quarta-feira, 30 de março de 2011

Hamadan - Teerão

Andei com os curdos turcos p’rai três horas. Eles não falavam inglês, por isso não interagimos muito. Eles iam para o sul, e eu ia para Erbil. Sem exagero, eles pararam umas vinte vezes para perguntar as direcções para Erbil. A sério. Às vezes alguém dizia “é p’ráli”, eles iam pr’áli cem metros e perguntavam outra vez. Às vezes perguntavam mesmo depois de terem passado uma placa, ou à frente de outra placa. Mas ok, tudo bem.
               
Estava convencido que me iam deixar mesmo em Erbil, mas deixaram-me à entrada. Era já de noite e estava um certo friito. Fui caminhando, tentando chamar a atenção dos carros que passavam, mas aquele breu não me deixava ser visto nem por nada. Assim, continuei a caminhar à procura de algum sítio mais luminoso. Eventualmente dei com um semáforo. Aí falei com um taxista. Eu queria perguntar se ele ia na direcção de Erbil e se, caso fosse, me podia levar. Ele mandou-me entrar, apesar de eu ter dito que não tinha dinheiro. Andámos um bocadito e eu só para ter a certeza disse outra vez, em curdo, que não tinha dinheiro. Ele voltou a dar aquele sinal de “não há crise”, e andámos mais um bocado. Parámos, ele sacou de duas mil coroas, ou reais, ou lá o que é, já não me lembro... sei só que são dois dólares, mais o menos.

estou no autocarro para Teerão e o gajo aqui ao lado, que foi fixe e me deixou ligar para o meu anfitrião, está a dormir em cima de mim

Pois o senhor taxista deixou-me a meio caminho do meu destino, e não só não me cobrou pela corrida como me deu dois dólares para eu arranjar quem me levasse. Ora esta! No próximo semáforo fui perguntar se o pessoal ia para Erbil. O senhor do pendura disse que não mas o outro disse que sim. Deu-me a entender que me foram levar de propósito. Mas entrei no carro foi festa rija! Os gajos não cabiam em si de excitação. Era um condutor gordito de uns trinta anos, e um senhor p’rai de cinquenta. Ligaram a duas ou três amigos que falavam inglês para falarem comigo, ofereciam-me isto, ofereciam-me aquilo, mas o mais importante foi terem-me deixado ligar ao Andy, que até a essa altura não sabia que eu estava a caminho. Disse logo para eu ir lá ter, nem me deu    oportunidade de dizer o da praxe que é “se houver problema por eu vir mais cedo posso sempre ir para um hotel”. Por acaso, antes de lhe ligar tinha pedido aos meus amigos condutores, através do tradutor ao telefone, para me deixarem num hotel barato. Estaria numa situação muito pior. Isto porque o Andy, tal como o Zhino, meu outro anfitrião, me pagaram tudo, poupando eu os meus dólares, dólares esses que se revelarão fulcrais nestas próximas três semanas...
               
Entrei em casa do Andy, ele passou-me um telemóvel curdo para a mão, uma cerveja e a chave de sua casa, e disse que íamos a um sítio beber uns copos e comer qual     quer coisa e para eu fazer o que tenho a fazer.
               
O Curdistão foi tipo queima das fitas. Vai saber-me bem agora um período sem exageros (sendo que no Irão e Paquistão não se vende álcool legalmente).
               
