domingo, 25 de setembro de 2011

A Caminho de Chengdu



Dia vinte e seis começamos a nossa jornada de Lijiang até Chengdu, oitocentos e tal quilómetros. Foi uma viagem que nos levou três dias, canseira e paciência, mas curti bués. De autocarro demoraria “só” vinte e quatro horas, mas apesar disso, não sinto que nenhum segundo foi desperdiçado. Porque, para mim, viajar é isso. Ou é muito isso – andar sem saber como vai ser a próxima hora, em que meio de transporte, com quem; olhar à volta e sorrir por estarmos sozinhos no meio de uma montanha há mais de uma hora à epsera que passe um carro, só um, e que tenha a bondade de nos levar; de passar por estradas que ladeiam montanhas, vilas, ranchos e cenários que certamente nada mudaram desde há centenas de anos.
               
Tive um bocado de tudo isto, e isso mandou a China ali para o Top Três dos meus países preferidos. A Graciete diz que se “encanta” (cara de envergonhado) com a maneira como não acuso o número de países que já vi, nomeadamente em ser mais exigente e difícil de agradar. Pensei nisso um pedaço. É certo que tento abrir-me completamente para novos cenários e culturas, e isso faz com que o meu nível de curtição ande ali sempre a bombar. Mas por outro lado, acho que até os mais enjoados abririam a boca com as paisagens do sudoeste chinês. Ok, não tem tantas manicures onde servem champanhe e morangos, mas acho que é muito difícil não curtir.

O dia boleiante não começou muito bem. Acordámos cheios de sono e, tal como alguns dias antes, vimo-nos gregos para sair da cidade. É que o pessoal tem a bela da mania de, mesmo quando não sabe determinada direcção, apontar p’ráli e dizer “siga”. Infelizmente isso não é exclusivo da China. Então perguntámos lá a um méne onde era Numseionde e o gajo mandou-nos quase meia hora para trás. Apenas para depois voltarmos. Andámos meio sem saber onde estávamos um pedaço, e só passado duas horas chegámos à saída da cidade.
               
Fomos esperando mais ou menos quinze minutos entre cada carro. As estradas eram horríveis, e p’rai no quarto carro passámos por uma estrada onde tínhamos de andar p’rai a vinte à hora, ou até menos. Esse deixou-nos no meio do nada, arrisco-me a dizer – literalmente. Um pedaço de terra onde passava um carro a cada vinte minutos. Daquelas situações que fazem um gajo rir de tão peculiares. A dada altura passou um cota, bem devagarinho, mas limitou-se a sorrir e a apontar para a esquerda. Grande couro. Não nos queria era levar. E foi aqui que se passou algo interessante, uma espécie de carma dificil de ignorar. É que quando o cota passou e riu-se e tal mas ainda assim não nos levou, o meu primeiro (e único) instinto foi mandar-lhe um grande dum mangalho. Mas resisti. Resisti porque apesar de tudo era só um carro... Porque um gajo quando começa a boleiar não se sente logo frustrado, e é ignorado por um, dez, cem carros, e é tudo tranquilo. Mas a dada altura começa a flipar um bocado e apetece mandá-los todos para uma eventual mãe que os tenha dado à luz – mas é importante não esquecer que apesar daquele carro para mim ser o milésimo, eu para ele sou o primeiro. Assim, a custo, resisti. Enão é que passado dez minutos ele apareceu outra vez – tinha-se arrependido e veio para trás buscar-nos. Fiquei contente, porque se lhe tivesse feito o mangalho bem que podia esperar mais um bom pedaço.
               
Entrámos no Land Rover do cota, demos um par de curvas e PAM! Beleza. A estrada descia a montanha, aos S’s, com calma. O rio lá em baixo aguardava uma travessia nossa, o céu dava-nos o seu melhor e as montanhas tinham as vestes de gala. Adorei. Tinha de ter a cabeça de fora do carro, tinha de tirar fotografias, filmar, tinha de tudo. Tinha de fazer tudo que me permitisse embrulhar aquelas vistas e trazê-las na mochila para depois mostrar à malta.
               
Andámos com o cota um bom pedaço, p’rai hora e meia, até que parámos para almoçar. E que almoço. Encheram a mesa, e quando já estávamos espantados com a quantidade de comida, aparecia outra cena qualquer. Arroz, sopa de legumes, dois tipos de cogumelos com especiarias e vegetais, carne, ovos mexidos com tomate, tofu e outras cenas. Mas ainda assim, foi quase tudo. É que aqui o menino não deixa nada.
               
O senhor deixou-nos na primeira “grande” cidade depois de Lijiang. Fui perguntando à malta as direcções para a segunda – Yanyuen. Dizer que estávamos com o pé atrás é um eufemismo. É que apesar de toda a gente nos mandar para o mesmo sítio, esse sítio era uma estrada onde mal cabiam dois carros e que entrava, mais uma vez, montanha adentro. Então que era feito daquela estrada toda jeitosa que o google maps mostrava? Era aquilo, infelizmente. Como tinha guardado o mapa no computador, tive de confirmar. Estávamos abrigados da chuva debaixo de um telheiro. Iá, era aquilo. A estrada parecia que era mais uma estradinha por uns vinte quilómetros. Muito me enganas... Vinte quilómetros em linha recta, ok... Mas demorámos mais de três horas a chegar à próxima estrada principal que tinha mais buracos que a cara de um adolescente...
               
