comprei um livro sobre o Buda. Perguntei ao senhor se alguém se podia ofender por eu estar a ler um livro sobre o Buda e ele responde-me, sorrindo, “Karen Armstrong”. Ah ok.
               
Assim acabei por ficar na última paragem quando, descobri mais tarde, deveria ter saído dez minutos antes. À medida que ia perguntando o pessoal mandava-me seguir, e então pus-me a caminho, pelo leito quase seco de um rio, em direcção às montanhas. Aquilo nem era uma vila. Apenas algumas casas, aqui e ali, e um “hotel”. Na montanha avistei um grupo de quatro paquistaneses (os YMCA) e aproximei-me para pedir direcções. Acabei por não ir ao lago e fiquei com eles duas ou três horas, apesar de eles não falarem uma palavra de inglês. Disseram logo para me sentar, deram-me comida, chá, e depois foram dar uma volta comigo. O cenário era fixe, e eles eram porreiros, sempre a rir e a gozar uns com os outros. Grizaram-se completamente quando eu repeti algo que tinham dito e a partir daí pedia-me para o dizer a cada segundo. Algo que soa como “mal”. Partiam-se a rir e mandavam high-fives a toda a hora. Foi uma tarde fixe. Depois voltámos na riksha de um deles, numa viagem p’rai de uma hora a dez à hora.
               
Deixei Quetta dois dias depois. O comboio para Islamabad levava 48 horas e custava 2000 rupees (17 euros) ao passo que o autocarro levava 24 horas (acabou por levar 27, p’raí) e custava 1900.
               
Pois assim, tendo pago 1500 rupees pelo hotel (só tinha pago a primeira noite, faltava-me pagar três), lá me pus a caminho. Caminhei. Podia ter apanhado uma riksha mas tinha tempo, por isso caminhei uma horita com a minha mochilona. Esperei hora e tal e entrei no autocarro. A viagem foi meio infernal. Espaço não era exactamente uma prioridade naquele autocarro. Mal dormi. Parámos umas vezes para o pessoal rezar, outras para trocarem de condutor, para o pessoal sair e para comer. Eu andava meio suspeito com aquelas comidas, apesar de normalmente experimentar tudo (ainda não sabia que a água tinha sido, definitivamente, o meu problema) e por isso comi um pacote de batatas fritas e dois de bolachas durante a viagem toda.
               
Tinha anfitrião, o Asim, e falei com ele a caminho, do telemóvel de um rapaz que mo emprestou. Cheguei a Islamabad, chovia. Apanhei um táxi e vim ter a casa do Asim, onde me esperava o seu colega de casa, o Amir. A casa é num quarteirão cheio de casas do mesmo estilo, autênticas vivendas. Ele e os seus colegas de casa, todos estudantes de medicina, ocupam o primeiro andar, e cada um paga, se bem me lembro, menos de cem euros por mês pelo quarto. Estive um bocado à conversa com o Amir e depois chegou o Asim. É pessoal fixe. Muito calminho, aquele calminho que é reconfortante, não que aborrece. E são pessoas de uma cultura completamente diferente da nossa.
               
Falámos de estados laicos e de certas interpretações do Corão, como o que se diz acerca de violência doméstica, por exemplo. Mostraram-me uma palestra em que um tal doutor explicava o Corão nestes domínios. Dá para perceber a cena, mas ainda assim não me agrada. A cena é simples: o Corão prevê um sem número de coisas que podem acontecer, e como reagir perante isso, dando guias em como agir. Acho que a maioria de nós, se tivesse o seu cônjuge a bater mal e a vir para nós com uma faca, tentava neutralizar o(a) cônjuge e, falhando isso, mandava-lhe um banano. Ora o Corão fala em situações limite como esta. Não diz que violência doméstica é de se tolerar, mas fala de situações que que pode ocorrer. O exemplo desse doutor era o do pai que bate num filho para o ensinar, caso este queira, por exemplo, mandar-se de um nono andar. Achei o exemplo estúpido, sendo que o pai está comparado ao marido, logo numa posição de natural domínio e fornecedor de instrução. Todavia, para mim há dois factores que são muito importantes. Primeiro, acho que o simples facto de se contemplar o uso de violência para resolver um determinado problema pode servir como uma porta para um mundo onde ninguém deveria entrar. As pessoas lidam melhor com direcções claras, como “sim” e “não” do que com gradientes. Ou seja, é mais fácil (e aconselhável) termos de nos preocupar, simplesmente, em não usar violência de maneira nenhuma, do que pensar em quando e com que força, quantas vezes. Segundo, o Corão não fala de quando o cônjuge deve usar a violência, mas de quando o homem o deve fazer.
               
Fomos comer qualquer coisa nessa noite, não me deixaram pagar.
               
No dia seguinte fui com o Asim e a sua namorada dar uma volta de carro, e fomos a uma montanha ver umas pequenas grutas milenares onde monges budistas vinham para meditar. Razoavelzinho. Deixaram-me na cidade, fui ver a maior Mesquita do mundo (em área total) e depois fui dar uma volta pela cidade, mas parei cedo, porque não me sentia muito bem. O estômago às voltas. Pouparei os detalhes.
               