Na sua casa estava o Steve, o Bruce e a Bonnie. O Steve é um inglês a viver em Duhok, a quem eu tinha mandado mensagem a pedir guarida, mas mensagem essa que não foi respondida, talvez por ele estar em Erbil. N a primeira noite achei-o meio palerma, mas depois acabámos por nos dar bem e ficámos juntos os próximos cinco dias, tendo ele vindo comigo para Sulaimainia. O Bruce é um americano de cinquenta e sete anos que já esteve em mais de cem países. De quem já esteve em tanto lugar e já viveu em mais de dez, esperava uma outra atitudo a nível geral. Um gajo muito crítico e julgador. E isto vindo de mim, hã, que também tenho os meus níveis de criticismo aqui sempre a bombar! Mas de todo o modo, não curti muito a sua conversa algumas noites depois. E não escondi o facto, o que o levou a entrar por aquele caminho do costume de “eu até tenho amigos muçulmanos!”. Pá quando ouvirem alguém a dizer “eu até tenho amigos pretos/gays/muçulmanos”, há que hesitar. Porque se eu não tenho nenhum problema, por exemplo, com gays, basta-me dizê-lo, não preciso de me atribuir um ponto extra afirmando que eu até tenho amigos gays. A Bonnie é uma senhora americana que supostamente conheceu o Ahdeminajad (não tenho net aqui, por isso não posso confirmar se é assim que se escreve o nome do presidente do Irão). Mas disse-me o Brian, vizinho americano do Andy e gajo altamente, que ela esticava a verdade vez por vez. É engraçado quando uma pessoa convive um bocado com alguém e houve a pessoa a contar a mesma estória duas vezes, mas com aspectos, até importantes, diferentes. Aconteceu comigo e com o Steve uma vez, mas a estória não era assim tão importante...
               
Já o Andy, u, americano da Califórina, um gajo fixe que foi um anfitrião muito porreiro. O gajo vive num T4 só para ele, tal como a Bonnie, o Bruce e o Brian, todos no mesmo edifício. O Andy ganha 4000 dólares por mês, sem pagar impostos, e os outros devem ganhar entre 2500-3500. O Steve, mais novo (tem 29), ganha 2100 dólares, também sem impostos, em Duhok. Nenhum deles paga renda. Achei um exagero. É que nenhuma pessoa sozinha precisa de um T4 só para si. O salário ainda é naquela, não vou discutir isso, mas um T4 com uma sala do tamanho de um salão de bilhar é exagerado. E não pagam contas também, o que me fazia sofrer um bocado ao ver as luzes sempre ligadas independentemente (esta é das palavras mais dífíceis de escrever sem erros, para mim, à primeira) de estar lá alguém ou não. E o ar condicionado estava ligado em todas as divisões. Eu ia desligando quando passava por eles, até que o Andy pensou alto “quem é que andará a apagar as luzes”, e quando eu lhe disse que era eu, ele disse para não me preocupar. Não falei do ambiente. Tínhamos tido uma conversa no dia anterior em que ele tinha dito que detestava hippies e essas cenas de vegetarianos e tal e então decidi não trazer à baila o assunto outra vez.
               
Na verdade, apesar de ter sido um gajo fixe, achei-o bastante cínico. Disse-o logo na primeira noite, e ele concordou. Ele e o Steve. Estava a meter-me um bocado de impressão a maneira como eles falavam das cenas, em particular acerca do couchsurfing. Bué de negativismo e cinismo. E por isso disse “pessoal, correndo o risco de dizer algo que não é, para vocês, propriamente fixe, vocês parecem-me tão negativos, e até cínicos...”. O Steve, de 29 anos, que estava bem, bem entrado e que às vezes me parecia que queria agradar o Andy com as suas opiniões, disse que eu era novo e não sabia as cenas e não sei quê e que o pessoal à medida que vai envelhecendo vai ficando cínico. Mas ‘tá-se bem. Ele pouco depois adormecer e eu fiquei à conversa com o Andy sobre religiões e deus, e coisas assim. Mas, como disse, o Steve acabou por se revelar um gajo fixe.

               
Erbil não tem nada que ver. Nada. Tudo o que fiz em Erbil foi beber cerveja, dar uma caminhada uma ou duas vezes, conversar, e outras coisas que podia fazer em Portugal. Mas foi fixe ter lá estado, foi tipo uma pausa na viagem. Fiquei lá até dia vinte e dois de Março. Tinha perguntado ao João onde se passava a fronteira e ele tinha-me disto em Sulaimainia. Ora eu nem confirmei, e cheguei a arrepender-me disso, por uma hora, e depois “desarrepender-me”, quando conheci o Lucas.

15h17-26-3-11
Algures entre Hamadan e Teerão

segunda-feira, 28 de março de 2011

Hamadan


Estou no Irão, em Hamadan. São quase três horas  locais e o gerente deste hotel acabou de se aproximar com um chá. Estou bastante cansado, passei o dia todo a viajar, mas tinha só de escrever qualquer coisa para descrever este momento. Tenho de tirar uma foto antes de ir embora a este “hotel” e ao meu quarto, pois contado apenas creio que ninguém acredita.
                   
