sexta-feira, 31 de outubro de 2014

De Regresso ao Benim



E aqui estou, de volta ao Benim. Chegado, e andando pelas ruas de terra, vendo o mar de Cotonou lá ao fundo e sentindo o Vento nos cabelos, senti que gostava mais de estar aqui. Gostei da Nigéria, mais do que tinha antecipado, mas há qualquer coisa que me escapa que me faz preferir os países anteriores. Não sei se material ou imaterial... talvez pelo lado material o facto das urbanizações aqui terem mais do que a Terra já foi, sejam mais árvores ou terra, os recantos onde uma pessoa se pode sentar e pedir um café que vem afogado em leite condensado ou, aqui no caso de Cotonou, a brisa que senti e que, de repente, me mostrou o abafado que a Nigéria consegue ser. Engraçado que sinto que, sempre que comparo dois países ou dois povos, sinto como se tivesse a comparar duas pessoas, e como se estivesse a trair a confiança daquela que vem menos favorecida, habitando um pequeno e inocente sentimento de culpa no âmago.
                 
Nunca estive tanto tempo sem escrever sobre esta viagem quanto nos meus últimos dias na Nigéria, e nunca os meus últimos duas num país foram tantos quanto aqueles aí. Sinto as duas ou três semanas finais como uma espécie de sonho. Li muito e escrevi cinquenta páginas do meu romance, e vi filmes, e conheci o Javi e o Babson, e descontraí. Não foram maus tempos, mas sinto-os como se vários dias tivessem sido cortados aos bocados, metidos numa batedeira e despejados num copo, misturandos todos num único grande dia, não conseguindo eu saber onde cada um acaba e começa. Não sei se é um bocado isso que a VIDA pode ser... uma sucessão de dias agradáveis mas que, por nenhum ser muito diferente dos outros, acabam por ser todos o mesmo, sucedendo-se apressada ou lentamente, dependendo da maneira como nos sentimos quando o analisamos, com uma certa onda agradável mas sem euforia em lado nenhum. Se certo é que, agradável é melhor que desagradável, não é bem o que quero para a minha VIDA. Nestes dias não partilho da opinião de que é preciso conhecer o mau para saber o que é o bom e cenas do género e, na maior parte das vezes, acho que quem tal diz é só porque soa bem e inteligente, como dizer que há sempre um equilíbrio entre as coisas, e afirmações sem jeito do género. Assim, não quero que a minha VIDA se paute por mais altos e baixos, picos ou crateras, do que a mera constância de semi-picos. Quero que se paute por picos que se possam ver ao longe, entre as nuvens, e que se paute pela variedade deles mesmos. Picos cobertos com resplandecente neve, picos cobertos de verdura virgem, picos cobertos com palhotas e cabras a pastar. Porque acho que a diferença ajuda a trazer à (minha) VIDA mais memórias e sentimentos do que dormência da constância. É uma das razões pelas quais amo viajar – a diferença entre os dias que, ainda anos mais tarde, conseguimos recordar com um detalhe estonteante. E assim, como a VIDA é feita de memórias, se viajando nos lembramos de mais da nossa VIDA, viajando vivemos mais da nossa VIDA.
                 
O que não era o que eu fazia no meu agradável pouso em Calabar, na Nigéria.

Quando saí em direcção a Lagos, depois de negociar o preço para o transporte da Mónica e das minhas bagagens, disseram-me que chegaria às nove da noite. A meio da viagem disseram onze. Perto do final que não passaria das onze e meia. Chegámos às quatro da manhã, tendo perdido duas ou três horas num engarrafamento e uma hora porque o condutor quis fazer uns trocos e ir entregar um pneu ali à frente, provocando quase uma revolução no autocarro, com o pessoal aos berros, aos murros à porta e um méne a tentar, com um murro, destruir a televisão que nos tinha mostrado as terríveis produções de Nollywodd do costume. A Ema, que me tinha albergado quando lá passara pela primeira vez esperou a dormir no banco do carro desde as onze da noite.
                 
Como a fronteira com os Camarões ainda estava fechada e não havia voos não sabia se o consulado estava a dar vistos, pelo que fui lá ver na Segunda-Feira. Precisava de cento e vinte dólares e do meu cartão de vacinas. “Porreiro”, pensei, agradado com a ideia de voar do Benim por cento e cinquenta euros e, assim, acabam por só avançar de avião uma centena de quilómetros. Regressei na Terça-Feira, tudo direitinho, entreguei as coisas ao homem da recepção e ele subiu as escadas. Fiquei debruçado sobre o balcão a conversar com o outro camaronês que lá estava e quando o outro chegou disse que me tinham negado o visto.
                 
