Já era bastante tarde quando encontrámos o Nicola, que nos esperava na estação do metro. Dissemos os olás e metemo-nos no autocarro, para sair menos de dez minutos depois. O Nicola vive com o Fabien e estão ambos a fazer um estágio profissional cheio de intempéries, desde chegarem lá e afinal não poderem trabalhar onde era suposto, insinuar que eles eram como os franceses imperialistas. Cenas. A experiência deles não estava ser do melhor, tanto que tinham um calendário na parede, tipo contagem decrescente para a altura de bazar. Pá mas também é certo que, pelo que me apercebi, não socializavam de todo com outra malta... e isso não ajuda.
O Nicola é robusto, usa óculos e tem duas tatuagens, uma enorme de um ragão na canela e outra de uma fénix no ombro. Talvez tenha sido o destino, porque eu andava já há algum tempo com a ideia de desenhar o mapa mundo no meu antebraço. Palavra puxa palavra combinámos ir ao gajo que o tatuou. Parámos para almoçar no sitio onde eles sempre iam e que ia fechar nesse mesmo dia, apanhámos o autocarro, metemo-nos por um mercadito adentro, e chegámos à loja, um espaço com menos de quatro metros quadrados. Quando finalmente conseguimos imprimir a imagem, o gajo disse que não ia dar no braço com o tamanho que eu queria, demasiado detalhe e não sei quê. Pensei então em fazê-la no tronco, de lado. Acordámos um preço (ele pediu oitocentos yuan, acabei por pagar setecentos – em Portugal seria pelo menos cento e cinquenta euros, sendo que tenho tatuado no antebraço apenas as letras LFDY e custou setenta euros há quatro anos). Quando o gajo parou para descansar o braço tive a ideia de tatuar também, por baixo do desenho, “made in china”, em chinês. O resultado final foi muito porreiro, apesar de alguns erros que poderiam muito bem ser evitados caso o gajo olhasse para o mapa de vez em quando. É que primeiro ele passa um marcador no papel, e cola depois o papel à minha pele, deixando as linhas por onde ele tem de seguir. Mas é uma zona delicada, por isso às vezes difícil. Mas paciência... o gajo, talvez numa mensagem subliminar a apoiar um mundo mais unido criou pequenas pontes terrestres entre o Japão e a China, a Noruega e os países bálticos e a Grã-Bretanha e a França. Mas não me importo.
Quando saímos esperámos um pedaço pelo Fabien e jantámos os quatro num restaurante ali na zona onde, por quarenta yuan podíamos comer e beber tudo o que quisessemos. Muito fora do nosso orçamento para refeições, mas que se lixe, era uma excepção. Estivémos lá um pedaço e voltámos para casa.
Seguindo a tendência quase estranha que já se tinha estabelecido, a Lena também estava em Pequim. Tínhamos comunicado pela primeira vez no Camboja, encontrámo-nos no Vietnam, no Laos e fomos albergados pela mesma pessoa em Kunming, na China, por coincidência. Nesse dia em que fiz a tatuagem éramos para ir à Muralha da China. Mas a Lena queria vir connosco, e para nós era indiferente ir nesse dia ou no próximo, por isso esperámos.
Assim, no dia seguinte, encontrámo-nos com ela, o Matty e a Agnes e seguimos, em dois táxis. O Matty era um franco-italiano muito porreiro que estava a ser albergado pelo mesmo anfitrião que ela. Estava numa viagem mundo fora e o seu interesse era as harpas de boca, e o seu objectivo gravar pessoal de diferentes países a tocá-la. Para quem não sabe (porque eu, pelo nome, também não sabia), uma harpa de boca é aquela cena que um gajo põe diante dos lábios, de boca aberta para dar eco, e toca agitando uma peça, de metal de madeira dependendo da harpa. A vibração da peça ecoa na boca e faz ruído. O gajo tocou um pedaço. É mais ou menos. Não me fascina, apesar de me fascinar o projecto do gajo – andar mundo fora a gravar pessoal a tocar aquilo, incrível. Eu tentei e nem um som saiu. A Agnes é uma polaca nascida na Noruega que me contactou no couchsurfing, vendo que eu era um “viajante próximo de ti”. É artista de maquilhagem (não sei como dizer isto em português) e estava na China porque, um mês depois, ia para um mosteiro de kung-fu, onde passaria três meses, com treinos todos os dias, três vezes por dia. Altamente, requer alguma coragem. Se bem que inicialmente a minha ideia foi assim uma cena tipo Kill Bill. Mas não, o sítio é confortável, não é uma cama feita de espinhos de rosas com sida ou vidros de garrafas raivosas – tem internet e tudo. Mas ainda assim, requer uma grande disciplina. E o mais interessante é que aquilo não tinha nada a ver com ela.
