terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Até Barcelona

O Dani e a Verónica estavam de folga naquele dia. Tinham dito que podíamos ir dar uma voltam mostravam-me algumas cenas porreiras e tal, mas eu tinha de bazar. Já lá tinha ficado uma noite a mais do que tinha planeado, era tempo de seguir viagem. Eles deram-me boleia até um sítio a meia hora de Pas de la Casa onde seria mais fácil arranjar uma boleia. Pelo caminho ainda apanhámos um Moldavo que falava umas quatro ou cinco línguas.

Foi fixe porque eles deixaram-me numa estação de serviço, foram comprar uma cola, e antes que tivessem bazado, eu já tinha seguido com um cota espanhol. Este deixou-me numa estação de serviço onde passava um carro a cada dez minutos. E isto, na estrada, porque parar lá, ninguém parava. Ora boleiar na Espanha com o dedito, em vez de ser a falar com o pessoal, não é uma das cenas mais fáceis, pelo que achei que estava lixado. Mas não! Apanhei boleia de um gajo da UPS, que me levou meia horita e me deixou noutra estação de serviço. Daí, demorei cerca de uma hora até apanhar uma boleia do Xavi, que me levou direitinho até Barcelona. Um gajo de vinte e cinco anos, muito porreiro, a passar por um momento muito complicado na sua VIDA. O seu pai tinha tido um acidente de mota, e estava em coma.
               
- Andámos a pagar o seguro anos e anos pá... e agora não querem pagar nada. Estou a ir para ma reunião agora com o advogado, mas não sei como vai ser. E se não conseguirmos que o seguro cumpra a sua obrigação, não sei como vai ser. Posso vender este carro, – um megane novo – mas mesmo isso só dá para alguns meses. A clínica onde o meu pai está custa quase quatrocentos euros por dia – contava-me, com um peso nas palavras e umas pequenas asinhas no tom de quem quer acreditar que tudo vai correr bem. Frustram-me imensamente estas situações. Este sistema de capitalismo onde os humanos são... números. Num sistema onde fazer dinheiro é imperativo, as VIDAS perdem valor, as relações interpessoais e humanas são lançadas para um plano onde só se conta quando é alguém cuja perda significará, para nós, uma perda também. Quando o sofrimento acontece um par de casas rua abaixo, já não interessa. Porque não tem a ver comigo. A individualidade que tanto se encoraja neste ocidentalismo faz com que nada mais interesse. Corrompe-se um valor que devíamos levar dentro do peito. Saber que, ainda que sejamos a pessoa mais importante da nossa VIDA, não somos a pessoa mais importante da VIDA.

Quando cheguei a Barcelona, demos um abraço e eu pus-me a caminho da internet. Ainda comi qualquer coisa num café, mas a internet não funcionava. Finalmente apareceu um canto onde a cidade de Barcelona me oferecia um bocadinho de rede, gratuitamente. Saquei o número do Alex e do Albert, que tinham vivido comigo na Finlândia, mas o Alex não atendia e o número do Albert não funcionava.
               
- Não te preocupes que não me estorvas – diz-me um cota com cara de parvo. É que eu estava sentado na minha mochila, encostado a uma coluna, três mestros à frente da porta de um prédio. Pá que estupidez, detesto estas abordagens. Será que custa muito uma cena como “olha, chega-te um bocadinho p´ráli porque estás no meu caminho”? E o pior é que nem estava no seu caminho.

- Ok, ainda bem – respondi. Entretanto estava à procura de alternativas. Havia um hostel a nove euros. Depois perguntei na minha página do facebook se alguém tinha um amigo naquela cidade que me pudesse albergar. E havia. Foi um pequeno alívio. O verdadeiro alívio foi quando vejo um mail do Albert a dizer para eu ir ter com ele à estação de Gorg, na línha púrpura. Espetáculo. Voei para o metro, ainda me enganei porque segui sempre em frente e depois tive de voltar, mas lá dei com o sítio, que já era noutra cidade, em Badalona. Estava um bocado nervoso. Ia ver o Albert passado tanto tempo...
               