- Porquê?
- Porque você esteve na Libéria e noutros países com ébola. E o cônsul diz que se calhar não o deixam entrar no país, por isso não quer que desperdice o seu dinheiro – respondeu.
- Mas eu estive lá há meio ano! Já tinha morrido cinco vezes! Diga-lhe isso, por favor.
- Pois, não interessa, não vai dar... – respondeu, secamente. E lá fui embora, meio derrotado. Tinha de encontrar uma alternativa. Já não queria ir para o Este de África, como tinha pensado anteriormente. Na verdade, isso seria uma viagem diferente. Ir à volta da Nigéria também não me parecia exequível, sendo que havia quem dissesse que no Níger não estavam a dar vistos para o Chad, que não conseguiria passar daí para o Sudão, e outros problemas, como a guerra no Darfur, que teria de atravessar. Tinha duas opções em mente: ir a Portugal dois meses por seiscentos e poucos euros, passar o Natal e regressar à Nigéria, seguindo assim a viagem sempre por terra, como tinha inicialmente planeado, e assumindo que a fronteira com os Camarões eventualmente abriria; ou ir para o Benim, deixar a bicicleta, ir de táxi até Lomé, no Togo, fazer o visto do Gabão, regressar ao Benim e daí voar para o Gabão. Depois, ou seguir daí para Sul, ou subir até aos Camarões de autocarro e descer de bicicleta, passando daí para o Congo. Não me lembro de alguma vez estar tão dividido perante duas opções como neste dia. Pensei tanto que, a dada altura, me ficou a doer a cabeça! Se fosse a Portugal talvez a fronteira abrisse e continuaria pelo me trajecto inicialmente delineado, e passaria o Natal em casa, algo importante para mim, mas mais para os meus. Mas se ficasse, a viagem continuava. Iá, não como queria, mas continuava.
                 
Foi quando me apercebi que, se fosse a casa, a viagem acabaria lá para Julho em vez de lá para Abril, que decidi que queria seguir. A partir daí era decidir entre voar do Benim para o Gabão, fazendo escala nos Camarões, ou voar directo do Togo. Do Benim era mais barato sessenta euros, mas talvez não me deixassem entrar no avião para os Camarões. Além de que fazer escala aumentava substancialmente a probabilidade de perder as malas ou a bicicleta.
                 
Deixei Lagos ainda sem saber que opção escolheria. Com um enorme ao redor do buraquito onde o raio assenta na roda, e por isso mesmo sem raio, e com a bicicleta a raspar no guarda-lamas pelo méne de Calabar não ter sabido ajudar os raios decentemente, deixei então a casa da Ema, que se tinha tornado, juntando as noites que já lá ficara anteriormente, a segunda couchsurfer que me albergara por mais tempo, depois do Babson, em Calabar. Dezanove contra quinze noites.
                 
Como parecia que estava na moda ter mais que uma opção e sentir-me dividido em relação ao que fazer, nesse dia seria o mesmo. Podia ir pela segunda fronteira quem conta a partir do mar, evitando assim a “fronteira do inferno”, como me tinha sido descrita, e ficar em casa do Damian em Porto-Novo, fazendo assim cento e vinte quilómetros, ou ir pela fronteira do inferno e, com esses mesmo cento e vinte quilómetros, ir directo a Cotonou, onde eu queria ir. Como passei o corte para a fronteira a Norte, a dúvida esclareceu-se sozinha.
                 
Ora, à pala da roda torta e de ter um raio partido, quando saí de Lagos saí com a roda a roçar no para-lamas. Para meu agrado, duas horas depois, deixou de roçar. Mas depois voltou a roçar. E depois deixou de roçar. E depois voltou a roçar outra vez, e desta vez com mais força. Tinha feito talvez uns sessenta quilómetros quando parei, espreitei e descobri que tinha partido quatro raios! “Okay”, pensei, “Está na hora de apanhar um táxi”. Alguém me disse que, para ir para a fronteira, tinha de apontar para o céu e assim, com esta sinalética lá arranjei quem me levasse. Pediram dez euros assim à maluca, e acabaram por me levar por dois e meio.
                 
Aquela fronteira não tinha nada a ver com a calmaria daquela por onde tinha entrado. O mercado misturava-se com as barracas da polícia. Centenas de motas, lojitas, malta a vender na rua, fileiras de mesas com pessoal sentado de maço de notas na mão a trocar nairas, francos e dólares. Mostrei o meu cartão de vacinas, pediram-me dinheiro, segui. Entrei numa cabine, dei o passaporte, o homem preencheu o que tinha a preencher, entregou-me e mandou-me levá-lo ali para um carimbo. A senhora, que quis vir ver a minha bicicleta aos risos, foi simpática o suficiente para me carimbar numa página lá usada, devolveu-me o documento e estava fora da Nigéria. O pior estava para vir.
                 
Já no Benim tinha de tirar um visto de quarenta e oito horas. Pediram-me dez mil francos e, depois de trocar vinte dólares com um méne que eles chamaram, e depois de esperar uma hora, lá me entregaram o passaporte. “Agora tens de ir ali carimbá-lo”, disseram-me. contornei o edifício, voltando à estrada, abeirei-me da cabine onde uma polícia gorda estava sentada com algumas notas de mil naira e um caderno à frente, e dei-lhe o passaporte.
                 