Depois falo do Curdistão, que foi demais. Tive uma sorte enorme com as pessoas que encontrei. Como o Zhino, que não só me pagou tudo como também me pagou um autocarro de sete ou oito horas até Sanandaj. Antes de entrar ele falou com alguém para me ajudar a depois arranjar um autocarro para Hamadan. Paguei cerca de quatro dólares por esse autocarro, que me deixou na periferia da cidade. Um rapaz, sabendo que eu era estranjeiro aprontou-se a arranjar-me um táxi para um hotel. Saiu do autocarro comigo, deu-me um papel com o seu número de telefone caso eu necessitasse de ajuda e depois fez sinal ao primeiro carro que passou, e que parou. Saiu de lá um homem mais sujo que um cano de escape. Era mecânico, fez-me perceber, e pedia p’rai quatro dólares. Eu tinha dez mil reais (um dólar) e uma nota de um dólar. Renintente lá aceitou e conduziu-me a um hotel onde pediam setenta dólares. Que riso. É que aqui nem há multibancos. Ou melhor, há, mas são poucos e só funciona com cartões locais. E no Paquistão imagino que seja o mesmo. Ora eu tenho oitenta dólares comigo, é o único dinheiro que tenho, e conto passar aqui dez dias e quinze no Paquistão. Tudo se resolverá. Já pensei que posso perguntar no couchsurfing se alguém tem uma conta inglesa, e caso haja alguém, posso pedir a um amigo meu de Birmingham para lhes transferir libras, e eles depois dão-me dólares. De todo o modo, com este dinheiro só posso gastar três dólares por dia. A ver vamos. São p’rai dois euros e pico.
               
Assim, agradeci e disse que não ia dar... e o “taxista” levou-me a outro sítio. Hóteis daquela qualidade mais podre a que um gajo está habituado. Dois estavam fechados e um estava aberto. Não tem quartos, mas que interessa? “Ficas aqui”, disse o gerente, a apontar para um pedaço de chão da recepção. E aqui estou, numa cama de cobertores, no chão,, com o gerente ali a dois metros. O gajo pediu-me dez dólares. Everybody’s trying to make a buck. ‘Tá é burro. Ofereci cinco, ele disse sete e eu aceitei. Só que eu só tinha mesmo dólares. Por isso, ao fazermos as conversões eu voltei atrás e acabei por lhe dar só cinco. Pá é que estou no chão méne!
               
Vou dormir.

3h00-25-3-11
Hamadan, Irão

sábado, 26 de março de 2011

Entrada no Iraque


Amanhã sigo para o Irão. Era para ter ido hoje, ainda bem que não fui. Vi a felicidade de frente hoje, espelhada na cara do meu anfitrião, nos seus amigos a tocar instrumentos locais ao redor de uma farta mesa, naquele lago que há dez anos estava tão mais acima... Tudo isto, todas estas pequenas coisas, directamente injectadas no âmago do meu coração, tudo isto mais ou menos perto da consciência de viver momentos inesquecíveis.

Entrei no Iraque com a boleia conseguida devido à minha suposta devoção ao fogo festejante do Nevrós, o ano novo curdo. Aquela fronteira era estranha méne. Andei um pedaço dentro do taxi e mandaram-nos sair. Um par de vezes. Nunca sabia se devia ter o passaporte na mão ou não. Mas eventualmente chegou uma altura em que lá o mandei, e passados uns escassos dez minutos tinha um selo a dizer “válido por dez dias”. Fixe. Onde é que eu ia? Sabe deus. A minha ideia era ir para Duhok, porque tinha perguntado ao João, o puto que bazou de Portugal comigo e que cá esteve mais cedo, o que valia a pena, e a sua anfitrião tinha-lhe dito que esta cidade era bacana. Assim sendo, mandei pedidos pelo couchsurfing para Duhok para esse dia e para Erbil, a capital curda, para dois dias depois. Em Duhok, nada. Em Erbil, a mensagem de um méne chamado Andrew a dizer “ok, liga para xxxxxxxx quando chegares”. Ok, fixe. Nada específico, na verdade.

