segunda-feira, 12 de maio de 2014

até Laayoune

Em Tarfaya passei a tarde do segundo dia no café. Troquei umas palavras no facebook com o Santana e contei-lhe dos meus problemas com os furos. “Deves ter algum espeto no pneu”, disse logo, “Vira o pneu do avesso e vê”. Achei que não devia de ser isso, porque já me tinham dito para limpar o pneu, a câmara de ar e a fita da roda, e assim o tinha feito com precisão, e nada. Contudo, a meio da tarde fui ver a miúda, e pensei em, em vez de passar um pano por dentro do pneu como no outro dia, passei o dedo. E eis que apareceu o espeto! E determinado! Tanto que precisei de uma pinça para o arrancar. Pois quando me tinham dito que eu devia ter alguma cena na roda, achei que fosse tipo umas pedritas ou cenas assim que depois com o peso fizessem furo. Nada disso. Senti-me em parte aliviado por ter resolvido o problema, e em parte meio estúpido por não ter pensado logo nisso. Às vezes não dá...


Bazei de Tarfaya em direcção a Laayoune, onde me esperava o Bakkar, a quem tinha enviado um pedido através do Couchsurfing, e que me ligara no mesmo dia. Entreguei o meu passaporte à entrada da cidade à polícia, e estava num país novo! O Saara Ocidental! Não fazia ideia do quanto este território quer e precisa ser um país independente até concluir a minha estadia na sua capital.
                
Estacionei a bicicleta à frente de uma oficina de bicicletas e enviei mensagem ao Bakkar, enquanto comia um rolo de canela que comprara ao lado. Entretanto um senhor amigo do dono da oficina meteu conversa comigo em espanhol e fomos falando um bocado, até que o meu anfitrião apareceu, p’rai uma hora depois. O homem que estava comigo estava a ficar chateado, e queria falar ao telefone com o Bakkar e tudo, algo que eu, delicadamente, recusava. Afinal de contas o gajo ia albergar-me, não queria estar ali a dar-lhe tripe por estar a demorar...
               
- O meu amigo é muito nervoso... – dizia o Bakkar, sentado à minha direita, no jipe do Ettaleb, onde a Mónica acompanhava, atrás. (Não resisti a dar um nome à Bicicleta. Estava a pedalar, olhei para ela, e de repente surgiu-me... Mónica!) E, na verdade, não passou muito tempo até o Nervous Guy, como lhe chamámos, tripar bués por o Bakkar estar a curvar-se um pouco para falar comigo e estar a tapar o retrovisor. Todo nervoso, a falar mal e a empurrá-lo com a mão direita. Descurti logo a cena.
                
Em casa do Bakkar tomei banho e quando mudei de roupa saímos. O sol já se tinha posto e esperáva-nos lá fora outro amigo do meu anfitrião, com o seu Fiat Punto de matrícula italiana. Entrámos e andámos a fazer nada p’rai duas horas. Conduzíamos para trás e para a frente, devagar, depois parávamos, o amigo do Bakkar ia Numseionde, andávamos mais um bocado, parávamos, caminhávamos um pedaço pelo mercado, voltávamos ao carro, parávamos para comer umas postas de peixe, e assim sucessivamente. Curti a cena, e achei engraçado como eu nunca fazia ideia do que se estava a passar, para onde íamos, durante quanto tempo. O Bakkar ia cumprimentando pessoas sempre um pouco por todo o lado, e ia-me falando da causa sarauí. Entretanto o amigo dele bazou e ficámos na loja de peixe do meu anfitrião. O Bakkar não tem nenhum emprego em particular, mas tinha p’rai três ou quatro. Vendia meteoritos que encontrava no deserto, às vezes por largas centenas de euros, tinha uma loja de peixe que às vezes abria, outras não abria, recebia algum dinheiro de rendas e também fazia negócio com carros comprados na Europa e vendidos lá.
                
Na loja de peixe mostrou-me alguns vídeos da violência ocorrida numa manifestação para um Saara Ocidental livre, dois dias dantes. Via-se manifestantes, poucos deles, no meio da rua, com uns cartazes e o sinal de V nas mãos, e a polícia a investir de forma brutal. Pancadaria para cima deles. Como o assunto era tão novo para mim, custava-me perceber um pouco a potência daquilo. Por ignorância minha, a primeira vez que tinha ouvido falar de um movimento e vontade de independência daquela parte do mundo tinha sido poucos anos antes através de um amigo, e muito ao de leve. Na verdade, não sabia nada. E, ao mesmo tempo, ouvir o Bakkar deixava-me renitente em assimilar aquilo tudo. Isto porque sentia algum ódio do Bakkar em relação aos marroquinos, e questionava se isso não toldaria o julgamento do que realmente se passava. Ou será que esse ódio era uma consequência do que se passava? Viria a descobrir, de certa forma.
              
- Os marroquinos são estúpidos!
- Não podes dizer isso, pá... Os marroquinos não são todos estúpidos, não podes generalizar assim!
- Okay, okay... eu percebo... Os marroquinos são estúpidos no que toca ao Saara Ocidental – lá amenizou. Lembrei-me de imediato da breve conversa que tivera com o amigo do Abdul, que tinha dito que o Saara Ocidental era de Marrocos... porque sim, e porque os sarauís não se sabiam governar, um argumento tão profundo quanto um prato.
                