- Tens de pagar mil nairas – disse.
- Mas eu não tenho mais nairas – respondi. Tento nunca mentir, nem que seja em coisas tão simples como dizer que não tenho dinheiro a um pedinte, preferindo dizer que não lhe vou dar dinheiro. Mas, quando sei que do outro lado me estão a enganar, não me sinto mal em fazer o que posso para me livrar daquilo.
- Pagas em CFA – disse a mulher. Eu não disse nada, o que ela interpretou como uma aceitação. Brincou um bocado comigo com isto e aquilo, e também me fez o favor de meter o carimbo onde lhe pedi. Mas depois estendeu a mão como quem está à espera de pão.
- Desculpe, mas eu tenho dinheiro. Já paguei dez mil francos pelo visto, agora tenho de pagar porquê? – perguntei. Ela tripou. Começou aos berros a dizer que eu tinha dito que não tinha nairas mas que tinha francos, e eu tentava dizer que não, simplesmente não tinha dito nada. Tentava explicar que andava a viajar de bicicleta, sem gastar muito dinheiro, mas ela não queria saber, e arrastou o meu passaporte para o lado, dizendo que não mo dava. Num momento, estendi a mão pela janelita, e tirei-o, com a velocidade de quem queria só ver uma coisa – Desculpe, mas não lhe vou dar nada, já paguei ali pelo visto, não lhe vou pagar por um carimbo – disse, e comecei a caminhar em direcção à bicicleta. A mulher saiu da cabine e veio cá fora, aos berros a dizer para eu lhe dar o passaporte e a ameaçar anular-me o carimbo. Não sei se deveria ter seguido na mesma. a cena é que ela era, no fundo, a polícia. Tipo... supostamente, quando nós estamos numa alhada ou alguém nos está a tentar extorquir, podemos contar com a polícia para nos ajudar. Mas quando é a própria polícia a fazer isso é mais difícil. E aquele momento não era como outros em que podia simplesmente voltar para trás ou esperar um dia ou dois, se fosse preciso. Estava entre fronteiras. Já tinha saído da Nigéria e ainda não tinha entrado no Benim. E a vaca sabia disso. Baixei a cabeça, respirei fundo e passei-lhe o passaporte. Sentia-me nervoso e zangado com aquela merda toda, e apercebi-me que as mãos me tremiam um pouco. Apercebendo-me disso não o deixava transparecer, porque quando se apercebem que estamos assim é quando se podem aproveitar mais. A mulher voltou a entrar na cabine e eu disse-lhe que só tinha quinhentas e cinquenta nairas, dois euros e meio, o que era verdade, não as tinha visto quando anteriormente tinha trocado dinheiro. Passei-lhas, ela ficou só com a nota de quinhentos e deu-me o passaporte. Paguei assim o primeiro merdorno desta viagem. Um suborno é quando fazemos asneira e pagamos para nos livrar dela, ou quando precisamos de um favor e pagamos por ele. Agora quando alguém que tem uma espécie de autoridade qualquer a usa para nos extorquir... a isso chamo um merdorno.
                 
Virei-me e um méne de uma cabina de saúde pediu-me o cartão de vacinas. Era a terceira ou quarta vez que o pediam. Só que este disse que tinha de lhe pegar quinhentos francos, setenta e cinco cêntimos de euro, para ele “validar” o cartão.
                 
- Não, ó amigo, desculpe lá, mas não lhe vou pagar nada! – disse, sem aquela boa onda que costumo utilizar nestas circunstâncias para aligeirar o clima. O gajo que se fosse foder.
- Não, tens de pagar.
- Não, não pago! – disse, firmemente. – Já deixei ali quinhentas nairas quando não devia ter pago, e a si não lhe vou dar nada. Aliás, já estive no Benim, se bem pode ver – disse, mostrando-lhe o passaporte – e não paguei por validação nenhuma! – entretando apareceu um beninês e o méne, pegando no seu cartão de vacinas, mostrou-me que era por eu não ter aquela vacina, a da meningite, que tinha de pagar. De repente já não era pela validação. Eu por acaso tinha tomado aquela vacina, mas não estava no cartão, nem ia dizê-lo, porque não era essa a questão ali. Isto andou para a frente e para trás, comigo dizendo mais que uma vez que já lá tinha estado e que não tinha pago nada, e com o gajo a dizer que se não pagasse me ficava com o cartão. Eu estiquei o braço e, como com o passaporte, agarrei no cartão, como quem lhe vai mostrar uma coisa, e não como quem o quer roubar. Abri-o, disse-lhe que tinha tudo, e virei costas. Aproximei-me da bicicleta, meti-o na bolsa da frente, e o méne veio atrás de mim, aos berros a dizer que não me tinha dito que eu podia ir, enquanto outro homem, que me tinha dado direcções, me vinha pedir uma gorjeta. – Eu vou é por-me a andar – disse-lhe. Se tinha pensado que não ia voltar a montar a bicicleta sem cinco raios, naquele caso achei que era o melhor e, com o méne da saúde atrás de mim a dizer para voltar e que não me tinha dado permissão e mais não sei o quê, lá me fiz à estrada sem sequer ouvir o pneu empenado no meio daquele turbilhão todo. “Puta que os pariu!”, pensei. Virei à esquerda ao fundo, encontrei um carro que me levava até Cotonou por um preço porreiro, meti a Mónica na mala e sentei-me a um canto. Passei a próxima meia hora meio paranóico, a pensar que a polícia vinha atrás de mim. Iá, eram só quinhentos francos, mas um gajo fugir assim era sempre uma boa desculpa para se extorquir mais umas coroas. E sim, sim, setenta e cinco cêntimos não é dinheiro, é verdade. Mas eu prefiro pagar um jantar de dez euros a um amigo, ou dar trinta euros a alguém que deles precisa para comprar um livro, do que pagar setenta, ou cinquenta, ou dez cêntiimos que sejam a parvalhões que abusam de um sistema destes e da resignação de quem por eles passa. Assim, sentindo que tenho uma opção viável, vou sempre por essa. Que foi o que não senti com a outra vaca, que sempre podia usar a sua farda para me fazer qualquer coisa. Agora que escrevo penso se deveria mesmo ter fugido dessa também... mas paciência, está feito, está feito.
                 
