quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Saigão I


Dia 20 de Julho acordei com o Vietname nos meus planos. Após arranjar as cenas e me despedir do Martin, fui até à estação de autocarros. Por alguma razão, o preço para chegar até Saigão tinha baixado um dolar, ficando nos 9 dolares que tinha visto no meu primeiro dia, mas que entretanto desapareceram. Acho que depende de a quem se pergunta. E já nem me espanta minimamente.
               
Esperei um bocado na estação, lendo A Short Story of Nearly Everything, do Bill Bryson, e meti-me no autocarro. Dei o meu passaporte p’rá mão do gajo e seguimos. Chegámos à fronteira, eles iam chamando os nomes, passei, quae comprei um cartão SIM mais caro do que realmente valia, voltei ao autocarro e voilá, benvindo ao Vietname!
               
Felizmente tinha anfitrião em Saigão, a Rebecka, uma miuda alemã. Não tem acontecido muito ultimamente, em parte porque aqui não é tão fácil de arranjar, e em parte porque não tenho pedido com a antecedência suficiente. Quando cheguei arranjei um sítio com internet, pedi a password apesar de não consumir nada, e tentei ver o que faria. Comprei um cartão SIM para comunicar com a Rebecka, vi as direcções e segui caminho. Caminhei mais de uma hora até chegar à estação de autocarros onde apanharia um para sua casa, mas não havia nada. Por alguma razão, depois do pôr-do-sol aquele autocarro cessava actividade. Boa... e na mensagem dela, ela dizia que a alternativa era apanhar um táxi por 7 dolares, o que é caríssimo! Porém, apareceu um méne que disse que me levava de mota por 50000 dong (2,5 dolares), eu, sem saber que por acaso esse até é o preço normal (paga o justo pelo pecador, às vezes), consegui baixar para 40000 e lá fui. Entretanto tinha-lhe mandado mensagem, por isso estava tudo encaminhadinho.
               
Como a grande maioria dos expatriados, a Rebecka vivia num complexo de luxo. Um condomínio com várias torres e um grande passei no meio. Corri esse passeio todo, porque não sabia onde estava a sua torre, e passei por lojas, agências de viagem, piscinas, jardins, campos de ténis e parques infantis. Estava bué de gente cá fora, a passear o cão, fazer desporto ou brincar com os filhos.
               
Liguei à Rebecka e ela apareceu.
A Rebecka é alemã, tem 30 anos, um curso em engenharia química, e trabalha em Saigão no desenvolvimento de um laboratório de análise da qualidade da comida, para posterior exportação. Já passou um ano na Irlanda como au pair (ama), e depois, mais tarde, voltou para fazer uma cena qualquer na sua área. Esteve desempregada um anito, mais ou menos, e depois conseguiu este emprego no Vietname, país que adora. É uma rapariga muit porreira, faladora, carismática e um tanto ao quanto mística, do tipo que acredita em almas e essas cenas.Senti-me imediatamente à vontade com ela.
               
Mal cheguei, sentámo-nos na varanda com uma cerveja ou duas, e ficámos lá duas ou três horas a conversar e ouvir música. Ambos os seus avós lutaram na segunda guerra mundial, e o seu irmão passou por uma fase de neo-nazismo, algo que, pelos vistos, é mais frequente do que se imagina. Pensava que seria raro enconrtar um neo-nazi nos tempos que correm, mas pelos vistos não é e, dependendo da zona, até se pode encontrar vários. Gostava de conhecer um. Um dia, em Budapeste, estava num bar com a Graciete e um australiano que conheceramos no hostel e apareceu um par de húngaros que meteu conversa connosco e nos pagou um copo. Estava tudo a correr lindamente quando o gajo diz algo que se parece com “(...)  o terceiro reich devia ter ganho a guerra”.
               
- Ahah, engraçado, pareceu-me que tinhas dito que o Hitler devia ter ganho a guerra! – disse eu, genuinamente confuso.
- E disse! – o gajo confirmou. Disse que era uma vergonha a Hungria ter perdido duas guerras seguidas (a primeira e a segunda guerra mundial) e quando lhe perguntei acerca do holocausto, ele negou-o, dizendo que não havia provas e isto e aquilo. Eu, abismado, aprendi algo nessa noite. É que geralmente gosto sempre de ouvir o que o pessoal tem para dizer, sendo que com os extremos também se aprende. Mas nessa noite aprendi que às vezes é preciso marcar uma linha. Porque em vez de estar a falar com o gajo e a tentar perceber, algures, no meio daquela conversa, talvez devesse ter-me retirado, o que foi o que acabou por acontecer, mas por sugestão do Nigel, o australiano.
               