Como não passava nada, que se lixe, ‘bora caminhar. Caminhámos p’rai meia hora, as casas desapareceram e a estrada transformou-se num caminho de brita. Seguimos com um cota que também ia a pé. Passou um camião que levava calhaus para uma construção qualquer, pedimos para entrar, disseram que não, o cota disse qualquer coisa, e eles pararam e entrámos os três na carroça. Andámos dez minutos, e de volta ao penante. Seguimos caminho, e passou uma carrinha. Fixe, levou-nos. Fomos dentro do contentor na parte de trás sentados numas caixas de cervejas p’rai meia hora, convencidos que nos ia deixar naquela estrada que parecia jeitosa e “já ali”. Como diria a minha avó – p’óch! Pararam, iam seguir para a direita. E nós queríamos a esquerda.
               
Lindo, pá. à nossa frente tínhamos uma estrada de alcatrão negro, a contrastar com a terra vermelha da montanha. Parecia que a estrada acabava já ali à frente e o mundo engolirnos-ia. Mas não desapareceríamos sem mergulharmos no arco-íris que avistávamos sem esforço ali ao fundo. Demais. Caminhámos sorridentes tanto com o cenário que nos abraçava desde milhares de metros de altitude, como com, mais uma vez, aquela situação, de estar nao sabíamos bem onde, à mercê não sabíamos de quem.

Caminhámos mas percebemos que aquilo não valia a pena. Um bloco de pedra dizía-nos que estávamos no quilómetro treze. Pá não devia ser muito mais. Mas era. E, como já disse, na China parece que os quilómetros se multiplicam. Caminhámos um bom pedaço e só depois apareceu a placa catorze. ‘Tás é tolo. Caminhámos mais cem metros e deitamo-nos, a mochila como almofada, o mundo como pano de fundo.

Mas passou um carro. Nem demorou muito, só p’rai quarenta minutos. “Vais para Yunyan? Boa cena”. E lá fomos. Uma carrinha tipo Hiace com dois homens simpáticos à frente e um puto atrás. Mais uma grande corrida. Passámos por riachos, vilas e, para mim o mais impressionante, grandes vales onde se viam casas de madeira lá ao fundo, onde certamente o pessoal vivia quase da mesma forma que há centenas de anos. Pá tinhas uma montanha enorme, sem estradas sem nada, e vias do outro lado uma casa assim, como que se lá tivesse nascido, umas plantaçõezitas e algo que parecia albergar um ou outro animal. Lindo. Cabeça de fora, o Ventona fuça, o calor no coração. Siga.

Mas aquela estrada. A pior de toda a viagem. N.ao sei como é que o gajo conseguia fazer aquilo. O meu Clio ficava no primeiro buraco. Passado a primeira hora um gajo já começava, ainda que ainda a sorrir, a pensar “Ok se calhar já parávamos de andar às cabeçadas no tecto...”. Mas é daquelas cenas.

Mas acontece que o gajo não ia para Yunyan. Deixou-nos p’rai a cinquenta quilómetros. Mas foi fixe, andámos bués. Deixou-nos numa aldeia minúscula. Abrigamo-nos no telheiro de uma loja, talvez a única da aldeia, onde algum pessoal jogava cartas e fumava cigarros cá fora, tão admirados de nos ver como eu de estar ali. Uma chavalinha arranhava inglês. Disse-nos tal como tantos locais em tantos países, que era impossível boleiar. Disse-nos também que a aldeia tinha duzentas pessoas. Isso na China é como em Portugal uma aldeia ter uma pessoa, ahah. A rapariguinha também nos arranjou uns banquinhos e lá estávamos sentados, levantando-se um, à vez à vez, quando passava um carro. Sacámos boleia do quarto – o pior condutor da história. Ia dizer “o tipo de condutor que blá blá blá” mas esquece. Não há tipo para este condutor. Este condutor andava p’rai a setenta à hora com buracos que eram meninos para destruir o eixo do seu jipe todo fino. De vez em quando ele soltava um “ui, ui...” mas isso não o impedia de continuar. PAU PAU PAU! Ah, eadorava conduzir sem usar o limpa pára-brisas, apesar de estar a chover constantemente. E quando usava, não o ligava, como toda a gente. Não, ele fazia como se não houvesse opção de automático. Tipo rodava a cena, rodava outra vez para parar. E assim sempre. Só quando estávamos a chegar é que se lembrou do automático. Enfim. O que é certo é que nos levou. Desculpa lá condutor, não queria parecer ingrato.