Uma vez no Benim apercebi-me que aquela era a fronteira mais potente por onde tinha passado até então. Tal como nas outras, tinha toda uma agitação, centenas de motas, vendedores de tudo e mais alguma coisa, mas num grau elevado e, especialmente, um número anormal de pedintes, a maioria deles putos de cabelo liso, até alourado, e narizes e lábios estreitos, que bem podiam ser portugueses, ainda que com uma tez mais cigana, e que se penduravam nas janelas do táxi falando nas línguas que entendessem até fazer passar a sua mensagem. Tinha estranhado as pessoas abordarem-me em francês do lado nigeriano, e ainda mais estranhei as pessoas abordarem-me em inglês do lado beninês, como se o mundo tivesse sido trocado de repente.
               
E assim cheguei a Cotonou, ficando em casa do Arthur, a mesma casa onde passei algumas noites... há dois meses atrás.

16h14, s, 31-10-14
Cotonou, Benim

sábado, 4 de outubro de 2014

A Policia, os Vigilantes e o Terrorista

Que dias! Que dias...
Saí de casa do Wilson e a primeira coisa que vi foi o meu pneu de trás que parecia, mesmo, querer o suicídio. Tinha-o reparado na noite anterior e, confirmando a minha suspeita de que eu não sou grande coisa com isto de arranjar pneus, nesta manhã era como se não tivesse feito nada. Troquei por outra câmara de ar num instante, sem saber se essa câmara estaria boa ou não e bazei. Queria bazar! Ontem tinha ido recuperar os dez ou quinze quilómetros até Ngwo e, como tantas vezes, alguns imprevistos fizeram com que tardasse mais do que planeava e já não dava para deixar Enugu nesse dia. Por isso hoje... queria era ir. Sou quaese sempre adepto da racionalidade mas, muitas vezes, sou também adepto do “vamos indo e depois vê-se!” Razão pela qual, passados cinco quilómetros a nova câmara de ar dava de si. Podia parar para e arranjá-la em condições, mas voltei a encher o pneu e pus-me a andar. Pedalando, a corrente ia saltando e confirmei a minha suspeita de que, confortavelmente, neste momento, só tenho quatro mudanças onde posso andar... a terceira, quarta, quinta e sexta. Abaixo ou acima de isso está sempre a saltar e a avisar-me de que preciso de uma corrente nova. E onde é que arranjo uma corrente que eu tenha a certeza que não vai ser igual ou pior que a que tenho? Não sei ao certo...
Lá segui e passei o corte que deveria ter seguido para Agbani. Felizmente foi um erro que só me custou, para cada lado, vinte minutos. Passei por uma gasolineira onde podia encher o pneu, um achado, e enchi ambos ao máximo. Para surpresa minha, assim se mantiveram! Cheguei a Agbani e senti que curtia muito aquela zona. Era mais rural, e muito melhor do que pedalar pelas autoestradas, vendo apenas gasolineiras e a ocasional vila de pouso para camionistas que acabavam por explorar um bocado os prazeres da carne. Tinha mais com que entreter a vista e até a natureza era mais porreira, vendo alguns campos verdejantes em vez do matagal adensado de árvores tropicais.
De Agbani cheguei a Amagunze e fui mandado parar pela segunda vez neste dia. Na primeira, algures nos quilómetros que percorri erradamente, o polícia queria revistar tudo o que tinha mas passou alguém de carro a gritar o meu nome e a dizer que me tinha ouvido na rádio e isso ajudou a melhorar o clima um bocado. Seria de supor que se tivesse sido a própria polícia a ouvir-me na rádio assumisse que não era terrorista nenhum e me deixasse passar. Pois o polícia de Amagunze tinha-me ouvido mas, talvez exactamente por isso, não me quis deixar passar sem me levar à esquadra. Era um homem dos seus sessenta, simpático e boa onda e, quando chegámos à esquadra, apresentou-me ao chefe. Mostrei-lhe a carta que o Wilson tinha escrito para o governador de Lagos e o méne disse que aquele não era o estado de Lagos. “Sim, mas é uma carta que explica o que estou a fazer. E outros estados também foram avisados... tal como os Serviços Secretos!”, tentava explicar. O homem não estava com cara de poucos amigos mas, ainda assim, obrigou-me a mostrar tudo o que tinha, enquanto alguém tinha ido tirar fotocópia ao meu passaporte e à carta. No final trocámos contactos, tirámos umas fotografias e fui à minha VIDA.
Cheguei à próxima vila e cometi o erro de parar para pedir direcções. Como de costume, um monte de gente abeirou-se e, de repente, estava rodeado por vinte pessoas. Uma delas era o méne que nos tinha tirado uma fotografia na esquadra momentos antes. Estava parado, em pé, na Bicicleta, quando o Lawrence, o polícia que me abordara primeiramente em Amagunze, me ligou.

- Olá, tudo bem?

- Sim, almocei há pouco, tudo bem!

- Okay, boa viagem!

- Obrigado! – e desligámos.