Eu e o Albert vivemos juntos em Jyvaskyla, na Finlândia, de Setembro de dois mil e quatro a Maio de dois mil e cinco. No primeiro semestre vivemos com a Laura, sua namorada com quem partilhava o quarto (apesar de ela ter um outro quarto no andar de cima para onde ia quando tripavam) e com o Valerio, nosso amigo de Roma. Éramos como uma família feliz, e ter passado esse ano com ele foi um grande contributo para aqueles tempos terem sido dos melhores na minha VIDA. O nosso apartamento era uma espécie de sala comum do prédio. Fosse para noites de loucura, fosse para jogar risco ou simplesmente conversar, a partir das oito da noite, o pessoal começava a chegar e a ocupar a cozinha. No segundo semestre o Valerio ia voltar para a Itália e havia bastante pessoal interessado em vir para o seu quarto. Demos preferência ao Alex, também catalão, e que fazia parte do nosso grupo mais imediato. À conta das vezes que chorava bêbedo, será eternamente conhecido como o “Kid”. Recordarei sempre o dia em que voltei de Portugal no Natal, no dia dezoito de Janeiro. Voei com a Cristina, portuguesa que também estudava psicologia. Saímos do táxi à porta do prédio e olhámos para cima. Da varanda do meu apartamento, no segundo andar, caía uma faixa enorme que chegava até ao chão, de um metro e pico de largura. Podia ler-se, em letras garrafais “Welcome Pedro”. Foi das melhores coisas que já fizeram por mim. Entrei e trocámos as prendas de Natal. Hoje, ao escrever isso, uso ainda os calções do Barcelona que recebi nessa noite.
               
- Pedro, diz lá quando é que vou embora... – disse-me o Albert, um dia. Estávamos em Maio, e a Laura, sua namorada na altura, já tinha bazado. O Albert não bazou muito mais tarde. E o meu erasmus começou a desaparecer com a sua ida, que marcou o princípio do fim.
               
Encontrámo-nos em Setembro do mesmo ano. Um grupinho veio até Portugal e descemos a costa, parando para surfar nesta e naquela praia. Depois disto, encontramo-nos em dois mil e sete. Fui visitar o Alex e apanhámos um comboio até à montanha. E então já não nos víamos há quatro anos. Mas no primeiro momento que nos vimos, quando apareceu ali na estação de metro, foi como se tivessemos viajado no tempo.
               
- As mulheres são estranhas pá... – dizia-me, na mesma noite, lá p´rás duas da manhã, estávamos na descontra na sua sala.
- Porquê?
- São tão complicadas, sempre a falar uma das outras, sempre a pensar em demasia... tipo... se não falam durante uns tempos, pensam logo que a outra está chateada, ou que a relação já foi à VIDA, sei lá, coisas assim... E nós – eu e ele – podemos estar quase um ano sem mandar um mail ou coisas do género, mas quando nos encontrámos, é como se tivéssemos ainda em Jyvaskyla! – acho que isto diz tudo. De facto, curti bués estar com ele aqueles dois dias. Além disso, o Albert é daquelas pessoas que têm uma luz especial. Não há um montão delas. E não quer dizer que quem não tem essa luz não seja uma pessoa fascinante e boa o suficiente para se morrer por ela. Mas há uma luz. Que algumas pessoas têm.
               
O Albert vive com a Raquel, uma rapariga boa onda, com personalidade e bastante diferente dele, que é um instrutor de snowboard e professor de chavalada. A Raquel trabalha numa empresa de marketing e viaja bués em trabalho e tem assim uma estrutura mais rígida. São um casal fixe de ser ver, apesar de, para mim, ter sido muito estranho inicialmente. É que na Finldândia o Albert não era só o  Albert. Era o Albert e  a Laura. Andavam sempre juntos, viviam juntos, eram uma parte daquele sistema. Depois vê-lo com a Raquel foi, como disse,... diferente.
               