- Se calhar ouves isto a toda a hora... mas deixaste-me a pensar pá... – disse-me, alguns dias mais tarde, na internet.
- Fico contente...
- Pois, mas eu não sei se isso é bom... – respondeu.
- Claro que é bom... um gajo se pensar no que anda a fazer e no que quer fazer está numa posição priviligiada para ser feliz... – isto veio porque eu perguntei-lhe, como faço muitas vezes com pessoal com quem já desenvolvi alguma intimidade, por mais pequena que seja, qual era o sonho dela. Ela tinha respondido algo que muita gente responde, e que às vezes me parece uma resposta de quem não sabe realmente. Tipo “continuar a ser feliz” ou “estou a viver o sonho”, cenas assim. Mas eu não sou o juiz do sonho, convenhamos, por isso que é que eu sei?
O Nicola tínha-nos recomendado um sítio que era muito menos turístico do que Bataling, e foi para aí que nos dirigimos. Num taxi fui eu a Lena e o Ilya, e noutro o Matty e a Agnes. Eu e o Ilya tínhamos cortado um bocado na casaca da Lena, verdade seja dita, mais ele do que eu, porque a conhecia melhor. Mas nada do outro mundo. Mas o gajo no táxi estava a ser um bocado duro com ela. A pobre miuda estava a falar do que tinha feito na China e o gajo, ora se ria, ora dizia algo tipo “Pedro, a viagem dela é sempre melhor do que a dos outros...”. Eu tentava mudar um bocado o assunto e dizer na brincadeira “Ilya não sejas mau pá...”, mas foi um bocado desconfortável.
- Pá ‘tás a ser um grande palerma com a Lena, vê se aligeiras um bocado méne... – disse-lhe, depois do almoço.
- É difícil, passámos muito tempo juntos... mas ok, ok, eu vou tentar – respondeu. Isto foi minutos antes de nos dirigirmos para a muralha. Aquela parte era algo tipo Water Great Wall ou uma cena assim. Não demos com o sítio que ele nos disse, mas não interessa, porque curti bués. Não estava à espera de algo tão incrível. Caminhámos um pedaço ao redor de um lago, e apareceu um casal no meio do caminho a cobrar dois yuan para passarmos. Ok, siga. Seguimos caminho, subimos e a dada altura apareceu um escadote para a muralha. Meio sem saber que cena era aquela, subimos. Demais. Ainda hoje não sei se é assim barato, ou se aquilo é uma zona que não está aberta ao turismo mas os locais exploram na mesma... é que tinha um sinal a dizer “esta parte da muralha não está aberta ao turismo” - iá, parece bastante claro.
Foi demais muito devido ao facto de só termos encontrado três pessoas, e andámos ali p’rai cinco horas. Primeiro uns chineses, que fumavam um cigarro no topo de uma torrezita e depois voltaram para trás (não sei antes terem a oportunidade de me ver nu), e depois uma holandesa (cuja nacionalidade adivinhei só de olhar para ela) que também não seguiu muito mais. Caminhámos um pedaço e o Ilya fartou-se e voltou para trás. Não percebo muito bem a cena dele. Quando estámos com mais gente, ele desaparece. Não sei se é de não estar muito à vontade com o inglês, ou que caraças é... Mas paciência, ele bazou e nós ficámos.
O que eu mais curti foi o facto da muralha não estar toda retocada e impecável como me disseram que estava em Bataling. Em alguns sítios estava mauzita, e noutra parte tínhamos de nos agarrar à parede para não cair. Tinha havido um terramoto ou uma simples derrocada e aquilo... não se podia dizer que eram degraus. Também é certo que noutras partes, por mais nova que estivesse, um gajo tinha de se agarrar na mesma – tinha uma inclinação brutal. Se um gajo tropeçava só parava lá em baixo. Curti, claro, o facto de termos a muralha só para nós e curti acima de tudo as vistas que tínhamos dali. Estava nevoeiro, e se isso, por um lado, nos roubava distantes cenários, oferecia-nos um benvindo misticismo. Parámos de vez em quando para descansar, como numa torrezinha das que vão aparecendo periodicamente e onde tirámos umas fotos engraçadas – uma delas eu, nu, de costas, numa posição de yoga cujo nome não sei. Parámos também no ponto mais alto que visitámos e deliciamo-nos com tudo o que nos rodeava. Tirámos mais umas fotografias, o Matty tocou um bocado a harpa de boca. Havia uma ameaça de chuva constante, mas não se materializou em mais do que uns chuviscos.
