Terça-Feira, dia 4 de Fevereiro!
O dia de partida! Depois de tantos meses, era aquele o dia em que, finalmente,
ia bazar. Há milhões de anos atrás, quando andava pela Ásia, comecei a
fantasiar com uma viagem do Alasca à Patagónia sem voar. Tinha curtido tanto o
conceito de longas viagens por terra que queria continuar. Depois comecei mesmo
a curtir o conceito de “Daqui Ali”, e pensava em ir de Portugal ao Leste da
Rússia, apanhar um barco para o Alasca (se fosse possível, não sei se é), e
depois ir daí à Patagónia.
Mas comecei a pensar... e percebi
que eu queria mesmo era visitar o mundo todo. E África faz parte do mundo,
ainda que às vezes não pareça. Estamos sempre a ouvir coisas assustadoras deste
continente, e supostamente é o mais exigente para se viajar. Ora estas estórias
do quão terrível é deixou-me com vontade de o ir conhecer. Será que é mesmo
assim? Nasceu aí o bicho africano em mim. Não só comecei a pensar em lá ir
porque queria ver se era mesmo assim tão mau, mas também porque se realmente fosse
assim tão difícil, eu queria atravessá-lo o mais cedo possível, enquanto sou
esta pessoa que não tem grandes exigências em termos de conforto, que tem a
estaleca jovem que lhe permite... qualquer coisa. Nem sei se este último
argumento não será uma desculpa esfarrapada, pois só deixarei de ser esse jovem
se me permitir. Mas pode ser que me apeteça, mais cedo ou mais tarde, adoptar
um estilo diferente. Não quero ser refém de mim mesmo e prometer-me que sempre
andarei a viajar em baixo custo, à boleia e a dormir no chão se for preciso.
Neste momento isso faz um sentido enorme para mim, mas não sei o que me
reservo.
Estava então decidido que ia para
África. Mas como? À boleia, claro está. Quando tempo? Um ano. Para dar a volta
toda. Parecia-me bem. Contudo, em Abril, pouco depois de ter lançado o meu
livro sobre as viagens asiáticas, fui a um encontro de viajantes organizado
pelos escuteiros, em que várias pessoas falavam acerca das suas aventuras. Era
num Domingo, e calhava mesmo bem, porque no dia anterior apresentaria o meu
livro na Cineteka do Parque das Nações. A mesma viagem servir-me-ia dois
propósitos.
Com duas horas de sono à pala da
noite lisboeta fui para o Cais do Sodré contar as minhas estórias e ouvir as
dos outros. Foi um dia cheio e porreiro, e tive oportunidade de ouvir o Rafa e
a Tânia a falar da sua viagem de bicicleta de Portugal a Macau. Notava ali algo
de diferente e de apelativo. Depois foi o Idílio falar da sua viagem, também de
bicla, do Canadá à Patagónia. Okay, estava a confirmar-se que algo nascia
dentro de mim. Tinha que dar uma voz interna àquela vontade... “Foda-se, vou
até à África do Sul de bicicleta!”. Não havia volta a dar, estava decidido.
Ainda tinha muito caminho pela
frente. Tinha decidido que ia em Janeiro do ano seguinte, ainda tinha muito
tempo para preparar tudo. Mal sabia que prepararia tudo em três ou quatro dias,
e que partiria, nessa Terça de Fevereiro, a sentir que já ia atrasado.