Jantámos nessa noite e  passámos o serão à conversa. A Raquel adormeceu no sofá, o Albert levou-a ao colo para a cama, e depois ficámos no paleio até às duas e tal. No dia seguinte acordei à vontade, almoçámos qualquer coisa, e fomos dar uma volta pela cidade. Encontrámo-nos com a Raquel e fomos beber um chocolate quente num daqueles sítios que tem não sei quantas dezenas de anos. Íamos jantar fora, mas estava assim meio de chuva, por isso ficámos por casa. Foi fixe na mesma. Um serão como o anterior, conversa, chouriça, pão com tomate, siga!
               
Acordei no dia seguinte ceducho, e fui com o Albert até ao metro. Demos um abraço e segui para Madrid, onde chegaria, mas a custo...

sábado, dezoito e cinquenta e nove, vinte e seis de novembro de dois mil e onze
Portalegre, Portugal






quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Andorra



De Montpellier a Andorra tinha trezentos e poucos quilómetros, seria uma viagem mais ou menos tranquila, apesar de ter chegado já de noite.
               
Acordei tarducho, arranjei-me e fui para o metro. Deixei-me ir, sem pagar, até à ´´ultima estação da “linha das rosas”, saí e fui para a portagem. Lá estava uma chavala que se safou de imediato. Estava sem malas e vestida toda pax-pix, parecia que fazia isto com frequência, e só para ir “até ali”. Eu não tive menos sorte. Parou um cota com uma boa pinta, que me levou. Fomos falando de história em francês, mas a meio percebi que também falava inglês, o que é sem dúvida melhor. Ele queria ir levar-me a comer umas ostras, e apetecia-me mesmo, porque curto bués estas ocasiões boleiantes, mas achei melhor seguir caminho.
               
Deixou-me numa portagem, onde esperei quase uma hora. Estava lá uma rapariga e combinámos que, caso um conseguisse, pedia para levar o outro. Eu safei-me com uma senhora de cabelo curto, mas ela não acedeu ao meu pedido. Esta também me falou muito de política, sempre em francês, e acerca dos tristes feitos europeus em África. Deixou-me numa estação de serviço onde tive de esperar um bom bocado. Daí segui com o casal mais calado de sempre, que me deixou perto de Perpignan. Lá fiquei numa portagem, ninguém ia para os lados de Andorra. Resolvi aplicar o golpe de Zurique e de Milão (entrar na cidade e lá tentar perceber como me orientar melhor), mas um casal levou-me uns quilometritos à frente e deixou-me mesmo ao lado de uma placa que dizia “Andorra”. “‘Tou fodido, aqui só com o dedo...”, pensei. Pensei mal. Porque passados vinte minutos estava no carro de outro cota, ainda mais falador que o primeiro, que me levou prai uma hora e meia. Este era mais daqueles que eu não percebia muito bem e dizia que sim com um sorriso. Não comia queijo, não bebia, não fazia nada das cenas que dão tanto prazer, isso percebi bem porque fez questão de o sublinhar. Não gosto quando o pessoal faz isso. Quero dizer, que cada um faça o que lhe apetecer, mas eu não o quero fazer... Vendo cinco anos da minha VIDA pelo prazer de comer queijo, francesinhas e amendoíns à vontade, e não me preocupar com vinhos, whiskeys ou cervejas...
               