A minha boleia deixou-me em pleno Curdistão. Ok, tranquilo. Uma vez na estrada estiquei o polegarzito e um carro parou dentro de um par de minutos. Mas a cena é que não tinha o meu sinal a explicar a minha cena. E ainda que este país seja muito dado a dar boleia, não entendem o conceito muito bem. Por isso mandaram-me entrar após terem dito algo que me soou a “polícia”. Hesitei. Lá disse “no problem; no police” (um gajo tem de reduzir o inglês ao mínimo, correndo o risco de desaprender a língua). Eles queriam ajudar, mas eu não queria falar com a bófia mal entrava no país. Bem os gajos andaram comigo duzentos metros, no máximo, e pararam perto da polícia. Eu não fritei muito, mas fiquei um bocado naquela, e quando vi o carrito branco, um entre tantos, a desaparecer no horizonte, segui caminho. Mal sabia eu a razão pela qual lá me tinham deixado...

Estava eu a sair do carro e apareceu o mesmo taxi com quem tinha atravessado a fronteira. “Jackpot”, pensei. “Eles vão para o sul e vão-me deixar em Duhok”, pensei, num nível mais subconsciente. Mas não. Iam “só” uns quatro quilómetros. Mas à boleia, cada metro é benvindo. Lá me deixaram numa estrada qualquer, em direcção a Duhok e/ou Erbil. Decidi nesse momento ir para Erbil. Tinha o número de um couchsurfer, e ligar-lhe-ia a dizer “méne cheguei dois dias mais cedo, se for chunga posso ficar num hotel”. Sempre era melhor que nada ter, como era o caso de em Duhok.

A polícia chamou-me e eu não percebi muito bem o que queriam. Um méne que falva algum inglês disse-me para andar mais p’rá frente que a outra polícia me ajudaria. Hã? Estava um bocado naquela, por isso segui p’rá frente, mas não fui falar com a polícia como ele sugeriu. Ao invés estiquei o dedo. Parou logo um méne com uma das carrinhas mais podres onde já andei. A subir era tão rápida como um caracol com com diabetes. Mas era um automóvel, quem sou eu para mei queixar? Este irmão, que apesar de pouco inglês falar, muito me ensinou acerca dos costumes locais, fez-me perceber a razão pela qual o pessoal anteriormente me tinha deixado com a polícia. É que este gajo levou-me mais de uma hora e depois disse, na sua própria maneira, mas compreensível “eu deixo-te com a polícia e peço para eles pararem um carro para ti”. Hã? Tinha lido acerca disto, mas não estava realmente expectante que comigo assim acontecesse. Mas aconteceu. O gajo parou o carro, chamou-me irmão, deu-me cinco maçãs, três ao militar, falou com ele, e quando dei por mim estava num carro de curdos turcos a caminho de Erbil...


                2h58-5ª-24-3-11
Sulimaini, Curdistão, Iraque

quinta-feira, 24 de março de 2011

Síria-Turquia-Iraque


É uma menos um quarto. Eles pediram-me para mostrar música da qual eu gosto. Pus Bob Dylan, Maggie’s Farm. Estamos quatro no quarto. Eu, o Steve, que conheci em Erbil em casa do Andrew, o Zhino, o nosso anfitrião, e o Ahmed, amigo do último. Pessoal altamente, não conhecem Bob Dylan, ou Bruce Springsteen, ou Nirvana. Já tinha percebido a cena na Síria – que, tanto quanto me parece, as verdadeiras estrelas mundiais não são os cantores ou os actores, mas os futebolistas. Se eu tivesse um cêntimo por cada t-shirty do Ronny Cristy que eu vi nesta viagem tinha já p’rai... trezentos cêntimos. Ok, não é muito dinheiro.

De todo o modo, divago. O que é certo é que estou agora em Sulaimani, ou seja como for que se escreve, no Curdistão, Iraque. Estou um pouco embriegado. Pouco. Daquele pouco que dá para disfarçar perfeitamente vendo, mas que se torna mais real escrevendo. Estas teclas pequenas pá! Sei que não escrevo há uns tempos! Ok, altura de coerência. Vou começar com o Iraque, e depois, se ainda tiver energia e não me apetecer dormir, falo da Síria. Caso contrário a Síria fica para mim.