No dia de partida fui de manhã
com o Santi a Sangalhos buscar uns alforges para trás e o porta-alforges para a
frente à Majori Bikes. Quando cheguei a casa, depois de preparar uns livros
para enviar por correio enquanto o Santi instalava o porta-alforges, e de
almoçar com o meu irmão, chegou o João, o Pipita, o Miguel e a Ausra para me
darem a despedida. Tinha-lhe dito que bazava às onze da manhã. Depois às duas,
depois às duas e meia. Estes amigos ajudaram-me a preparar tudo, desde meter a
luz, a buzina, fazer a mala, instalar o conta-quilómetros, e o meu pai tinha
chegado há meia hora quando eu estava pronto para partir, passava o relógio das
quatro. Da sala a minha mãe expressava a sua incompreensão em eu querer ir
naquele dia em que São Pedro parecia querer castigar os meus pecados. Chovia e
o Vento rugia. O meu pai também não percebia. Aliás, todos me aconselhavam a
ficar. Mas eu tinha que ir! Já queria ter ido na Segunda e não tinha dado. E
queria chegar a Portalegre no dia 10 para o aniversário da Graciete, e as
minhas contas a 40km por dia obrigavam-me a partir naquele dia. Tinha de ir!
Não podia deixar que, logo no primeiro dia, circunstâncias externas a mim, como
o clima, me travassem.
Meti o capacete, vesti o casaco,
meti a mochilas às costas e outro caso por cima da mesma, tirámos umas fotos, e
meti-me na bicicleta. Comecei a deslizar, sorri abertamente para a estrada e
gritei para os meus amigos e família “HASTA LUEGO!!”. Estava em viagem, e tinha
saído da porta de minha casa, o que eu mais queria.
O João tinha dito que o meu pai
ia comigo até Águeda. Pensei que estava no gozo. Mas não só veio até Águeda
como ainda fez comigo o trajecto Figueiró dos Vinhos – Proença-a-Nova e Proença
– Portalegre, de onde agora escrevo. Foi ter comigo à rotunda quem sai de Vale
de Cambra, e já estava eu encharcado. Ora como estava de bicicleta não podia ir
por nenhuma via rápida, pelo que tive que ir pelas terriolas entre Vale de
Cambra e o concelho de Oliveira de Azeméis. O problema de viver num Vale é que
tem, bem... montes. Vários. E isso de bicicleta não é nada fácil. Especialmente
se há rajadas de Vento daquelas que quase nos mandam abaixo da bicicleta, se
está a chover tanto que nos custa conduzir de olhos abertos, se o máximo que já
andámos de bicicleta num dia foi 24km ou se a última vez que fizemos desporto
foi há... olha, parei agora de escrever e olhei para o tecto, enquanto coçava o
queixo a ver se me lembrava. Nada feito. Mas ainda assim lá fui seguindo, com
muito esforço, subindo bastante, quilómetro após quilómetro, com o meu pai
calmamente atrás de mim de carro.
Chegámos à nacional, parei no
semáforo e o meu pai diz-me que “só” faltam 26km. A partir daí, como não podia
vir atrás de mim, ora me ultrapassava, ora o ultrapassava eu. Ele dizia que
vinha caso eu caísse, porque à chuva é mais perigoso e não sei quê, mas acho
que ele quis vir mais por fazer parte deste projecto e para ir dando um lento
“até já”. E no fundo foi fixe. Nesse dia foi fixe porque deu-me outra pujança
para conseguir chegar a Águeda, e noutros dias foi fixe porque foi fixe.
Foi um esforço colossal. Pedalava
com as forças que ia buscar a todo de mim, sentia o cabelo molhado a bater nos
lábios, tinha de cerrar os olhos ao máximo para não me cegar com as gotas
atacantes, o rabo ia-se queixando, as mãos doíam e não podia levantar muito o
pescoço senão tinha uma cãimbra enorme. Às vezes questionava se aguentaria, mas
visualizava a África do Sul ali à frente. Repetia baixinho “África do Sul” e
mandava umas caralhadas e lá seguia, com outra pujança. Quando vi, pela
primeira vez, “Águeda” numa placa comecei aos berros “ÁGUEDA CARALHO!! VAMOS LÁ
CARALHO, TU CONSEGUES!!!”, tanto que fiquei um bocado rouco ao fim. E foi assim
que me fui apercebendo que, talvez até mais do que força física, um desafio
destes requer força mental. Porque iá, eu não tinha preparação física nenhuma,
mas é verdade que me considero muito forte psicologicamente, e isso vai
valendo. “Sabes porque é que conseguiste?”, perguntava-me o João, ao telefone,
chegado eu a Águeda, “Porque és um teimoso fodido!”. Teimoso, forte
psicologicamente... Bem, são termos que por vezes se cruzam...