- Eles estão a dizer que te querem revistar – disse o fotógrafo logo de seguida. “Lá vamos nós...”, pensei.

- Então... diz-lhe que estavas na esquadra e que viste a polícia a revistar-me.

- Já disse, não adianta... – respondeu. Tirei o telemóvel e liguei ao Lawrence.

- Olá irmão mais novo! – atendeu.

- Olá! Olhe, estou aqui em Eke, e o pessoal quer revistar-me. Será que não podia falar com eles a dizer que me podem liberar? – pedi.

- O quê?! – e disse mais qualquer coisa e desligou, ficando eu com a impressão de que estava a caminho. O líder da malta que me queria revistar não era mau de todo. Disse para eu ir para a sombra e trouxe-me uma cadeira. Ainda assim barafustei um bocado com ele.

- Queres revistar-me porquê? Porque tenho um aspecto diferente!

- Não... é porque eu sou o chefe de segurança da comunidade – disse o rapaz de camisola de basquetebol e calções – e tu tens muitas coisas na tua bicicleta.

- Sim, mas se fosse preto passava aqui descontraidamente! Mas como tenho um aspecto diferente, de repente sou suspeito! Gostava de saber como é que te sentias se o mesmo acontecesse contigo noutro país! – atirei. E, ao mesmo tempo que falava, apercebi-me que não era o que estava a acontecer comigo, exactamente, que me incomodava. Não me sentia ofendido porque sabia que não era pessoal.

Algures em 2010, quando trabalhava como psicoterapeuta em Birmingham, fui discriminado duas vezes no mesmo dia. As únicas vezes que tal aconteceu em dois anos a tempo inteiro e ùma semana por mês durante outros dois anos, foi no mesmo dia. De manhã, a caminho do trabalho, avistei um méne ao fundo aos berros. Atirou um caixote do lixo para o meio da estrada e reparei que tentava acertar nuns rapazes de aspecto de serem do Médio Oriente ou da Índia. Subiu a rua enquanto eu a descia, passou por mim e atirou “Tu também, seu caralho de imigrante, sai do país!”, e cuspiu na minha direcção, falhando por pouco. Estava a caminho do trabalho por isso não fiz caso e segui sempre em frente. Quando cheguei soube que teríamos, nesse dia, uma rapariga à experiência. O tipo de sítio onde trabalhava, uma Comunidade Terapêutica para pessoas com graves problemas, era um sítio tão intenso e específico que requeria um período de teste para podermos ver se a pessoa se enquadrava ali ou não. Pois esta rapariga, uma inglesa de origem indiana, tinha, tal como as outras miúdas que lá tinha, sérios problemas. A dada altura fugiu. Subi a rua e fui bater à porta onde me disseram que tinha entrado. A gaja saiu aos berros a tripar comigo a dizer cenas como “Tu, com o teu sotaque português! Tu nem sequer és inglês!” e cenas do género. Quando voltámos à Comunidade e uma colega minha veio perguntar que se passava a gaja desatou aos berros a dizer que eu nem sequer era inglês e que não passava de alguém à procura de asilo asilo! Estava assustada e desviou e tentou desviar o stresse no meu sentido, mas não é isso que itneressa. O que interessa é que, em cada uma destas vezes, tal como nestes dias na Nigéria, o que mais me lixa é o princípio deste tipo de discriminação. Acaba por não me afectar imensamento a nível pessoal, mas há pessoas a quem afecta de uma forma paralisante, de uma forma que as impede de viver a sua VIDA com o máximo de potencial a que teriam direito. Mas a ignorância prevalece e elas são vistas como parte de um grupo. Por vezes pertencem ao grupo ao qual são associadas, e o que está errado é a má associação e generalização, por outras, como no meu caso aqui, são associadas a um grupo ao qual nem pertencem!
Passaram alguns minutos e, quando o fotógrafo se preparava para ir buscar a polícia, eles apareceram. Estacionaram a carrinha mesmo à nossa frente com alguma agressividade, e saíram da mesma com uma potência incrível. Aos berros a dizer ao “chefe de segurança” para bazar e o gajo a tentar resistir, ao mesmo tempo intimidado, a olhar para o chão e com dificuldade em olhar o Lawrence nos olhos. À minha volta começaram todos aos berros e o meu amigo polícia volta à carrinha, saindo com uma espécie de granada cinzenta, talvez de fumo, não sei ao certo, não sei ao certo com que propósito. Eu peguei na Bicicleta e, lentamente, dei a volta à multidão, aproximando-me do homem.

- Olá. Desculpe lá este incómodo, não queria que nada disto acontecesse – disse-lhe.

- Vamos ter de ir para trás! – respondeu, para meu desagrado, enquanto me entregava o seu cartão, que dizia ser apenas válido se assinado nas costas, coisa que ele tinha feito.

- Não, não se preocupe. Eu vou seguir em frente, qualquer coisa ligo-lhe – respondi. Ele assentiu e bazei. Passado alguns minutos voltaram a aparecer.

- Este rapaz escolta-te e diz-te por onde ir! – disse, apontando para um méne numa mota.

Lá segui atrás do rapaz entre alguns quelhos onde, realmente, precisaria de ajuda em perceber o melhor rumo. Algumas pessoas passavam e diziam qualquer coisa com cara de poucos amigos mas o méne dizia qualquer coisa e seguíamos. Quando voltámos à estrada maior disse-lhe que já não precisava de vir comigo e segui sozinho.