Oh, que se lixe. Abordo a Síria de repente. Fui ver Palmyra. Curti bué. Fui sozinho, paguei seis euros para ir e vir de lá, de Damasco, a minha bela cidade. Cheguei, conheci um pessoal com quem partilhei um taxizito demasiado caro (cinquenta cêntimos cada um) e de quem depois me separei, porque eles iam dar uma olhada num hotel e o meu tempo estava limitado. Tinha três horas para ver aquilo, porque o último autocarro era às seis e meia. Todavia curti uma rapariga, que me pareceu bastante criativa ao dizer, como se estivesse bêbeda, mas sem o estar, que a minha viagem era como pôr uma fatia de pão em Singapura e outra em Portugal e comer o mundo.... Hum. Acreditem que isto agora parece pascácio, mas a maneira como ela expôs esta ideia pareceu-me genial, talvez por ela o ser, quem sabe. E ainda deu outro exemplo envolvendo um gelado, um cone e diferentes países. Mas da qualquer maneira isto foi tudo num instante, em três minutos. E já estou a demorar demasiado tempo na Síria.

Curti bué Palmyra. Andei ao desbaratinho, o que faço melhor, a explorar as faculdades da minha máquina e do horizonte. Desafiei o monte, subi-o, parti-me todo e não pude entrar no castelo, porque eram oito euros. Ouvi um casal cota, bastante cota, a falar norueguês e introduzi a conversa perguntando as horas em norueguês. Os gajos eram de Askim, uma vilita a dez quilómetros da minha super pequena vila, Mysen. Que cena. Na Síria. Às vezes o cota falava como se eu fosse um professor catedrático de norueguês, nascido em Oslo, e tinha de lhe dizer “hei pá, o meu norueguês não é assim grande espingarda, e eu falo melhor do que percebo”, e ele lá abrandava. Eventualmente lá desci o monte, contrariamente às indicações dos locais, apanhei boleia duma mota, depois de um gajo que dizia “for free” mas depois pediu dinheiro, e a quem eu disse “méne tu não pediste dinheiro no início” e que disse “ok, certo, não pagas nada” e a quem eu, por me ter levado um bom pedaço e ter aceite o facto de que eu não pagaria, paguei cinquenta cêntimos. Às vezes escrevo de uma maneira super confusa. Depois foi chegar à estação e siga dormir.

No dia seguinte abraçei Damasco novamente e no final do dia fui ver o Machester United – Marselha com o meu anfitrião Nick e os seus amigos. Passei-me com o apoio que os sírios prestam a equipas de países que não os seus. Acho que já falei disto hoje. Mas iá, o pessoal aqui vibra duma maneira incrível com equipas europeias, mas quatro ou cinco apenas.
               
No dia seguinte passei um bom bocado na net e depois fui ter com o Habib e o Mazen. Era suposto ter já bazado, mas na primeira noite os gajos convenceram-me a ficar porque quinta-feira é muito fixe e não sei quê. Acedi, e ainda bem. Grande noite. Começou meio despercebida. Tipo fui ter com eles lá p’rás sete e fiquei, ora à conversa com o Brad, americano de Chicago que falar português, ora no computador. Até às dez da noite não sabia se ia haver algo, realmente, ou não. Às dez disseram “iá confirma-se, temos house party às onze”. Onze? Uma festa a começar às onze na Síria? Altamente! Completamente contra o previsto.
               
Pois então fomos comprar Arak (ai o Arak...) e siga. Demorámos um bom pedaço a chegar ao sítio. Estávamos eu, o Habib, o Mazem, o Luke american, o méne da Jordânia, a rapariga inglesa e o outro de Numseionde. A cada trezentos metros o pessoal duplicava. Altamente. Encontrávamos pessoal que se conhecia, e que parecia ir para a mesma festa. Tal como o Nick, o meu anfitrião chinês. Já agora, nessa noite não ia ficar com ele, porque ia ter a casa cheia de familiares do Antoine, o seu amigo francês.
               