Voltámos, encontrámos o Ilya e pedimos um chá, depois de alguma consideração devido ao preço. Aqui até eu achei que o pessoal estava a ser mão de vaca à força toda. Era mais a Lena, para ser sincero. O chá para cinco pessoas custava vinte yuan. Além disso o Ilya tinha lá passado p’rai três horas sem consumir nada. E ela queria pedir água quente de graça e copos, e fazíamos nós o nosso próprio chá. Não aconteceu.
Como voltar para casa? Não sabíamos. Não passavam ali táxis. Bem, não passava ali quase nada. Por isso foi com agrado que avistámos um autocarro ao fundo. Corri para a estrada, perguntei se iam para Pequim, disseram que sim (de uma forma não muito convincente), pedi para esperar um bocado, a malta pagou e seguimos caminho. Porreiro, não tínhamos de pagar tanto como tínhamos pago pelo táxi. O pior é que quando o autocarro nos deixou nós não fazíamos a mínima ideia de onde estávamos. E demorámos p’rai meia hora até perceber que tínhamos de apanhar um táxi que nos deixaria na estação do metro que estava a hora e meia da nossa casa. Ainda assim ficou mais barato do que apanhar um taxi da muralha até Pequim... só que demorou muito mais.
Chegámos à estação, despedimo-nos e eu e o Ilya seguimos por uma linha diferente dos demais. Já gostava mais da Lena. Iá é uma chavala um bocado esquisita às vezes e não gosta de indianos, mas não é má de todo. E acho que ela também me curte, pela maneira como nos despedimos – senti que o seu abraço não era daqueles de “iá méne a malta vê-se”.
Quando finalmente chegámos à nossa estação, encontrámos o Nicola, como na primeira noite, mas desta feita por acaso. Voltámos para casa e passámos o serão à conversa e a ver uns episódios de uma série nova que o Nicola me tinha apresentado. Eu também fiz alguma pesquisa sobre o visto russo. E pronto, caguei-me um bocado. É que eu tinha lido a estória de um gajo que tinha arranjado o seu visto de trânsito russo, na Mongólia, em quatro dias. Mas agora lia outras pessoas a dizer que demorava de dez a catorze dias úteis. Um gajo quanto mais procurava mais encontra cenas para se lixar. Ora era tarde demais para eu tomar a opção fácil de ir de comboio até Erlian, na fronteira da China com a Mongólia. Por isso o melhor cenário era: sair de Pequim no dia seguinte, quinta, e chegar a Erlian, à boleia, no mesmo dia, setecentos e tal quilómetros depois. Na sexta de manhã pedir o visto mongol, ir buscá-lo à tarde, meter-me à noite num comboio para Ulan Bator, onde chegaria sábado. Se pedisse o visto na segunda, dia dezanove, tinha três ou quatro dias úteis. Má onda. Pá e completamente evitável. É que não precisava de ter passado quase um mês na China. Que cena. Será que me estava a tentar sabotar? Será que, algures dentro de mim, queria fracassar? Não sei. Claro que não queria, mas parece uma cena tão simples, que tem de haver uma razão pela qual eu tinha deixado escapar tal pormenor. Claro, muita informação diferente, muito do não-saber característico de uma viagem assim. Mas de todo o modo, foda-se...
Acordei no dia seguinte, e ainda tratei de algumas cenas antes de bazar. Tinha dormido no chão e não precisei de despertador para madrugar. Não me sentia muito positivo. Mal sabia eu que essa sensação se confirmaria... É que era uma grande esticada, e pelo que tinha visto no mapa, as estradas pareciam meio merdosas. Além disso, dessa vez estava a boleiar porque realmente precisava, não porque queria poupar guito e ter uma experiência porreira. E finalmente, dessa vez, eu também precisava de chegar no mesmo dia a um sítio, ao contrário das outras vezes, quando era mais “ah que se lixe, se não chego hoje, chego amanhã”. Que aconteceu? Em vez de chegar a Ulan Bator no sábado, que era o melhor cenário, cheguei terça...
catorze e vinte e um-quarta-vinte e oito de setembro de dois mil e doze
algures entre Ulan Bator e Moscovo
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