Pois o méne deixou-nos numa cidade a dez quilómetros de Yanuyan. O nosso destino final ainda estava muito longe, era Chengdu, que ainda era a seiscentos e tal quilómetros. Quer dizer que só tínhamos feito duzentos e tal nesse dia. O Ilya estava com a pica de seguir, mas eu não estava a adivinhar sucesso. Estava a chover, não passavam carros, e eram p’rai nove e tal da noite. Num compromisso, decidimos esperar mais meia hora. Se não desse nada, ficávamos no hotel ali ao lado. Como sempre, enquanto esperávamos fomos rodeados de pessoal, o que nem sempre ajuda e às vezes até irrita um bocado, mas tudo tranquilo. Um méne falava inglês e até era fixe. Não apareceu carro nenhum, por isso instalamo-nos no hotel. Depois de deixar as cenas, fomos comer qualquer coisa. O Ilya, apesar de ter mostrado a sua mensagem a dizer que era vegetariano recebeu comida, ok, sem carne, mas com sopa de galinha. Infelizmente isto aconteceu p’rai dez vezes.
               
Jantados, voltámos ao hotel. O Ilya tinha ficado p’ra trás, por alguma razão. “Pêdra, Pêdra”, ouço-o chamar-me. Estava entusiasmado. E que era? Bem, era a lojinha do méne que falava inglês. Era um chinês p’rai da nossa idade, com calças de fazenda e um blazer até porreirinho. Tinha uma loja mesmo ali perto de onde o mau condutor nos tinha deixado. O Ilya chamava-me todo excitado da loja onde tinha entrado por alguma razão.
               
- Olha o que o gajo vend!e – dizia, apontando para... apontando para comprimidos de viagra, vaginas de plástico, vibradores, bonecas insufláveis, lingerie daquela de comer, sei lá, tanta cena quanto um gajo pode pensar. E ali, naquela vilita, naquela lojita de um metro por três. Demais, partimo-nos a rir e fomos bem dispostos para o quarto.

                No dia seguinte acordámos, tratámos das cenas do costume e pusemo-nos a caminho. Primeiro um carro, depois outro e estávamos em Yunyan. Mas estávamos dentro da cidade, má onda. Fomos caminhando um bom pedaço e lá apareceu alguém que nos tirou daquele martírio. Andámos o dia todo, sempre de vila em vila. De vez em quando aparecia um trecho bacana que dava a entender que se ia estender por um bom bocado, mas rapidamente acabava e eram mais estradas, que nem eram más, mas só de uma faixa, e passando por vilinhas. A dada altura estávamos numa vila e quando chegávamos estavam três ou quatro putos a brincar p’rai a cinquenta metros, e um homem a fumar cachimbo perto de nós. Esperámos meia hora por uma boleia, e quando bazámos estavam lá, sim, eu contei, vinte e cinco pessoas. Tudo abismado, sorridente e curioso com aquelas almas que por ali apareceram.
               
Quando o sol já se punha apanhámos o camião mais lento da China. De sempre. Íamos quase sempre a trinta ou menos, e parávamos a cada vinte minutos. É melhor que nada, eu sei. E ao longo de todo o caminho uma autoestrada imensa, quase uma ponte gigante – acho que daqui a uns anos boleiar na China vai ser ainda mais fácil. Este camionista deixou-nos no que parecia ser apenas uma ruazita onde os camionistas paravam para dormir. Havia ali um putedo tremendo. Mas versátil, porque também cozinhavam. Comemos noodles. Uns com os outros. O Ilya mostrou o seu papel a dizer que era vegetariano, e a mulher deu-nos noodles, mais nada. E foi na mesma.
               
Demos uma vista de olhos num hotel que tinha toda a pinta de ser para o pessoal cortiré com as miudas. Tinha preço para alugar só uma hora. Na altura para mim isso foi a confirmação. Hoje sei que o que não falta na China são hóteis com essa opção, desde o mais rasco ao mais sofisticado. O Ilya queria seguir viagem. Mais uma vez, combinámos tentar um pedaço, e se não desse, arranjávamos um quarto. Arranjámos uma boleia e até ficámos contentes, mas percebemos de imediato que o sítio onde estávamos era a entrada de uma cidade. Ok, não há crise. Demos uma volta na cidade, ainda tentámos seguir viagem mas passado um quarto de hora arranjámos um quarto.
               
- Ora aí está a o verdadeiro hotel todo podre, mesmo ao nosso jeito – disse eu, sorrindo, sendo que até então todos os hóteis eram caríssimos. Nunca saberei que cidade era aquela. O gajo do hotel falava connosco como se lhe tivessemos cortado um dedo do pé no dia anterior. Mas lá nos deu o quarto. Que nem era mau pá. Fomos comer qualquer coisa, e voltámos.

No dia seguinte chegaríamos, finalmente, a Chengdu. Após três dias de boleia. E foi suave. Primeiro um camião duas horas. Depois um carro que nos levou lá direitinhos. Ainda parámos para almoçar. Mais uma vez um banquete. O pessoal parece que pensa num número à sorte, multiplica-o por seis e o que for o resultado é o número de pratos que pede.

E finalmente – Chengdu.

vinte e cinquenta e um-quinta-oito-nove-onze
algures entre Pequim e Erlian







Sem comentários:

Enviar um comentário