Entrei por Águeda Norte e passado
dez minutos parava a bicicleta à beira do rio. Tinha conseguido. Sentia um
orgulho fixe. Na verdade, sentia-me um bocado como se fosse o maior. É o que
acontece quando nos propomos a algo, a meio achamos que não vamos conseguir,
mas encornamos e conseguimos mesmo.
O meu pai desapareceu assim meio
de repente. Tinha pedido direcções a uma senhora e havia alguns carros atrás
dele e teve de bazar, nem nos chegando a despedir. Eu perguntei à mesma senhora
onde era a D’Orfeu, onde contava ficar, e lá fui. Aquilo estava fechado e fui
para o Bar à frente, o Johnny 101, à espera do Lima e da Rita. O Lima fazia
anos e vinha de Famalicão buscar a Rita a Águeda para jantar. Eu calhei de lá
estar e calhei de ir.
Deixei a bicicleta lá fora, pedi
um café, e sentei-me, a pensar o que ia fazer à minha VIDA. Estava encharcado,
e poucas coisas na minha bicicleta não estavam do mesmo modo. Pensei em ir ao
quarto-de-banho mudar-me, mas não sabia onde estava nada. De repente lembrei-me
que pedir ajuda aos meus amigos para fazerem a minha mala não foi das melhores
ideias. Como também não sabia das chaves dos cadeados, pedi ao Johnny para
deixar a bicicleta na zona de fumadores do bar, uma parte lá fora, oposto a quem
entra, e com mais que espaço para não dar nas vistas.
- Porquê?... – perguntou com um
sorriso meio foleiro.
- Porque eu não sei das chaves do
meu cadeado. Mas... incomoda-o?
- Incomoda – respondeu. Agradeci
de qualquer maneira, sem perceber muito bem a cena, e voltei a sentar-me.
Entretanto liga-me o Lima a perguntar se eu confirmei com o pessoal da D’Orfeu.
Quando digo que não ele põe-se a disparatar a dizer que aquilo não era um
dormitório e não sei quê. Ora tinham-me dito que dava para lá ficar, eu disse
“Fixe, obrigado”, pensei que fosse isso. Mas não era, e não estavam a contar
comigo, pelo que fiquei sem saber onde ficar. Entretanto chegou o meu amigo e a
sua namorada, e fomos até aos Bombeiros. Perguntei se dava para ficar, que
qualquer local era bom, mesmo o chão, mas disseram que quem estava a receber
peregrinos era a Cruz Vermelha. Para lá fomos. Chegados, disseram que iam ver.
Tive o cuidado de dizer que qualquer local dava, mesmo o... chão.
- Desculpe, mas só temos lugar
para dois peregrinos e já cá temos dois... – responderam, para minha
frustração. Não fiquei zangado, porque não tenho o direito de exigir nada, mas
fiquei um bocado desiludido com a falta de vontade e improviso que o pessoal às
vezes tem.
A partir daí foi ver no couchsurfing,
perguntar a pessoal no facebook, e a opção mais viável parecia eu ficar em
Aveiro em casa doutro amigo. Sempre íamos para lá jantar, assim ficava em casa
do Hugo e no dia seguinte apanhava autocarro para Águeda e seguia de lá.
Estávamos já no restaurante de Sushi com o meu irmão, que veio lá ter, e dois
amigos do Lima e da Rita quando a namorada do meu amigo diz que afinal podia
ficar em casa da Léa. Excelente!
Chegados a Águeda ainda fomos
beber uma cerveja com a miúda. O pessoal bazou e fui para casa da Léa com a
mesma e o Rui, seu namorado (não curto o termo “companheiro”). Ficámos umas
duas horas no paleio a beber chá e cama. No dia seguinte, ainda com tudo
molhado, Coimbra!
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