Ia escurecendo, e este cota deixou-me a cerca de oitenta quilómetros de Andorra. Deixou-me no meio de uma aldeia que não era nada mais do que cem metros de casas, no meio das montanhas. Estava a adorar aquele cenário. O Outono era todo meu ali na França com um pé em Andorra. Fiquei na beira da estrada, já a apertar o casaquinho, quando um casal parou. Levaram-me prai meia hora, dormi um bocadito. Outra vez na estrada, fui apanhado num ápice por duas espanholas, aquele dia de dedo espetado estava a correr brilhantemente! Tanto que quando me deixaram, não esperei mais que dez minutos até ser apanhado por um carro com um casal e outro rapaz a fumar toda a ganza que podiam antes de atravessar a fronteira. Benvindo a Andorra.

Ia ficar em casa do Dani, que não sabia quem era. Tinha postado na minha página do facebook que ia para Andorra, e a Joana disse que estavam lá uns valecambrenses, e deu-me o contacto do Dani. Como o Dani tinha uma imagem qualquer de snowboard no seu perfil, não sabia quem era. Foi por isso com surpresa que o vi aparecer no McDonalds para vir ter comigo.
               
- Ah, és tu! – tinha-lhe ligado de uma cabine.
               
Passei três noites em Pas de la Casa, e foi muito fixe. Achei aquele ambiente fascinante, não pela sua espetacularidade, mas pelo fenómeno social que é. Tive essa impressão de imediato, e fui  confirmar – Andorra é o país do mundo com maior percentagem de imigrantes, sendo esta de mais de setenta por cento em dois mil e cinco. é incrível, sem d´´uvida. Isto depois do Vaticano, que tem cem por centro de imigrantes... Por razões óbvias, que é o facto de rapazinhos não poderem engravidar.
               
Na primeira noite fiquei um bocado em casa do Dani à conversa com a Verónica, a sua namorada chilena, e depois fomos ter com o Bebé. Pelos vistos tinha havido festa da grossa no dia anterior, e o pessoal estava todo partido. Contudo, ter estado ali com eles naqueles dias deu-me a entender que, com festa ou sem festa para desajudar o descanso, o pessoal trabalha de caraças. Muitas horas, uma folga por semana quando têm esse privilégio.
               
A Veronica veio do Chile para a Espanha há alguns anos à procura de um trabalho que pagasse um pouco mais, aliado à aventura natural de quem atravessa um oceano. Conheceu o Dani já em Andorra e agora partilham um apartamentozinho pequeno mas muito bacano. O outro valecambrense que lá está é o Bebé. Foi fixe ter estado com ele, porque é daquelas pessoas que conheço quase desde sempre mas com quem nunca tinha falado mais que cinco minutos. O Bebé está lá há dois anos, está bem e confortável, mas também trabalha mil horas por dia, mil horas por semana. Pelo que percebi, e me disseram, os portugueses tanto têm má fama por terras andorrenhas, como fama de trabalharem muito. Coisas opostas, mas enfim. O Bebé e o Dani caem claramente na segunda categoria.
               
Na segunda noite fomos dar uma saída. É que na primeira percebi que o Dani queria ir beber uns copos, mas porque eu estava lá e ele queria ser um bom anfitrião. Mas eu disse que não havia crise, e saímos na noite seguinte. Fomos até casa do Bebé, ficámos lá um pedaço, depois saímos para o sítio onde eles costumam ir e conhecem o bartender, um gajo de Viana do Castelo. Mas claro, numa vila com duas mil pessoas, seria era estranho se não se conhecessem quase todos.
               
Pareceu-me, acima de tudo, que Pas de la Casa estava em stand-by. É que toda a gente falava com um sorriso e olhos sonhadores de “quando vier a neve”.
               
- Pá agora não se passa nada, como tu vês... mas na época um gajo pode fazer snowboard todos os dias, está cheio de malta, vêm mais pessoas para trabalhar, não tem nada a ver – diziam, mais do que uma vez. E eu acredito sendo que, efectivamente, não se passava nada ali. Mas é aquela cena, não tem de se passar alguma coisa, se estás com um grupo porreiro de três ou quatro. Foi por isso que apesar de toda a calmaria, chegámos a casa lá   prás cinco da manhã.
               
