sábado, 8 de outubro de 2011

Erlian


Chegado a Erlian, saí do camião e a primeira coisa que fiz foi torcer o pé. Limpinho. Abri a porta, apoiei-me num degrau, saltei e PAU, no chão. Rastejei até ao passeio e fiquei lá um pedaço. Mas para quem já andou de muletas cinco vezes aquilo foi coisa pouca. Assim, cambaleando um bocado, vi um Dicco’s, que parece ser a cadeia de fast-food mais popular na China, pelo menos tirando as outras que são populares em qualquer lugar. Lá tinham internet, e passei umas horas no forum online da lonely planet, onde pesquisei acerca de sítios para dormir, como chegar a Ulan Bator, e acerca do visto. Parecia que só um gajo é que mencionava os quatro dias úteis, toda a outra informação dizia que demorava de dez a catorze dias, e que a embaixada russa na Mongólia era das piores do mundo. Espetacular. O meu coração caiu um bocado. Tão perto, e ia falhar outra vez. Mas... porque é que era assim tão importante? Porque é que me predispus a atravessar o continente de ponta a ponta? Foi um desafio, simplesmente. Queria partir numa viagem que fosse algo mais do que andar um pedaço, apanhar um avião, andar um pedaço. Queria que tivesse uma identidade pré-estabelecida, uma identidade que ainda assim não roubasse muita flexibilidade. Queria algo pleno, e Portugal a Singapura pareceu-me bem. Mas depois isso falhou, com as culpas para o governo chin;es. Isso falhou e tive de voar para a Tailândia. Novos planos, e ali estava eu, na fronteira da China com a Mongólia, perto de perceber que os tinha falhado.
               
Tentando não stressar muito, saí do restaurante e caminhei ao frio em direcção à estação de comboio. O comboio... ainda tinha esse problema. É que pelos vistos a maneira de chegar até Ulan Bator era ir até Zamyn-Uud (a primeira cidade mongol depois da fronteira), esperar um bom bocao na fila da estação de comboio e comprar um bilhete para Ulan Bator. Mas isto era caso eu conseguisse chegar de manhã. Ora o meu visto mongol só estaria pronto à tarde. Ou seja – não havia hipótese. Queria dizer que, à partida, conseguia o visto na segunda, mas só podia apanhar o comboio na terça à tarde, e chegava a Ulan Bator quarta! Estava tudo a ir por água abaixo...
               
Encontrei o hotel, vinte yuan por noite. Ok. Fui jantar. Era sexta-feira, curtia encontrar alguns estrangeiros para ir beber uns copos. Caminhei uma hora a ver se encontrava algum bar, mas a China não tem bem esse estilo, pelo menos em sítios menos turísticos. Ao que parece o pessoal junta-se nos restaurantes ou bares de karaoke. Mas é só pessoal chin;es, que geralmente não fala ingl;es. Não encontrando ninguém, voltei para o quarto e vi uns episódios até adormecer.

Passei o dia seguinte... bem, passei os dois dias seguintes da mesma maneira, sem grande diferença. Acordar lá p’rás onze, ir almoçar nas calmas, depois passar toda a tarde na internet no Dicco’s, ir jantar, dar uma caminhada e voltar para o hotel. Foi isto, assim de repente.
               
Mas a diferença foi que no sábado deixei a preocupação desaparecer, lá para o final da tarde. Não é que estivesse a morrer de aflição, mas estava um bocado desiludido. Mas já percebi o meu padrão. Acho que stresses pequenos não t;em importância p’ra mim. Stresses maiorzitos (mas que também não são nada se virmos as coisas em perspectiva) como perceber no Nepal que ia ter de voar ou perceber na China que se calhar também ia ter de voar de Pequim para a Europa, t;em um maior impacto, e eu tento ter aqueles diálogos internos para relativizar a cena, mas aquela nuvenzita fica por um bocado. Mas percebi que mesmo com esses stresses maiorzitos, a nuvem dissipa-se passado pouco tempo, tipo um dia. Foi o que aconteceu no sábado quando estava a dar a minha caminhada. Estava frio, estava a ouvir música,  “pá que se lixe, tenho é de pensar no que posso fazer... e se não der, não deu... perco algum dinheiro, perco este objectivo de atravessar tudo por terra, mas paci;encia, não é o fim do mundo...”.
               