Lá encontrámos a casa. Ficámos lá cinco minutos. Parecia haver outra festa e para lá todos fomos. A sério, saltitar de house party em house party na Síria foi algo que nunca imaginei acontecer, especialmente para lá das onze da noite. A festa onde chegámos estava ao rubro. Aquilo era só pessoal, de todo o mundo, cada um com a sua cena, a beber a sua cena, com umas colunas quaisquer de má qualidade no canto a tocar uma música foleira qualquer. Demais. Curti bastante. Falei muito com americanos sobre o Obama e com muçulmanos sobre o conceito de deus. O Arak (é tipo o Ouzo grego) supreendeu-me e quando dei por mim estava já bem lançado. Mas fize.
               
Pá de lá fomos para outro lado e desse a noite tornou-se num sono do qual eu despertaria, na noite seguinte, disposto a chegar ao norte da Síria. Queria chegar ao Iraque. O Iraque está dividido no Iraque e na zona autónoma do Curdistão. Se eu fosse da Síria para o Iraque, em primeiro lugar, talvez fosse impossível, em segundo lugar, muito perigoso, e em terceiro (o único que eu sei de certeza), teria de pagar oitenta dólares pelo visto. Assim sendo, tinha de seguir para norte, para entrar no país pela Turquia, de onde podia entrar gratuitamente. Só que às vezes vou muito ao sabor do que calhar. Quiçá demasiado. Neste caso nem foi mau de todo, mas quando eu acordei, naquela manhã de dezoito de Março, não sabia onde ia ficar. Apanhei um taxi de vinte cêntimos e uma vez na estação mostrei a minha lista de cidades para onde podia ir. Parecia que havia um autocarro para Al Qamishli, pertinho da fronteira turca, por oito euros. Doze horas de autocarro. Tinha pensado em boleiar, mas estava de ressaca, e doze horas por oito euros pareceu-me fixe. Siga caminho.
               
Cheguei a Qamishli mais cedo do que o suposto. Dez horas, tomou. Um senhor queria mesmo ajudar-me, e apanhei um taxi quase para lhe fazer o favor. Paguei-lhe um euro, na moeda local, e o méne deixou-me num hotel que o senhor de antes tinha aconselhado – eu tinha dito que tinha pouco dinheiro então ele disse ao taxista para me deixar num sítio barato. Cheguei ao hotel e um quarto custava dez dólares. Nada feito. Porque uma noite num edifício em contrução é gratuita. “Obrigadinho, mas vou seguir caminho”. E lá segui. Caminhei aleatoriamente e vi um sinal todo podre a dizer hotel. Aí o preço eram trezentas liras sírias. Quatro euros e sessenta. Mostrei ao méne as minhas trezentas liras e disse “only money” [único dinheiro] enquanto esfregava o estòmago. Basicamente a mensagem era – só tenho este dinheiro sírio e preciso de comer ainda. O gajo fez-me a cena por duzentas e cinquenta liras, três euros e oitenta. O único hotel onde eu já estive onde não havia papel higiénico...
               
Com as cinquenta liras fui à internet. Tinha de procurar casa onde ficar no dia seguinte, no Curdistão e ver o meu mail e tal. Gastei vinte e cinco liras, quantenta cêntimos. Quer dizer que tinha quarenta cêntimos restantes. Comi uma cena fixe. Acho que custava mais, mas fui a um sítio de falafel’s e cenas afins, e quando perguntei se tinham algo por vinte e cinco liras, os gajos disseram para eu escolher o que quisesse, que o preço não interessava. Confesso que isto foi o que eu percebi, e não necessariamente a realidade. É que eles não falam português e eu não falava árabe. Mas o certo é que apontei meio à sorte para um tipo de carne qualquer e eles sorriram e forneceram. Demais. Vi o Easy Rider antes de dormir. Apetece-me falar do filme, mas não o farei. Abordo só a eventual inveja humana de atributos de outréns. Atributos esses escolhidos e não inerentes à condição sócio-económica de alguém ou outras cenas assim. Quem viu o filme talvez entenda.
               
No dia seguinte acordei farto da preguiça. É que tinha apanhado um autocarro de dez horas. Ok, foi só oito euros, vale a pena... mas confesso que quando um gajo anda à boleia, parece que, depois, apanhar transportes públicos soa a batota. Já não é tão genuíno. Ainda que ache que vá apanhar bastantes até Singapura.