E por mencionar este episódio lembrei-me de como curto viajar com a Graciete. Eu gosto de andar seja por onde for, seja com quem for, está claro, mas curto mesmo andar por aí com o Kidus, e tenho saudades disso, naturalmente. Quem sabe não nos encontramos em Moscovo, ahah!

No dia seguinte entreguei-me a Saigão. Curti bastante a cidade, como me tinha parecido que aconteceria, no dia anterior. Não sei bem porquê, mas há algo que me apraz. O tráfego é uma loucura autêntica. Milhares e milhares de motas que não se importam verdadeiramente com coisas como passadeiras ou sentidos únicos. Um caos que até dá gosto de ver... De resto é enorme, bem organizada e tem alma vietnamita. Apesar dos arranha-céus e tudo vê-se os varredores de rua com aqueles chapéus de palha cónicos super características, velhas na rua a vender velharias ou homens de meia idade, sentados no chão, na rua, a jogar damas, ou algo parecido. Além disso, acho as pessoas muito interessantes de fotografar. Tenho vindo a desenvolver um gosto por fotografia inesperado, e agora já penso em tirar um cursito, aprender cenas. E tenho tirado fotos muito porreiras, de vez em quandinho.

Queria ir pedir o visto chinês, por isso fui a uma agência perguntar onde era a embaixada. As miudas foram muito simpáticas mas demoraram eternidades a imprimir o mapa, procurar a morada, etc, e quando cheguei finalmente a secção consular já tinha fechado e só se podia pedir vistos de manhã. Acho que já não chegava a tempo mesmo que as miudas da agência tivessem sido mais lestas. Deixei o caso – peço o visto em Hanoi. O que mais me preocupa até é o visto russo, só porque não sei ao certo quando é que lá vou estar e é preciso uma carta de convite, que apesar de ser algo até simplezinho, é uma novidade para mim.

Depois da embaixada, fui ao Museu Nacional de Saigão, onde paguei trinta cêntimos para entrar. Foi mais ou menos, nada de especial. E passei o resto do dia assim, de sítio em sítio, a parar de vez em quando para beber uma água ou um café. Isto até que, cerca das quatro da tarde, param duas pessoas numa scooter, e me perguntam onde é o Museu dos Restos da Guerra. Digo duas pessoas porque a que vinha atrás era uma mulher, mas a da frente, apesar de hoje achar que era uma rapariga, na altura não fazia a mínima ideia. Pois eu, na minha simpatia, saquei do mapa, procurei a cena, elas desligaram a mota, sacaram de uma espiga de milho enquanto esperavam até que a mais nova, da frente, disse que eu tinha cara de espanhol. Eu sorri e disse que quase tinha acertado. Depois, de repente, perderam o interesse no Museu e eu era o interesse.
               
- Olha nós temos uma irmã que é enfermeira e vai para a Europa. Não te importas de te sentar ali no parque connosco para te fazermos umas perguntas acerca da Europa? – perguntaram.
- Ok, não há crise – respondi, pronto a ajudar. Caminhámos cem metros, elas estacionaram a mota e começaram a bombardear-me com perguntas. Mas às vezes parecia que estavam mais a fazer conversa, e não ouviam as minhas respostas verdadeiramente, sendo que repetiam as questões. Mas até tinham um bom feeling. Eram tailandesas, disseram-me, uma tinha 30 e a outra 28 anos, e estavam de visita a Saigão. Eis que, a dada altura, perguntaram se eu não podia perder trinta minutos da minha VIDA e ir com elas a casa para falar com a irmã delas e também para tranquilizar a mãe que, pelos vistos, estava muito receosa de ver a sua filha partir. Eu estava relutante como um carapau fora de água, mas até queria ajudá-las...
- A cena é... que eu não vos conheço... e vocês pedem-me logo para ir a vossa casa... não sei – disse. Mas olha, que se lixe, disse “tá tudo” e quando dei por ela estava num táxi, com a gaja mais velha sempre a fazer as mesmas perguntas. É estúpido, mas passou-me pela cabeça a típica imagem de eu a acordar numa banheira cheia de gelo, sem um rim. Entretanto, reparei que falavam com o taxista, apesar de dizerem que não falavam vietnamita. Quando inquiri acerca disto disseram que falavam o básico. Outra cena em que reparei foi que quando disse o autocarro que apanhava para ir para casa, a mais velha disse “ah, isso é para o distrito 7”, o que estranhei, porque se estás numa cidade que não é a tua e ainda por cima andas de scooter, não vais saber de cor para onde vão os autocarros.
               