Assim, voltei para o quarto cheio de qualquer cena. Estava satisfeito, digamos, com o que quer que se estivesse a passar, dentro e fora de mim. Tinha curtido muito a minha caminhada a ouvir vezes sem conta “Time of My LIFE” e sentia-me presente em mim como tantas vezes antes, e escrevi um texto sobre isso mesmo...

No domingo descobri que havia algo que eu podia fazer. Continuava a ser arriscado, mas sempre era mais confortável. E não sei como não pensara nisso antes. Podia mudar o bilhete de comboio. Se mudasse para dia vinte e sete, tinha nove dias úteis na Mongólia para esperar pelo visto, caso o pedisse na terça. Se mudasse para dia trinta tinha doze. Tendo em conta que a informação que eu tinha apontava para dez a catorze dias úteis, continuava a não ser nada garantido, mas sempre era melhor... Ok, fiquei esperançoso. Tinha de chegar à Mongólia na terça. Mas como? Ia ser complicado...
               
Segunda levantei-me cedo para ir pedir o visto. Cheguei lá por volta das sete e meia, e apesar de dizer na embaixada que abrem às oito, só às nove é que as portas se abriram. Claro queo facto de eu ter sido o segundo a chegar não importou nada, o pessoal enfiou-se por quanto espaço dava. A boa cena deste dia foi que conheci o Steve, um canadiano, e a sua irmã mongol adoptada. Ambos viviam na Mongólia e o Steve estava ali para renovar o seu visto. A família dele tinha uma ONG cujo objectivo era produzir fruta, algo muito difícil com o clima mongol, e tinham adoptado a rapariga há alguns anos. O fixe de os ter conhecido foi que eles disseram-me, com toda a certeza, que maneira mais simples de chegar a Ulan Bator era apanhar um comboio em Erlian para Zamyn-Uud e depois, quando dentro do comboio, comprar o bilhete para Ulan Bator. Era perfeito!
               
Tinha de me despachar a tirar o visto. Mas não deu. Tal como já tinha acontecido em alguns outros países, a senhora estranhou o meu passaporte tuga.
               
- Não tem problema, é da União Europeia, eu li as regras, não preciso de carta de convite – eu ia dizendo. Ainda assim, ela mandou-me esperar e tentou ligar para a embaixada em Pequim, enquanto atendia um italiano. Talvez por eu ter dito o mesmo mais um par de vezes, talvez não, ela desistiu de ligar para Pequim, já que estavam numa reunião, e atendeu-me, dizendo-me para aparecer à uma e meia para ir buscar o passaporte. Saí da embaixada e voei para a estação de comboio. É que os canadianos tinham comprado os bilhetes através de uma ag;encia porque muitas vezes esgotam-se. Tive sorte e ainda havia. Comprei os bilhetes, almoçei e fui fazer uma última pesquisa na internet. Tinha recebido um mail da Ruth, uma mulher que já respondera a mais de vinte mil questões sobre vistos e essas cenas no forum da lonely planet. Também ela dizia que, tanto quanto sabia, demorava de dez a catorze dias. Mandei um mail a pedir à ag;encia através de quem tinha comprado o meu bilhete para Moscovo, para o mudar para dia vinte e sete, e bazei.
               
Paguei o hotel e meti-me no comboio, com a esperança de chegar de manhã cedo para ir pedir o visto. Próximo destino: Mongólia!

treze e nove-quinta-vinte e nove de setembro de dois mil e onze
algures entre Ulan Bator e Moscovo




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