- Não fiz muito no resto dos dias. Num dia fui dar uma volta, ver um lago que até é bonito e, acima de tudo, descontrair. Saímos mais uma noite, que foi tipo a primeira. E na manhã seguinte, segui para Barcelona.

sábado, treze e cinquenta e oito, vinte e seis de novembro de dois mil e onze
Portalegre, Portugal




domingo, 18 de dezembro de 2011

Montpellier


Tinha trezentos e poucos quilómetros pela frente até Montpellier, o que era tranquilo. Deixei a casa do Hassan, e fui a pé até onde me tinha deixado o Filipe. O hitchwiki não tinha ajuda para Antibes, mas mesmo que tivesse, aquele sítio parecia-me porreiro. Demorei mais de uma hora até lá chegar, mas quando cheguei foi na boa. Esperei dez minutos e apanhei boleia de um checo, que me deixou na próxima estação de serviço.
               
Lá esperei mais de uma hora, mas apanhei uma boleia de quase cem quilómetros de uma rapariga com quem ia falando em francês. Ela deixou-me numa estação de serviço ali à frente e apanhei boleia de um cota italiano bem vivido, com quem fui sempre à conversa, em inglês. Ele tinha passado algum tempo nos Estados Unidos, tinha estórias de amor na Noruega, Índia, Itália, um pouco por todo o lado. Era, como eu, um gajo que tinha alguma dificuldade em entender, e especialmente aceder, a certas convenções ocidentais. Ele ia visitar um tio que estava a morrer, em Orange. Deixou-me para lá de onde devia ter deixado, mas ainda era cedo, por isso não me preocupei. E não tinha mesmo nada com que me preocupar! É que em poucos minutos estava num carro que me ia levar direitinho a Montpellier. Uma senhora, com o seu filho à frente, parou para tirar o ticket antes de entrar na autoestrada, perguntei se ia para sul, ela disse que ia passar por Montpellier. Sorri, ela disse que estacionava à frente, eu corri para a encontrar, sem saber que tinha a alça da mochila presa a um ferro da barreira entre estradas, e dei um tombo fenomenal, para gáudio do carro que vinha atrás.
               
Quem me apanhou foi a Shayne, uma mulher branca que nasceu no Zimbabwe. Era professora de inglês numa universidade e ao mesmo tempo era responsável pela promoção na França de obras de arte de artistas do seu país. Daquelas pessoas que deixa atrás de si um currículo de coisas positivas neste mundo, que fica melhor com a sua presença. Trazia estes artistas para a Europa, e ajudava-os, com o dinheiro das suas obras, a promover alguns serviços naquele país africano.
               
Ainda parámos em casa do filho de uma amiga dela para irmos buscar umas cenas, e depois seguimos, sempre à conversa, até Montpellier.

Quando cheguei, fui ao McDonalds, mais uma vez, para usar a internet. Comuniquei com a Kristine e fui ter a casa dela. A Kristine é uma rapariga letã que estava na França há um par de anos a estudar já não sei o quê. é simpática. Não senti aquele verdadeiro feeling que já senti com outros couchsurfers, mas na verdade, pobre Kristine, a concorrência dos últimos dias não dava grande chance – o Hassan em Antibes, o Marco em Génova, o Danny em Langenargen, a Ewa em Poznan e a Zofia em Varsóvia, tudo malta de primeira ordem. E que fixe é... às vezes passo-me completamente com o número de pessoas bestiais que já tive o privilégio de conhecer. Sinto-me, realmente, privilegiado. Privilegiado por ter tido essa oportunidade, por ser humano, por ter andado pelas suas terras. E tenho, também, felizmente, pessoas à minha volta, todos os dias, que são igualmente fascinantes. Mas às vezes é fácil esquecer isso e pensar que “a malta lá fora é que é fixe”. Não é verdade. A verdade é que a malta lá fora é diferente. E se eu vivesse sempre na Polónia ia gostar de um português como gosto de um polaco vivendo eu agora em Portugal. é que devíamos dar prioridade à diferença que algumas pessoas nos oferecem. Não os devemos tratar melhor do que aqueles com quem estamos todos os dias, nada disso, mas devíamos recolher o que podemos de pessoas que pensam de uma maneira diferente. Um grande medo que tenho de ficar em Portugal é precisamente perder essa constante fonte de inputs que fui tendo ao longo dos tempos, fosse com o meus amigos na Noruega, na Inglaterra, ou as pessoas que alberguei em terras de sua majestade. E claro – nesta viagem...

