sexta-feira, 16 de maio de 2014

Laayoune e as Conversas Sobre Igualdade

- É na boa eu ficar duas noites? – tinha perguntado ao Bakkar, pouco depois de ter chegado a Laayoune.
- Sim, claro, mi casa su casa! – respondeu.
- Quando é que vais embora? – perguntou, no meu segundo dia.
- Amanhã.
- Não, vais depois de amanhã!
- Hum... posso pedalar amanhã cem quilómetros, depois apanho boleia para trás, fico aqui, e no dia seguinte faço o inverso e continuo...
- Não. Ficas aqui mais uma noite, e depois no dia seguinte vais.
- Hum, okay... – assenti.
- Quando é que vais embora? – perguntou-me, quando acordámos no último dia.
- Vou hoje, pá.
- Não, vais amanhã!
- Não, méne, vou mesmo hoje. Obrigado.

Acordámos depois da primeira noite e tomámos o pequeno-almoço. Passámos a tarde a dar umas voltas, estilo Bakkar. Caminhar um pedaço, cumprimentar alguém, ir à loja de um amigo, passar por casa a ir buscar qualquer cena, ir ao mecânico ao lado de casa da irmã beber um chá. À tarde, depois de comermos qualque cena, voltámos a falar de religião. O meu anfitrião, apesar de não ser muito praticante, era muçulmano devoto, e cria ser mesmo a melhor religião, algo comum aos muçulmanos que conheci. Senti que podia explorar um bocado a cena com o Bakkar, e aconselhá-lo a abrir a mente um bocado. É legítmo questionar-se quem sou eu para pedir tal coisa, mas acho que o tema e a minha posição sobre o mesmo é forte o suficiente para que o possa defender venha quem vier.
                
- O Corão supostamente é um manual sobre como ser, ao que parece. Mas o Corão foi escrito há quase mil e quinhentos anos... Há muita, muita coisa, que não se adequa! Como a cena do testemunho de um homem valer o testemunho de duas mulheres. Pá, isso é uma cena que, quer queiramos, quer não, não faz sentido nenhum!
                
- Mas, sabes... – dizia o meu amigo – O leite de uma mulher que tem um filho é muito mais forte do que o leite de uma mulher que tem uma filha – Isto demorou algum tempo, porque o inglês do Bakkar não era perfeito e eu não estava a conseguir perceber o que ele queria dizer. – E isso quer dizer alguma coisa...
                
- Não, pá, não quer dizer nada! Em primeiro lugar, acho isso difícil de acreditar, mas que se lixe, não interessa... Mesmo que isso seja verdade, isso não pode nunca, nunca, ser argumento para defender que o homem é mais forte, potente, inteligente ou superior à mulher! Porque se queremos usar argumentos desse género, méne, há mil para cada lado. Eu também podia dizer que é a mulher quem transporta dentro de si o milagre da VIDA e que, por isso, devia ser superior! Mas não digo, porque também não faz sentido nenhum!
                
Daí evoluímos para algo que eu tinha dito anteriormente. Ele tinha-me perguntado se eu preferia Marrocos ou o Saara Ocidental, e eu tinha dito que tinha acabado de chegar ao Saara, e não podia responder com exactidão. Mas, ainda assim, disse-lhe o que me agradava por estes lados, e o que me desagradava, e o que me desagradava, e desagrada, está relacionado com o argumento no Corão sobre o testemunho da mulher valer menos, de certa forma.
                
- Uma coisa que eu não curto aqui é a diferença entre o homem e a mulher. Vais a qualquer café e é só homens! Não vês mulher nenhuma! – disse.
- Mas elas podem ir!
- Será que podem? Quer dizer, eu imagino que não é ilegal... mas isso não quer dizer que possam, no outro sentido da palavra. Como é que era se uma mulher fosse a um café sozinha e estivesse lá a fumar um cigarro?
                
- Ah, o pessoal ia falar... não era bom – exacto! E aqui está uma das razões pelas quais é bom viajar! Eu sei que sou muito crítico em relação à nossa sociedade ocidental, e várias vezes a comparo com estes sítios e a deixo numa luz fraquinha. Mas isso é porque eu almejo a melhor sociedade possível, onde primam a igualdade e o amor, a frontalidade e o respeito, a. E por isso, apesar de não ser nenhum revoltado, continuo a reparar nas coisas que estão mal nos nossos mundos, e talvez falando disso, e sendo eu a pessoa que acho que deveria ser, talvez esteja a fazer a minha pequena parte para melhorar. Ora, com esta cena em particular, da desigualdade que vejo entre homens e mulheres por aqui, digo que é essa uma das boas razões pelas quais devemos viajar, porque quando vemos algo melhor noutros lugares podemos tentar trazer essa qualidade para o nosso lugar, e quando vemos algo pior, apesar de, na grande parte das vezes, infelizmente, não ser o nosso papel tentar mudar, podemos, no mínimo, apreciar o bom que temos. Tenho pensado um bocado nisto... A nossa sociedade está longe de perfeita... as mulheres ganham menos que os homens para os mesmos cargos, há mais homens que mulheres em cargos de maior responsabilidade, os homossexuais não podem adoptar uma criança, o capitalismo, no seu esforço de ver as pessoas como números esquece-se da humanidade de cada um e a corrupção, tanto activa como passiva, é comum. Contudo, há vários campos em que estamos cada vez melhores. Eu acho que devia mudar tudo de uma vez, mas há muitos que dizem que não podem ser. Assim sendo, apesar de não ser de uma vez, as cenas vão mudando. Iá, as mulheres não são tão respeitadas, de certas formas, quanto os homens, mas há vinte anos era pior, e há quarenta o marido dava umas por fora e quem levava nas trombas era a outra! Iá, os homossexuais ainda não podem experienciar a maravilha que deve ser a paternidade, mas há alguns anos era perseguidos e ostracizados! Acho importante dizer que eu acho, mesmo, que devia mudar tudo de uma vez, e tudo o que ainda não alcançamos é vergonhoso e resultado de mentes atrasadas e de cimento que custam a felicidade de muita gente. Ilustro apenas estes pontos de uma luz mais positiva pois estou comparando com o que vejo noutros países e com o que se passava há muitos anos.

O Bakkar tinha dito que eu tinha de ir a casa de um amigo dele ver mais uns vídeos sobre o Saara Ocidental, eventualmente. Estávamos em casa do Sharon quando ele disse para irmos, mas o seu amigo não nos deixava sair. Estava na palhaçada a enrolar um turbante à volta da cabeça, com óculos escuros, ficando a parecer aquela imagem que temos de um terrorista, e quando nos tentávamos levantar ele dizia para ficarmos. Estávamos lá uns dez ou onze. “O Eduardo”, um espanhol que o Bakkar tinha albergado, “disse que este era o grupo de amigos mais maluco que ele tinha conhecido”, disse o Bakkar. É verdade que o pessoal era boa onda e bem disposto, mas não consegui deixar de pensar que o Eduardo, ou era um courista, ou não tinha conhecido muita gente. Atravessou-me assim de repente a mente as festas que tinha em minha casa, em Birmingham quando quase tudo, quase, quase tudo, era possível...
- Vamos lá amanhã! – pedi ao Bakkar.

- Não, vamos hoje! – respondeu o rapaz. E lá fomos. E o méne não tinha os vídeos... Estivémos lá um bocado, bebemos um chá, e bazámos, voltaríamos no dia seguinte, para o que seria uma tarde intensa. 

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