Andei mais uma hora e mudei de Estado, deixando o estado de Enugu e entrando em Ebonyi. Parei para pedir direcções e mais uma vez fui rodeado. Mas aqui perguntaram-me apenas, com um sorriso, se era irmão do Bin Laden ao que eu respondi, também com um sorriso, que não, era irmão de Jesus, achando que trazendo a aparente semelhança à baila eles relaxassem. Mandaram-me por um caminho impossível de navegar, mato adentro, cada vez pior, e voltei para trás. Quando estava a chegar ao cruzamento onde tinha falado com eles encontrei um rapaz que vinha buscar-me para me indicar um caminho melhor. Segui meia hora a curtir a estrada aberta e um pouco de paz até que tive de parar quando um par de homens que me ultrapassaram de mota sairam da mesma e bloquearam a estrada.

- Ora diga... – disse, sem grande paciência.

- Somos vigilantes – disseram, mostrando-me um cartão de aspecto oficial. – Tens de te reportar à polícia.

- Já fui revistado pela polícia, tenho este cartão aqui – respondi, mostrando o cartão que o Lawrence me tinha dado.

               
- Isso é noutro estado. Tens de vir connosco.

- Bem... okay. É longe?

- Não, é ali atrás.

- Não há nenhuma esquadra que seja para a frente?

- Não.

Andei meia hora para trás! Meia hora! Frustrado vi-me chegar ao mesmo cruzamento onde tinha pedido direcções momentos antes, enveredar por umas estradas de lama e dar à esquadra de Ezzagu. Via um largo de uns trinta por trinta metros. Ao fundo uma casa comprida com uns putos de tronco nu cá fora, à direita a esquadra, um edifício amarelo completamente rebentado de cada lado, deixando ver como já foram aquelas divisões, e uma sala no meio onde alguém escrevera com giz escuro “Office”. Do lado esquerdo um carro inutilizado e mesmo à sua frente uma casota que parecia ser uma cela. Pediram para começar a tirar as minhas coisas da mala, o que fui fazendo. Estes queriam ver absolutamente tudo, e foi a primeira vez que me pediram para abrir o saco-cama. Fiquei com a sensação que nunca tinham visto um.

- Abre! – disse um gajo, com agressividade.

- Porque é que estás a falar assim comigo?! Estás a ver-me a desrespeitar-te? – atirei.

- Deixa ver o que tens aí dentro – voltou, mais sereno.

Entretando chegou o guarda de serviço, com uma t-shirt em homenagem a um funeral qualquer e uns calções escuros. Começou aos berros com o pessoal, pedindo àquela multidão de vinte civis para dar espaço. Continuei a mostrar o que tinha enquanto ia explicando os meus propósitos e, quando lhe mostrei o cartão do Lawrence, ele disse para não lhe mostrar mais nada, quando não me faltava mostrar mais nada.

- Estás livre... – disse.

- Pois... mas a cena é... que agora está a ficar tarde. Será que não poderiam ter a amabilidade de me deixarem passar aqui a noite? – pedi. O inglês aqui não era excelente, e o pessoal ia-se ajudando uns aos outros a traduzir, pelo menos até eu me aperceber e começar a falar com sotaque nigeriano. A primeira resposta foi negativa, mas expliquei que estava longe de qualquer hotel e, de qualquer maneira, só precisava de um pedaço de chão que fosse seguro. O Steven, o guarda de serviço, estava a fim de me ajudar, pelo que foquei os meus pedidos em si. Mas, como sempre, havia um méne, que nem era polícia, nem era nada, que estava sempre a mandar bitaites. O Steven tinha-me dado uma folha para preencher, onde uma das questões era o meu destino. Como, nesta etapa, estava a caminho de Calabar, foi o que escrevi. Mas o méne dos bitaites achava que era suspeito eu não ter escrito África do Sul, como dissera antes. Cenas do género, enfim. Quando lhes mostrei a carta do Wilson, que não mostrara antes para não virem com a estória do “Mas isto é uma carta para o governador, não é do governador”, o Bitaites veio precisamente com essa.

- Mas, se me permite – disse, simpática mas firmemente. – A lei não dita que eu precise de uma carta do governador do estado a dizer que sabe que eu estou aqui. Esta carta é, simplesmente, algo que explica em detalhe quem sou e o que estou a fazer – e lá serviu para o gajo axantrar um bocado.

Tudo acordado, o Steven apareceu com um balde de água e disse que me podia lavar nas traseiras da esquadra, e que ficaria na casota que parecia uma cela. “Porreiro, era só isso que queria, obrigado!”, respondi. Nas traseiras com o balde de água, olhando à volta via a floresta. A floresta inteira como nós imaginamos quando pensamos em África e, de repente, tudo estava bem. Já não estava frustrado ou impaciente. Paciência. Tinha passado por algumas peripécias, mas tinham acabado bem.
À noite fomos ao fundo da rua para eu comer dois pacotes de Indomie, despedimo-nos e voltei aos meus aposentos. Montara a tenda para servir de mosquiteiro, meti o saco-cama a fazer de colchão e dormi até às seis e meia, hora a que me vieram bater à porta. Arranjei as minhas coisas e pedi a um rapaz para ir buscar as chaves da cela do lado onde tinha a Bicicleta e as malas. Esperava o miúdo, sentado no muro da casota, quando o Steven apareceu a dizer para eu voltar a montar a minha tenda. Parecia meio nervoso.