Ia aparecendo pessoal na loja do Bakkar, e eu curtia aquilo. Havia ali um sentimento de coesão, de bairro e, no fundo, sarauí. Laayoune tem, disseram-me, dez marroquinos para cada sarauí, mas acho que, por andar com quem andava, não conheci muitos.
- Não tens amigos marroquinos? – perguntei.
- Lembras-te daquele gajo que me veio cumprimentar depois de irmos ver as corvinas? – perguntou, referindo-se a quando chegara um homem, abrira as portas da carrinha e logo se juntou uma multidão à volta dos enormes peixes – Era marroquino. E, mais uma ou duas vezes acho que falou com um marroquino na minha presença, fazendo sempre questão de mo dizer a seguir de onde essa pessoa era.
                
Sinto-me um bocado insensível ou até superficial ao admitir que às vezes me fartava um bocado aquela conversa do Saara Ocidental. Quase que me lembrava o vegano que conheci na Tailândia que fazia questão de me mostrar os vídeos de como os animais eram mal-tratados. A verdade é que todo esse celeuma colidia um bocado com o meu despeito pela noção de nacionalismo. Mas esse é o pensamento-reflexo, que deve ser travado. Às vezes temos ideias, ou noções, que sabemos estarem certas, ou assim o achamos, e depois quando aparece algo que vai um bocado contra essa cena custa-nos encontrar empatia e temos logo um instinto de negar. Vale a pena parar um bocado e pensar. Neste caso, por exemplo... Eu acho que o nacionalismo é mais uma cena que existe para nos separar enquanto humanos, ao invés de nos unir. Eu adoro que haja diferentes culturas no mundo, mas não pode ser uma linha criada pelo homem a dizer que este é melhor que aquele e deve ser separado. Ainda para mais quando somos todos um pouco de todo o lado. Para evitar cenas, acho que uma pessoa é de onde se sente, ou onde viveu a maior parte da sua VIDA. Acho que não tem nada a ver com ascendência, porque se assim for, que se encontre a pessoa cujos antepassados são todos do mesmo país. Não tenho dúvidas de que não há... porque o Homem não surgiu em vários sítios no mundo ao mesmo tempo. Sei que isto pode ser interpretado de várias formas, mas acho uma boa filosofia para nos termos a todos enquanto irmãos.
                
Mas também é certo que estas minhas ideias vêm de alguém que vive num país que fala a sua própria língua, que é antigo, muito antigo, e que foi ocupado pela última vez há muito, muito tempo. Nem eu nem os meus antepassados que conheço viram o seu país a ser oferecido a outro a troco de interesses, como foi o Saara oferecido pela Espanha a Marrocos em 1975.

Da loja de peixe fomos para outra casa do Bakkar, onde vivia mais ou menos, sendo que, ora dormia lá, ora dormia onde deixara a bicicleta. Dois dos últimos amigos do Bakkar, o Bashir e o Sidahmed, conhecido por Sharon, ficaram connosco para a noite e fomos para casa. O Bashir, vim a perceber, era o homem do cobertor. Mal chegámos, enrolou-se num, enrolou um charro e lá ficou na sua, a ouvir o resto do pessoal conversar. Na noite seguinte fui com o meu anfitrião ter a casa de uns amigos dele, e lá estava o Bashir com o seu cobertor. Mudámos de divisão por causa do fumo de um carvão para chá mal calculado, e ele levou o cobertor. Fomos para casa de outro méne a seguir, e ele não levou o cobertor, mas quando dei por ela lá estava ele! Assim, passámos esse serão a beber chá, leite a resvalar para o iogurte misturada com água e açucar e pão, que molhávamos em azeite. Tive pena de eu e o Sharon não partilharmos nenhuma língua, porque parecia ser um gajo muito porreiro, dado e engraçado. Aliás... às vezes, quando conheço alguém em circunstâncias imprevistas e essa pessoa, contrariamente ao esperado, fala uma língua que eu falo, penso nas experiências, e nas pessoas que estou a perder por não falar... todas as línguas que existem. Estou certo que no futuro haverá um daqueles peixes de Babel como no Guia do Boleiante Pela Galáxia e nos possamos todos entender. E não tenho reservas nenhumas pseudo-puras de dizer que esse tipo de tecnologia retiraria a genuinidade às coisas. Quão incrível seria se, quando aquele pastor de um braço me convidou a mim e ao Joel para casa dele, eu pudesse tirar um aparelho daqueles do bolso, entregar-lhe, e nós podermos falar? É certo que às vezes não é preciso, e basta apreciar o momento e o silêncio... mas preferia que isso fosse uma opção.

1 comentário:

  1. Aquela cena de "vender meteoritos" partiu-me todo! ;) :)

    Encantado com esta tua viagem, vou aparecendo aqui e ali para te acompanhar, sempre!

    Grande abraço.

    Tudo de bom e... poucos furos ;)

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