Nessa noite fomos a uma festa em casa de uns amigos da Kristine. Não era uma festa de couchsurfers, mas a maioria ali era-o. Foi uma noite muito fixe, que também me deu um bocado de perspectiva acerca do meu gang de amigos e, ou couchsurfers, em Birmingham, que é um grupo completamente doido. Esta noite foi fixe mas não houve nenhuma loucura, daquelas que estavam presentes em minha casa em Birmingham como óleo num estrugido...

No dia seguinte acordei com Andorra como objectivo. Nunca lá tinha estado, porque não fazer um pequeno desvio e ir lá ter?

quarta, catorze e vinte e dois, vinte e tres de novembro de dois mil e onze
Vale de Cambra, Portugal

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Antibes


Como queria ir ao Mónaco, arranjei sofá em Antibes, ali pertinho. De Génova cheguei a Antibes sem problemas, mas acabei por não ir ao Mónaco...

O Marco deixou-me numa estação de serviço que era também o sítio aconselhado no hitchwiki. Estive aí uma horita, apanhei uma boleia, que me deixou a uns cinquenta quilómetros. Não se passava muito nessa, mas não demorei mais de meia hora a arranjar boleia até perto da fronteira. Aí, mal cheguei, a polícia que lá estava a lanchar ou a passar tempo, vendo-me, perguntou-me se eu estava à boleia.
- Sim, mas não vou para a estrada, porque sei que é ilegal, não se preocupem – respondi. Mas pelos vistos aquilo que eu pensava ser tranquilo era aquilo que eles não queriam que eu fizesse, que era falar com o pessoal.
- É que se falas com as pessoas elas depois chamam a polícia – disseram-me, aconselhando-me a ir para a saída com um sinal. Eu fingi que tinha percebido e que aquilo não era uma estupidez e fui para lá. Até, claro, que eles bazaram, e voltei para o mesmo sítio. Eu estava na zona de restauração. Estava um bom dia, solarengo, estava a correr-me bem a boleia e não estava muito longe. Tanto que tinha pensado ir até ao Mónaco, dar uma vista de olhos naquele país de dois quilómetros quadrados, e boleiar posteriormente para Antibes.
               
Nisto apareceram dois rapazes em fato de treino que iam comer qualquer coisa. Interpelei-os, disseram que à partida não havia problema, e eu lá fiquei à espera. Quando voltaram, disseram que o carro era da empresa e não sei quê, que só me podiam levar até ali não muito longe. O gajo era português, tinha ido viver para a França com quatro anos. Eu disse “‘Tá tudo” e seguimos.
               
Demorámos menos que pouco a avançar da conversazita de circunstância para os problemas que afectam verdadeiramente a VIDA do Filipe. é que o rapaz de trinta e três anos viu no facto de eu ser psicólogo uma oportunidade de ouro de desabafar tudo que p´ra lá ia.
               
- Pá... tenho agora uma cena pá... Andava com uma gaja, e não é que a gaja me fez um filho?... – começou por dizer, com o seu sotaque francês. O Filipe encontrava-se num ponto sensível na sua VIDA. A nível profissional tudo lhe corria bem – tinha já trabalhado alguns anos a poupar mais de três mil euros por mês, e naquela altura tinha começado há pouco a sua empresa de importação de carros, que ia no bom caminho. Mas a nível emocional, estava ali uma torrente que o deixava completamente abananado. Tinha tido uma relação com uma francesa que era frígida mas que lho escondeu durante anos.
               
