quarta-feira, 20 de abril de 2011

Lahore


Estou na cama do meu hostel em Lahore, que muito prometia, mas que, coitado, não cumpriu. Os tempos são outros. O Jovan, outro que não o meu anfitrião, de Belgrado tinha-me dito que cá tinha estado, mandou-me o link e tudo, para ter a certeza que eu partilharia a sua experiência. O site também prometia, e parecia realmente ser um ponto de encontro de viajantes para Este, com até festa e relax.

Mas os tempos são outros, e o pessoal morre de medo de terras paquistanesas... O pobre Malik, o simpático dono, jornalista reformado, assim mo disse num tom triste e passivo. “Agora! Era agora!”, responde, quando lhe pergunto quando é suposto ser a época alta. “Políticas e cenas assim...”, responde, quando indago acerca do porquê do pessoal não vir. Não é que não venham para este hostel, não vêm é para o Paquistão, porque têm medo, sei lá...

E por isso, neste hostel não se passa nada. Tem cama p’rai para mais de vinte pessoas, mas estamos aqui sete. Mandei uns pedidos para o couchsurfing hoje de manhã, mas hoje, quando ia ver se tinha algum sido aceite, a net não funcionava. Só segunda. A luz também deve estar para ir. Aqui em Lahore parece que há mais poupança do que em Islamabad. Não há luz p’rai durante oito horas por dia.

Hoje andei por Lahore. É uma loucura, caos total! Não tem nada a ver com Islamabad. Ao início não estava a curtir muito. Até pensei em bazar logo amanhã para a Índia. Mas primeir, esta caracterísitca não é exclusiva de Lahore, as cidades indianas são iguais ou piores, e segundo, é uma questão de hábito. Mas de vez em quando lembrava-me da calma e da paz e do cheiro a flores de Taxila, a pequena vila fora de Islamabad, e imaginava-me lá. Mas pronto, um gajo tem de se habituar. Buzinas por todo o lado, e uma poluição como eu nunca vi. Imagino Deli. Este pessoal deve morrer aos sessenta com os pulmões numa cadeira de rodas.

Estou a aceitar um falhanço do meu principal objectivo. É culpa minha, paciência. Não vai dar para ir por terra o percurso inteiro. Do Nepal para a China, ou não dá, ou dá mas pagando milhares... Do Bangladesh para a China, não dá porque há uma faixa de Índia que torna o Bangladesh num enclave. De Myanmar para a China não dá porque... não dá para entrar em Myanmar. Da Índia para a China não dá porque os gajos não são muito amigos... Se tivesse feito melhor a minha pesquisa ia do Paquistão para a China e não ia à Índia. Mas uma viagem destas sem a Índia é como... bem, não vale a pena aquelas cenas de ir a Roma e não ver o papa, porque a frase, em si, já diz tudo, atravessar a Eurásia e não ir à Índia? E depois, a Graciete e a Sofia vão lá ter em Maio e já têm os bilhetes comprados. Se desse, podia pedir outro visto paquistanês e depois voltar, para entrar do Paquistão para a China. De todo o modo, se tiver de apanhar um avião, fá-lo-ei para a menor distância possível. Quinhentos ou mil quilómetros. Tenho de estudar a cena quando tiver tempo. Mas fico um bocado naquela! Bah era tudo menos o que eu queria. Pode ser também que apanhe boleia de um barco da Índia para o sudeste asiático.

Ora teimoso como sou, isto deixou-me a brincar com outras ideias. São só ideiitas, mas andam aí a espalhar a desordem na minha mente. E se chegasse a Singapura em Agosto, em vez de Setembro? E se depois passasse Setembro e Outubro no caminho terrestre de volta a Portugal? Ai o gajo! Cala-te não penses nisso! Era uma esticada valente, mas podia vir ali pela China, Quirguistão, esses Estãos todos, entrar na Turquia e depois era um instantinho.

O ser humano e a sua capacidade de habituação é algo que me espanta. A forma como predispondo-nos a um desafio e abraçando-o, depois parece tão fácil e corriqueiro. Mais ou menos desde que escrevi a minha entrevista para o Notícias de Cambra, tenho vindo a pensar nisto. Que ou o pessoal está muito enganado, ou eu é que não vejo bem as coisas. Isto porque quando penso no que estou a fazer, nem acho digno de uma entrevista para um jornal, ainda que da minha própria terra. Parece estúpido, imagino, mas digo isto com toda a sinceridade, sem falsas modéstias, sem me estar a armar que isto é fácil e não sei quê, a sério. A sério mesmo que falo do fundo do coração. É sair de um sítio, boleiar ou apanhar um autocarro, dormir em casa de eventuais amigos, e depois fazer o mesmo, para outro sítio. Cenas que me impressionam são ir de bicileta, ou a pé, isso acho difícil. Ou dar a volta ao mundo todo, tipo de Singapura seguir para a Indonésia, Australia, Nova Zelândia, um barco para o su, da América do Sul, subir as américas, passar para a Rússia pelo estreito de Bering, atravessar a Eurásia, descer pelo Médio Oriente, entrar em África pelo Egipto, descer a costa oriental e subir pela oriental, e voltar a Portugal.