Se quisermos ver a cena de uma forma mais paranóica, eu cometi muitos erros, mas sabia que os estava a cometer e não achei que fosse acontecer nada de mal, como não aconteceu. Tipo dizer que autocarro apanhava para ir para casa, dar o meu número de telemóvel (vietnamita) e e-mail, incluindo dizer quanto ganhava quando trabalhei na Inglaterra. Isto tudo como resposta às suas incessantes questões.
               
Quando chegámos, ainda no centro da cidade, a casa não era daquelas num beco escuro nem nada. Tinhas as portas abertas e putos, de outras casas, a brincar ali ao lado. Apontei a morada no telemóvel, discretamente, e entrei.
               
Agora a questão é: conheci a famosa irmã delas que ia para a Europa? Não! Ao invés, sentei-me com o meio-irmão delas à conversa a beber um café, depois juntei-me às duas irmãs na cozinha para comermos, e depois sentei-me outra vez com o irmão. Qual era a cena? A cena é que o irmão delas trabalha num casino, dá cartas no poker. E ele perguntou-me se eu não queria ser parceiro dele, que me ensinava os seus métodos e podíamos fazer milhares de dólares. Eu, cordialmente, respondi que não estava interessado, apesar de até achar que fosse dar uma estória porreira envolver-me com a máfia de saigão. Depois de comer ele ainda propôs o mesmo duas ou três vezes, e de vez em quando dizia, em voz alta para as irmãs na cozinha “eu quero que ele seja meu parceiro nas cartas mas ele não está interessado, pá...”.
               
- Eu a ti posso ensinar o meu método, porque estás cá, ganhas umas massas, e depois vais embora. Se arranjo um parceiro vietnamita é um problema, apanha os copos e chiba-se logo – disse. Ora eu como rejeitei a sua proposta, não cheguei a saber o seu método. Mas, ou a cena era ficar com os meus 200$ de entrada no jogo e depois eu perder tudo ou, e até mais provavelmente, jogar comigo, dizer-me as suas cartas com truques, e lixarmos o dinheiro dos outros gajos. Ou ainda, como ele dá cartas no poker no casino, dar-me as melhores cartas, ou dizer-me, com um truque qualquer, as cartas dos outros gajos. Nunca vou saber.
               
Depois de mais um pedaço de conversa as irmãs disseram-me que a outra irmã estava no hospital com a sua mãe, que tinha ido ver a pressão arterial, e que já não ia dar. Metemo-nos num autocarro, elas pagaram o meu bilhete, e ficámos no centro. Mais uma cena estranha... elas se calhar não estavam muito à vontade com o embuste, e queriam evitar caminhar mais cinco minutos comigo. Por isso, em vez de caminharem comigo, disseram que tinha de ir ao hospital primeiro. Despedimo-nos, e eu segui caminho, apenas para passar por elas, que já tinham a sua mota. Ou seja, íamos para o mesmo lado, e elas sabiam disso.
               
No final de contas, não há stresse, porque o embuste é ligeiro – há uma opção por parte do sujeito se entra na cena ou não.
               
Dei mais uma volta e voltei para casa, depois de passar uma hora na internet. A Rebecka foi para a cama cedo, eu estive no computador um bocado e fui dormir.

23h54-2ª.25-7-11
algures entre Da Lat e Hoi An

1 comentário:

  1. Adorei! Sempre no mesmo registo, claro e preciso, com alguns errozitos que me parece deverem-se à rapidez com que pretende "teclar" e além disso revelou ser suficientemente observador e perspicaz para reparar nas contradições das pequenas mas não em demasia que o impedissem de avançar na aventura!!! Esse meio termo parece-me bastabte difícil e de louvar! Voltarei logo que possa, foi realmente um prazer!

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