- Eu sentia que ela reagia ao sexo de uma forma completamente diferente das outras raparigas, mas não sabia do que era... e pensava se era um problema meu. A verdade é que ela não tinha prazer nenhum no sexo... – dizia-me. Contou-me que essa rapariga tinha tido relações com o seu tio  quando esta era ainda uma criança e que isso teria de estar na base de tudo – Mas agora eu não a quero ver mais... pá ela fez-me muito mal... Mas agora temos uma criança juntos, tenho um filho... – lamentava-se. Gostei do gajo, e gostei da sua frontalidade e honestidade, dizendo-me, por exemplo, que estava com um problema de líbido, não a conseguindo levantar... O que é uma cena que muitos pseudo-machos que andam p´raí nunca admitiriam.
               
Tinha-lhe dito que queria ir para o Monaco. Ele esqueceu-se, mas o que é certo é que não havia uma saída onde desse para eu ficar. Por isso fomos quase hora e meia à conversa. Não lhe dei propriamente conselhos ou algo do género. Até porque ele parecia saber exactamente o que precisava de fazer, acho que só precisava de alguém que o ouvisse e que lhe dissesse que o que ele sentia e precisava fazia perfeito sentido.
               
Com um abraço despedimo-nos, e ele deixou-me ali pertíssimo de Antibes. Muito mais perto do que eu pensava. é que ainda tentei boleiar, só para perceber, uma horita depois, que estava a cerca de uma hora a pé. Comi qualquer coisa, fui à net num McDonalds que encontrei ali e mandei umas mensagens ao Hassan, que me receberia nessa noite.
               
O gajo pareceu-me boa onda pelas mensagens, e confirmou-se. Encontramo-nos no centro daquela pacata e agradável vila, e fomos para o seu apartamento. Ora eu estava a pensar ficar lá uma noite e no dia a seguir acordar de manhã, boleiar para o Monaco, quarenta e quatro quilómetros para Este, e daí para Montpellier, a trezentos e cinquenta quilómetros do principado. Mas o Hassan estava convencidíssimo que eu ia ficar duas noites, e estava a explicar-me o que tinha de fazer no dia seguinte, por exemplo, quando ele não tivesse em casa, como abrir a porta e não sei quê, que eu não tive coragem de lhe dizer que vinha só mesmo passar a noite, e acabei por ficar duas noites.

O Hassan é um marroquino que está na França há alguns anos. Não me lembro de quantos, mas os suficientes para ter um passaporte francês. Demo-nos bem de imediato. Perguntou-me que música queria ouvir, deixamos o som rolar, sentamo-nos com um copo na mão e fomos falando, enquanto não chegou o seu amigo. O Hassan tem das VIDAS amorosas mais complicadas que já conheci. “Namora” com uma polaca que tem um outro namorado. Está mais ou menos apaixonado por uma sueca que também namorava com um outro rapaz com quem entretanto acabou (sem o Hassan saber, porque não quer perguntar, se foi por causa dele), que o vinha visitar daí a dois dias. E acima de tudo, e principalmente, “tem” de se casar com uma marroquina.
               
- Como assim?
- Os meus pais exigem-no...
- Mas... é a tua VIDA, certo? – perguntei, meio a medo de medo de me estar a meter onde não era chamado.
- Pá eu tenho esta maneira de ver as coisas que acho que tudo o que eu tenho e sou o devo aos meus pais, e por isso é assim – respondeu, calmamente, sentindo eu que não era o Hassan que estava a falar, mas a sua cultura. Senti uma revolta dentro de mim a querer falar, mas ele na verdade não me tinha perguntado nada, eu tinha acabado de o conhecer, fiquei-me por ali... sem saber que mais tarde a conversa seria outra...