Não sei que se passa na minha mente, por vezes. Porque reconheço a estupidez desta afirmação, sendo que antes de começar esta viagem, eu próprio tinha uma consciência acerca da magnitude, que agora me escapa. Não sei se é o meu inconsciente a fazer-me fazer mais. Ou se é uma consequência da constatação de que não vou conseguir, provavelmente, o meu objectivo a cem por cento. Não sei o que é.

Ontem deixei Islamabad. Parece que foi há mais tempo. Curti o Asim e os seus amigos. Todos estudantes de medicina. Um muito fixe, que tinha uma maneira de ser mais parecida com a minha, mais ocidental. Outro, o Amir, colega de casa do Asim. Engraçado o Amir. Veio pedir-me ajuda, conselhos, ou o que seja, da forma clássica de “imagina que te acontece isto e não sei quê”. Estabelecemos, sem falar, um contracto interessante, em que continuávamos a falar acerca das suas cenas com certas pessoas-chave, sem nunca dizermos, realmente, que era dele que estávamos a falar. De vez em quando escapava-me, e dizia “tu”, apenas para corrigir de imediato. Curiosamente, coaduna-se com o que o Asim me tinha dito e o que eu tinha lido – que os paquistaneses têm uma tendência a falar à volta das coisas, em vez de directamente.

Deixaram-me no autocarro e passado seis ou sete horas estava em Lahore. Apanhei uma riksha para o hostel e dormi. Tive de dormir cedo porque a luz foi-se e não tinha bateria no computador para me entreter. Hoje, como disse, acordei e andei por aí. Caminhei bué. E tendo-me habituado à confusão, posso dizer que Lahore tem vistas interessantes. Ainda não vi muito, mas a zona do forte é muito porreira. Pagam-se quase dois euros para entrar, mas acho que vou na mesma, amanhã.

Como ponto interessante do dia, tenho o almoço, o segundo almoço. Tinha comido um prato de arroz com vegetais por 35 cêntimos, por isso estava aviado. Contudo, passado p’rai duas horas, caminhava no bazar e dois ménes pediram para lhes tirar uma fotografia. Ora o gajo aqui acede sempre. Eles estavam frente a uma lojita de tecidos, e reparei que distribuiam pães a toda a gente que passava, quase. Após tirar a fotografia, um senhor atrás deles, sentado no chão da loja entre uns seis ou sete amigos, chamou-me. Quando dei por ela estava a almoçar com os ménes. Acabei o que me deram para não fazer a desfeita e quando estava pronto para dizer “hasta la vista”, tendo dado uns minutitos para não paracer que é encher o bandulho e andar, e os gajos meteram-me mais um prato de arroz à frente. Ainda disse que não, mas tive de comer. E não comi mais nada o dia todo, serviu!

Quando estava a voltar do forte um cota meteu conversa comigo. Como muitas vezes acontece, começam por perguntar de onde sou. Falámos um bocadito de futebol e depois ele pôs-se a falar de cricket, e de como é que a equipa do Sri Lanka podia ser muito melhor se tivesse não sei quê, e de como a Índia eliminou o Paquistão nas meias-finais do mundial deste ano. Confesso que, ainda que dizendo que sim com a cabeça, a minha mente debandou p’rai por cinco minutos, sem o pobre homem reparar. Estava à espera daqueles silêncios que servem como porta de saída mas o gajo era esperto e falava sempre com a mesma cadência, por isso eu nunca sabia bem como me livrar daquilo. Eventualmente deu, e bazei.

Amanhã vou ver mais cenas. Daqui a uns dias talvez vá para a Índia.

0h48-s-16-4-11
Lahore, Paquistão

PS – Hoje um pombo cagou-me na cabeça. Nunca me tinha acontecido.

2 comentários:

  1. olá Pedro, não me conheces de lado nenhum, mas temos muito em comum, especialmente esta paixão por aventuras e viagens. Já agora sou a Marta, prazer.
    Depois do Verão estou a planear pegar na mochila e perder-me na Asia, por isso vou ter algumas questões para ti, será que importaste de responder? Por agora só uma para não te chatear muito :) Disseste que não dava para entrar em Myanmar? Como assim? Era um dos paises da minha lista, TOP 5 mesmo...
    continuação de boa viagem!
    martitahh@gmail.com

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  2. E lá continuas tu...uns dias melhor, outros nem por isso, mas, lá vais andando!
    Outras realidades, outras VIDAS!.

    Grande abraço jovem. Estamos aqui!;):)

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