- Hã? Porquê? Estou pronto para ir embora.

- Pois, mas o padre da vila quer vir entrevistar-te, para ter a certeza que não nos subornaste. Entra, entra... – respondeu, apontando para o interior.

- Ah, okay... – respondi, entrando, enquanto o via pegar na minha tenda embrulhada e metê-la a um canto dentro da cela. Confuso vi-o fechar a porta e ouvi o barulho do aluquete. – Mas porque é que me está a trancar aqui? Eu não vou a lado nenhum!

- É para a nossa segurança – ouvi-o dizer. “Para a nossa segurança?” Que treta era aquela? Sentei-me numa mesa de madeira do lado esquerdo de quem entrava, em cima da qual também me podia pôr para espreitar pela janela gradeada, convencido que não seriam mais que alguns minutos. Mas o tempo foi passando. Às tantas ele veio falar-me – Não te enerves... – disse, sem razão, porque eu estava tranquilo, apesar de confuso. – O padre passou a informação à polícia e eles têm de vir cá. Eles são meus superiores em hierarquia, e querem vir ver-te – respondeu. E, de repente, percebi porque me trancou. Para dar uma de “Estão a ver como nós levamos isto a sério?” para os polícias que vinham. Voltei a tirar o saco-cama, estendi-o no chão e dormi um bocado. Devo ter ficado à espera quase três horas, altura em que, estava a espreitar pela janela gradeada, quando vi uma data de gente a vir, três ou quatro dos mesmos polícias à séria, com os seus uniformes azuis escuros.
Saí cá fora, sorri e cumprimentei-os. O Steven disse para eu confirmar que tinha tudo. Dei uma vista de olhos nas coisas mais importantes e disse que estava tudo. “Não, vê mesmo tudo, porque assim nós também vemos”, disse um dos polícias. Lá mostrei mais uma vez tudo o que tinha e, no final, disseram que tinha de ir com eles à esquadra de Ishielu. Metemos as cenas na traseira da carrinha branca, entrámos e seguimos caminho. Passámos por onde os vigilantes me tinham abordado e seguimos sempre, comigo a aperceber-me que, pela primeira vez em toda a viagem, haveria um par de dezenas de quilómetros que não faria de bicicleta. Isto porque, se normalmente, em situações idênticas em que apanho um transporte, volto para trás para depois completar os quilómetros que me faltavam, desta feita achei que, com todo aquele celeuma, não era sensato. Parecia ser uns trinta quilómetros, o que seria quase um dia inteiro para ir e ver, e o pessoal ia estranhar um terrorista andar ali para trás e para a frente.
Fomos dar a uma estrada porreira, uma boa e larga faixa para cada lado e virámos à esquerda, com quem ia para Enugu, de onde eu tinha saído no dia anterior. No final ficámos a quarenta quilómetros desta cidade! O que significava que, afinal, não saltaria quilómetros na viagem. Tinha saltado uma parte do trajecto, mas tinha ido dar a uma que estava à mesma distância, ou talvez ainda mais perto do meu ponto de origem.
Aqui foi a estória do costume mas, desta vez, não me revistaram, sendo que a bófia que me tinha trazido já o tinha feito. O chefe, um tal de Etta, leu a minha carta e achou que aquilo era suficiente, e mandou-me à minha VIDA.

- Preciso que me dê um papel qualquer a dizer que estive aqui e estou limpo! – pedi.

- Não, não temos autoridade para isso – respondeu. Quando o pessoal, particularmente a polícia, não quer fazer uma cena a desculpa é não ter autoridade para isso, já me tinha apercebido.

- Dê-me pelo menos o seu número de telemóvel.

- Hã? Quanto pagas? – perguntou, com uma risada palerma.

- Não pago nada! Mas os vigilantes vão voltar a apanhar-me!

- É porque estão a trabalhar bem! – respondeu, com mais ironia, enquanto descia as escadas para se ir embora.

- Pois mas você...- e calei-me. Ia dizer que eles até estavam a trabalhar bem mas ele não, mas achei desnecessário estar a antagonizar o gajo. Não me preocupei imensamente porque, quando vínhamos na carrinha, os dois guardas que vinham atrás comigo tinham-me pedido o meu número e dado os seus, um com a esperança que eu o trouxesse para Portugal.

Estava na estrada aberta, finalmente! Pedalei como há tempos atrás, quando tudo corria bem, numa estrada lisinha, sem grandes subidas ou descidas, vendo os quilómetros desaparecer com facilidade até que, à entrada de Abakaliki, a quarenta e poucos quilómetros da esquadra, senti a roda de trás torta. Parei e tinha-me rebentado mais um raio, desta vez do lado da cassete, o que significava que ia precisar de assistência. Continuar a pedalar era arriscar-me a partir mais raios ou entortar a roda para sempre, pelo que caminhei, penando debaixo de um sol escaldante, duas horas, até encontrar alguém que me pudesse ajudar a retirar a cassete para poder meter o raio novo. O primeiro não sabia, o segundo também não. O terceiro tinha uma lojita dentro de um mercado a céu aberto e, quando entrei e lhe explicava o que queria, vi que alguém queria falar comigo. Três ménes com cara de poucos amigos e a multidão do costume atrás deles e também na loja do lado para terem uma vista mais privilegiada. Tirei o telemóvel da bolsa, liguei para um dos polícias de Ishielu e passei-lho, tentando continuar a explicar ao rapaz o que queria que fizesse.