Entretanto apareceu o Youssef, seu amigo também marroquino e também agora francês. Ficámos à mesa um par de horas a falar de Marrocos, daquela cultura, e do sistema político que têm, até que fomos para um bar perto do mar onde ia tocar a banda preferida de covers do Hassan, The Bla Blas. Mal estive com ele lá dentro. íamos dançando, saltando, falando com este e aquele, dentro e fora do bar, foi uma noite de caos e loucura, mesmo como eu gosto.
               
O Yuoussef só ia ficar “só uma horita”, mas acabou por ficar até ao fim, e levou-nos a casa. Já não sei a que propósito, sentamo-nos à mesa, os dois de tronco nu e t-shirt na cabeça, e começamos a falar daquela imposição familiar acerca da pessoa com quem ele casaria. Apesar de não me lembrar muito bem, suspeito que tenha sido eu a puxar o assunto. Não estava nada à espera da sua reacção. é que o Hassan começou a chorar. Não aos berros nem a soluçar, mas contava-me a sua cena com um desespero e peso esmagador latente, com as lágrimas a escorrer pela sua cara. E eu senti aquele meu novo amigo como um menino de dez anos, que não sabe bem o que fazer, que sente que algo é correcto, mas que não consegue fazê-lo pelo medo da repreensão (imaginada) fatal do seu pai. Eu próprio senti, através das suas palavras, a potência das palavras do seu pai. Imaginei aquele tipo de relação em que o pai a abanar levemente a cabeça com cara de desilusão seja dez mil vezes pior do que uma coça.
               
Tentei ajudá-lo, não sei se da melhor forma, confesso, porque um gajo sabe lá como é que a cena é realmente. E é certo que o tentei ajudar com conselhos nada longe da minha própria maneira de ver as coisas...
               
- Se tu fizeres isso para agradar os teus pais, vais casar-te com alguém por quem não estás necessariamente apaixonado... tens esses sentimentos pela polaca, pela sueca, e que terás por outras pessoas que vais conhecendo, até que os terás de uma forma que fique, imagino... e depois vais querer ficar com essa pessoa, porque o sentes, e porque ela o sente da mesma forma, se tudo te correr bem. Mas e calares isso tudo e encontrares alguém com quem talvez passes o resto da tua VIDA, para agradar a um coração que não o teu nem o dela, vais sofrer com isso... e até ela vai sofrer com isso, porque às vezes quando o pessoal faz disto, gera-se um ressentimento que ocupa no coração o lugar que o amor devia de ocupar – disse-lhe com a mão no seu ombro, a ver as suas lágrimas deslizarem como se alguém lhe tivesse morrido. Não queria instaurar a confusão nem a discórdia, tampouco sou assim importante, mas também não consegui ficar impávido e sereno ouvindo alguém planear escapar dos seus sentimentos assim. Mas claro, não lhe disse nada de novo...

Na manhã seguinte acordei lá prás onze e tal. “Hei pá, tenho de ir ao Monaco”, pensei. Tomei banho, arranjei-me, e a muito custo caminhei mais de uma hora até um sítio que me parecesse bom para a boleia. Ainda tentei uns cinco minutos, mas senti que a qualquer momento ia morrer ali naquela valeta, e voltei para trás, para mais uma hora e tal de tormento caminhante. Ainda por cima, bem ao meu estilo, já não sabia qual era a casa dele, e andei perdido outra hora. Ao menos conheci aquela terra...
               
O Hassan chegou, passámos o serão a ver Curb Your Enthusiasm, comemos uma cena que parece uma pizza enrolada, e assim foi. Tudo tranquilo.

Na manhã seguinte despedimo-nos, e eu parti em direcção a Montpellier, onde tinha um sofá à minha espera.

terça, dezassete e cinquenta e nove, vinte e dois de novembro de dois mil e onze
Vale de Cambra, Portugal