Méne deu-me um certo sentimento agora. Que liberdade! Vi-me a mim mesmo pendurado no destino rodoviário, a falar comigo mesmo, como faço, sorrir para a chuvita, minha companheira de vez em quando, desde Portugal até para sempre, e curti bué. Estou tão à vontade nesta viagem. Sentimentos nem por isso agradáveis por vezes fazem-se sentir, como um candeeiro de solidão ou uma toalha de mesa de saudades, mas são retalhos enquadrados num quadro tão global quanto a imensidão da noção de fazer o que está certo. Não tive medo ainda nesta viagem. Nunca. Já estive apreensivo, algumas vezes, mas ainda não tive medo. E acho que não terei. Tive receio por antecipação, ao pensar em, por exemplo, andar à boleia no Iraque, mas tendo-o feito... são... batatas fritas...

               
Então acordei, e fui caminhando em direcção à fronteira. Entretanto tive de pagar a treta dos doze dólares para deixar a Síria. Uma vez na Turquia, fui aos meus bolsos e encontrei quatro liras turcas. Pensei em como gastar esse guito de uma maneira eficiente  e comprei dois pacotes de bolachas para me alimentar nesse dia. Isto foi no sábado. Foi a última vez que gastei dinheiro. Hoje é a noite de quarta para quinta. Tem sido altamente. Comendo essas bolachas estiquei o dedo. Quando dei por mim tinha apanhado boleia de uma carroça puxada por um cavalo. Tróc tróc tróc... saí e passado menos de um minuto, boleia de uma mota. Menos de um minuto e estava na estrada para Cizre, este da Turquia. Mas aquilo era só pessoal à boleia. Locais. A cada trezentos metros. Seguindo o código, fui passando o pessoal, para estar para lá deles. Decidi fazer render o meu Vodafone Travel e liguei à pessoa com quem mais naquele momento queria falar. E apanhei boleia, ainda ao telefone. Não tenho culpa, eu pus-me depois dos outros ménes, não lhes roubei a boleia, por isso a cena é que ele talvez me tenha dado boleia pela mochila, que traduz a minha estrangeirisse, ou o meu cabelo semi-comprido, idem.
               
O méne deixou-me para lá de Cizre. Caminhei uma meia hora e apanhei boleia de um táxi até à fronteira. Aí, as oportunidades paraceram escassar. Tinha de passar a fronteira de carro, como na Grécia p’rá Turquia, e carros era o que não havia p’ráli. E os camiões não me podiam levar. E o pessoal abutre fronteiriço pedia vinte dólares. Por amor de deus! Vinte? Na minha estupidez, ainda ofereci seis. Ainda bem que não aceitaram. É que passado um bocado apareceu (mais) um táxi, quase cheio, só um lugarzito, e eu lá fui tentar a minha sorte, com o meu sinalzito em árabe, a explicar a cena... havia uma senhora no lugar do pendura, que falava inglês
               
- Onde vais? – perguntou.
- P’ró Iraque. Curdistão.
- Porquê? Qual é o teu propósito?
- Bem,... gostava de visitar o Curdistão... e queria estar lá no Nevrós – ora o Nevrós, que seguramente não se escreve assim, é o ano novo curdo, e tipo o dia nacional da mesma nação. Ela estava à procura de uma razão válida para visitar o seu país, pareceu-me, e esta pareceu-me ser uma boa resposta, sendo que da qualidade da mesma poderia advir uma boleia.
- Ah... vais fazer  fogo? – perguntou-me ela. “Are you gonna make fire?”, perguntou-me exactamente. Pá... estou na fronteira de um país acerca do qual pouco sei. Sei do que falam, como bombas e merdas assim, mas sei que isso, eventualmente, nada tem que ver com a realidade. Mas ainda assim, na fronteira, a senhora pergunta-me se eu vou fazer fogo? Não sei que dizer e sei que da minha resposta depende a sua boleia. Assim, sorri e acenei lentamente, esperando que ela repetisse – É que para festejar o Nevrós tens de fazer uma fogueira [... make a fire] – disse a mulher.
- Claro que vou fazer uma figueira, então não?! – respondi, genuinamente animado.

E assim entrei no Iraque.

2h14-4ª-23-3-11
Sulaimani, Curdistão, Iraque