Curti muito o dia seguinte. Estava um dia radiante, aquele cheirinho a flores no ar. Mandei-me sem destino por Islamabad. Acho que é das cidades mais verdes que já visitei, não tem nada a ver com o que antecipei. É uma cidade que foi criada nos anos 60, pare ter as embaixadas e cenas que tais. Não pensaram muito em ter aqui pessoal a viver, mas claro que acontece sempre. Mas o resultado é porreiro. O pessoal não anda muito sem ver árvores ou parques onde os putos se reúnem para jogar cricket e os mais velhos para jogar cartas.
               
Dois ménes meteram conversa comigo, a perguntar como podiam ir para Portugal e não sei quê. A dada altura um deles diz “sabes, o meu amigo tem um problema [falando do gajo ao lado], ele é tarado sexual. Que é que ele deve fazer?”. “Bazar do Paquistão”, respondi. Também me disseram que o pai de um deles trabalhava para o governo e pelos vistos havia dois bombistas suicida que estavam no país, e ia acontecer algo no parlamento ou uma cena assim. Era couro, de certeza. Ah! Nesse dia, ao almoço, estava a comer, uns parentes começaram a falar comigo e no final não me deixaram pagar a refeição.
               
No dia seguinte fui para Taxila. O Asim tinha-me dito que tinha algumas ruínas budistas e que valia a pena, por isso lá fui. Apanhei um autocarro até uma primeira estação. Um rapaz a quem eu tinha pedido direcções não me deixou pagar os trinta rupees (vinte e cinco cêntimos). Daí fui para Taxila. Apanhei uma ricksha e estava no museu. Era para andar a pé, mas um senhor veio ter comigo, vendo esta linda face portuguesa, e perguntou se eu não queria alugar a riksha dele, com o mesmo a conduzi-la, obviamente, por quinhentos rupees (quatro euros).
               
- Sou pobre, pá... eu caminho.
- Mas são muitos quilómetros!
- Eu sou novo!
- Sim, mas ainda apanhas um escaldão – diz ele, a passar o dedo no seu braço como se barrasse manteiga. Deixou-me ir, mas depois voltou.
- Diz tu um preço, então.
- Duzentos rupees.
- Duzentos?
- ‘Tão, tu é que disseste para eu dizer um preço! – acabamos por concordar que trezentos seria um bom preço, e que eu “tinha muita sorte”, como ele fez questão de me dizer. Foi uma tarde espetacular. Andei lá p’ra trás e para a frente, vi seis dos sítios arqueológicos, mas acima de tudo, foi andar pelo meio da natureza, com aquele cheiro a flores e a temperatura amena a impregnarem-me a alma. Sentia-me mesmo bem, e isso levava-me para a infância, algo que nem por isso me agrada. Vivia cada segundo como sendo o que era, um segundo preciso, infinito ainda que minúsculo. E por isso mesmo, para quê ser transportado para outros tempos, por melhores que eles tenham sido? Porque não criar uma memória em vez de invocar outra? Sou um gajo mais saudodista do que devia... geralmente é bom, porque recordo com um sorriso tantas coisas... e isso deixa comigo a noção do que já vivi, e/mas por vezes aperta o peito. É assustador o pensamento de que um dia deixe de criar memórias das catalogadas por sorrisos, e a VIDA seja um mero recordar.
               
Voltei no autocarro, que andou p’rai uma hora, até eu mudar para outro. Quando andava a ver em que autocarro devia entrar para Islamabad um rapaz ofereceu-se para me ajudar. Pagou-me o bilhete e quando saímos disse para irmos comer qualquer coisa, que eu era um convidado no seu país e me queria pagar algo. Ora em casa tínhamos combinado ir jantar fora, por isso eu disse que não podia comer muito. Fomos bater um paleio e comer uma sobremesa sublime chamada Kir, que até lembra o arroz doce mas é muito melhor.
               
Quando cheguei a casa o Asim disse-me que estava cá outro couchsurfer, desculpando-se. “Ó méne a casa é tua, claro que não há crise!”. Um coreano do sul (como disse o Pedro Abrunhosa em 2002 num concerto em Vale de Cambra, ressaviado por causa do mundial – não sei porquê nunca mais esqueci isto) que anda de bicicleta há ano e meio. O gajo estava a dormir porque os seus intestinos também tinham perecido face às “ameaças” paquistanesas, mas fiquei entusiasmado acerca de falar com o gajo no dia seguinte, devia ter cenas altamente para contar/ensinar. Enganei-me, o gajo mal fala! Paciência.
               
Fomos comer a um restaurante afegão, demais! Adorei! Mais uma vez não me deixaram pagar. Fomos com um outro amigo do Asim e do Amir, gajo muito fixe.
               
Hoje tirei o dia para actualizar cenas na internet e computador.

19h34-5ª-14-4-11
Islamabad

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