- Tens de ir connosco à polícia – disse um deles.

- Eu não vou convosco a lado nenhum. Tu falaste com um polícia agora mesmo, ele confirma que já fui revistado e estou livre.

- Sim, mas na Nigéria há muita corrupção na polícia – respondeu.

- E que é que queres que faça, que vá à polícia a cada meia hora só porque tenho aspecto suspeito? – perguntei, enquanto me lembrei de lhe passar a carta. O gajo leu a carta e disse que eu estava livre. Voltei à minha explicação para o rapaz da loja, mas de nada serviu, ele não sabia como me ajudar.

Estava decidido, ia ter de ficar em Abakaliki...
Sentia-me testado à força toda. A Nigéria estava, e está, a ser a maior provação desta viagem! E o mais curioso é que, se por um lado era isso que eu esperava, por outro nunca pensei que o fosse ser por uma combinação de estradas com declives constantes, raios partidos, pneus furados, reparadores de bicicletas limitados ou, especialmente, estar sempre a ser visto como um terrorista! Não sinto que este seja um país perigoso ou como gente maldosa e aproveitadora. Mas é  um país onde o medo e a ignorância causam uma mistura explosiva e quem sofre com ela são gajos como eu... e nem sequer tem nada a ver com a barba porque o Javi, outro espanhol que também anda por aqui de bicicleta, mas mais à frente, tem tido as mesmas peripécias. Mas ele disse que teve “problemas sérios, sérios mesmo”, coisa que não posso dizer que tenha tido. Posso ser eu que sou demasiado relaxado com a minha percepção das coisas, ele que é demasiado exagerado ou então o facto de ele ter tido mesmo graves situações...

A minha ideia era assentar no hotel e ir arranjar o pneu para partir no dia seguinte. Só que, quando me deram um quarto sem electricidade e pedi para trocar, disseram para esperar. Fui esperando, esperando, e fez-se noite... Cá fora, via pessoal a entrar e a sair dos outros quartos, homens e mulheres, e cheguei a ver uma rapariga a sair de um quarto um minuto depois de um homem e ir directa para outro quarto onde, minuto antes, outro homem tinha entrado. O quarto que me estava destinado estava ocupado com outros amantes.
No dia seguinte acordei às sete e pico para arranjar o pneu e pôr-me na alheta. Fui perguntar ao pessoal onde me podia dirigir e apontaram uma oficina. O rapaz disse que não tinha as ferramentas e apontou-me para um mecânico. Este pegou no pneu, começou a desenroscar e de repente começaram a cair os rolamentos... ficou tudo desmanchado menos a cassete, que permanecia orgulhosa e teimosa. Com os rolamentos  e o tubo cheios de areia de repente estava numa situação pior do que quando lá tinha chegado. Mais um, entre tantos, que tentava fazer sem saber  e acabava por estragar.
Apanhei uma keke para o centro e pedi para me deixar próximo de uma oficina de bicicletas. O primeiro não sabia. Nem o segundo. Nem o quinto. Todos me diziam que ia ter de estragar aquela cassete e meter uma nova, quase dando a entender que eu estava a mentir, e que não tinha feito aquilo antes. Ninguém! Ninguém sabia arranjar aquilo! Lá comprei um pacote de gordura, uma chave para futuras tentativas e uma caixa de rolamentos e fui para casa, passando mais de uma hora a limpar, sentado no chão, com a gasolina que trazia no fogão, a areia que o outro velhote me tinha oferecido.
Liguei ao Javi a perguntar se ele tinha a ferramenta e ele disse-me que não a tinha mas que sabia arranjar a cena na mesma. Pensei então em ficar mais uma noite em Abakaliki e, no dia seguinte, ir ter com ele a Calabar, cinco horas de autocarro, para me ensinar a resolver o problema. Disse-me também que achava que a fronteira com os Camarões ia abrir dia 20, porque era esse o dia em que a Nigéria seria oficialmente considerada livre de ébola. O meu visto expiraria dia 17.
Sentia-me desanimado, de uma forma que não me tinha sentido nesta viagem, acho. Não me sentia desmotivado, mas sentia-me um pouco desanimado com estas constantes provações, com todas estas inconveniências que parecem aparecer ao mesmo tempo... mas tudo bem. Meti o pneu para um lado e acabei de ler o Codex 632. Ia ficar aqui mais um dia ou dois e ia... e não tinha pressa porque esperava que a fronteira abrisse. Pelo que rapidamente voltei ao meu estado normal de ‘tá-se bem. Lá, senti-me desanimado, mas é porque não estou ainda naquele ponto em que posso rir abertamente de todas as inconveniências. Estou longe de ser um mestre do drama, e efectivamente sorrio com a maior parte destas provações, mas é verdade que também, por vezes, me sinto um pouco mais abaixo do que o meu estado normal. Mas continuo aqui e presente em mim mesmo, não me deixando levar por meias horas de amuos. Sempre a andar!