domingo, 2 de outubro de 2011

Pequim I


Chegar a Pequim não foi tarefa fácil, não foi não senhor... Tanto que só chegámos no dia seguinte. Teria sido a minha maior esticada de sempre, se não tivessemos dormido pelo meio um par de horas, daí, de certa forma, tornando a viagens numa de duas etapas. Muito técnino, eu.
               
No início até correu bem. Contrariamente ao que tinha acontecido em Chengdu, quando apanhámos um táxi e ainda assim tivemos de caminhar bué, desta vez o táxi deixou-nos mesmo à beira das portagens. E outra cena fixe foi que, contrariamente a outras vezes, deixaram-nos entrar a pé na autoestrada, em vez de nos “obrigarem” a aceitar a ajuda alheia. Não tardámos muito a arranjar um carro que nos levasse. E assim fomos andando todo o dia. Mas eis que São Pedro pensou algo tipo “estes gajos andam com muita sorte, vamos dificultar a cena um bocadinho” e brindou-nos com um chuveiro divino. Ora se na Europa eu tinha tido a impressão que até é melhor boleiar com chuva (o pessoal sente-se mais solidário), na China é precisamente o contrário. Um carro deixou-nos ali em Leça de Algures, e quando um gajo está molhado às tantas o chinês teme pelo eventual dano aos seus estofos. Foi frustrante pá. Após uma hora de polegar esticado, tentámos noutro sítio. Estávamos na autoestrada mas perto da entrada, onde os carros iam mais devagar. Assim, caminhámos pela entrada, fomos desembocar a outra autoestrada (em vez daquelas estraditas simpáticas que só servem de acesso) e metemo-nos debaixo de uma ponte. Outra vez um grande pedaço. Ainda pararam dois ou três, mas não iam na direcção de Pequim.
               
Mas pronto, um gajo arranja sempre, espere dois minutos ou duas horas. Apareceu este senhor, que até falava inglês, mas que ainda assim nos levou enganados. É que o caraças do gajo saiu da autoestrada. Eu perguntei e perguntei, e após derrubar-mos algumas barreiras na comunicação percebi que ele nos queria levar à estação de comboio. “Ai que já mafodes-te”. Ou seja, o que este senhor fez, por melhores que as suas intenções tivessem sido, foi levar-nos de um sítio mau para outro pior. Lá saímos do carro nas portagens, meio embaraçados porque sentia que o senhor assim se sentia, e tentávamos caminhar para a entrada, quando, como noutras vezes, as senhoras não nos deixaram passar. E foi o circo do costume. Vem um, vem outro, leêm o papel, chamam outro, eventualmente dizem para esperarmos que nos ajudam. Esperamos, depois dizem que vem aí a polícia para nos ajudar. Já deu para perceber que quanto menos envolvimento com a polícia, para mim, melhor. Por isso não curti muito a ideia, mas paciência. Uma das senhoras falava inglês e disse que podíamos esperar no prédio ali ao lado das portagens que parece ser tipo a sua base. Lá fomos, o Ilya tomou um banho, trouxeram-nos o almoço, tudo muito porreiro, não me posso queixar. Depois apareceu a polícia, pediu-nos os passaportes, tomaram lá umas notas, tiraram umas fotografias... primeiro apareceram com uma máquina digital, compacta. Depois uma maior. Depois uma câmara de filmar das pequenas. Quando dei por ela já estavam a montar um tripé onde assentariam outra ainda mais imponente. Cenas. Mas também os filmei a filmar-nos um bocadito.
               
O tempo passava e a ajuda prometida sismava em não aparecer. Tanto que, após muita negociação, a senhora deixou-nos avançar um bocadinho e ficar ali na saída que ia para Pequim. Ou seja, tínhamos perdido quase duas horas quando podíamos ter feito aquilo logo de imediato. Caminhámos com pressa até desaparecer do campo de visão deles, demos uma mija, e passado dez minutos estávamos num carro. Estes dois homens levaram-nos p’rai uma hora, até que parámos numa estação de serviço. Eu não estava com fome, mas eles quiseram pagar outra refeição, e não disse que não. Estes cotas deixaram-nos lá. Pelos vistos iam sair na próxima. Já era tarducho.
               
Esperámos um pedaço, apanhámos uma e outra até que, já o sol tinha ido dormir, deixaram-nos numa estação de serviço às onze e tal. A autoestrada estava bloqueada, por isso todos os carros e camiões tinham de passar por nós. Parece fixe não parece? Não foi. Era uma confusão tremenda, demasiados carros e barulho, mesmo que um gajo quisesse parar, tinha de se esforçar imenso para não bloquear o trânsito ou levar umas apitadelas. Nada cool. Andámos ali feitos pascácios p’rai uma hora, e percebemos que aquilo não ia dar. Lá p’rá uma da manhã fomos tentar a nossa sorte na estação de serviço. Bem foi uma grande treta aquilo, digo já. Andámos lá todos cheios de sono de um lado para o outro, e íamos sendo interpelados pelo pessoal que lá trabalhava. Queriam ajudar, ok. Mas ajuda como a que tínhamos tido no mesmo dia não era exactamente abençoada. Mas um gajo tem um limite. E quando nós alcançámos esse limite acedemos. Bem, o que nós percebemos foi que nos devíamos sentar lá dentro e que iam arranjar-nos uma boleia. O que é que aconteceu? Entrámos, sentámo-nos, “dormimos” duas horas até que o sol nasceu e voltámos para a saída da estação de serviço.
               
Apanhámos três ou quatro boleias, fomos seguindo e depois apanhámos boleia de um cota meio maluco a conduzir. Os chineses têm a puta da mania de ultrapassar pela direita. Pá e não é que seja assim um anjinho da estrada, mas gosto tanto disso como de cagar alicates. Pois estávamos nós nos belos dos nossos cento e quarenta quando nos aproximamos de um camião. Mas esperar um segundo e ultrapassar pela esquerda? Isso é p’rós cromos. O gajo mete-se pela direita e num segundo eu vejo uma roda do camião, do nosso lado, rebentar. No meu corpo celebrou-se o dia nacional da adrenalina. E se aquilo fosse um carro, em vez de um camião, ia tudo pelo caralho. Mesmo. O gajo desacelarou, emitiu um som qualquer, mas passado uns minutos estava no mesmo andamento.
               
Bem, apesar de tudo deixou-nos mesmo no centro de Pequim. Eu tinha as direcções de uma rapariga que tinha dito que nos podia albergar. Mas aquilo estava tudo uma salgalhada, porque primeiro tinha dito que vínhamos num certo dia, depois no outro, e depois mandei um mail mesmo antes de bazar a dizer que afinal o mais certo era chegarmos quando efectivamente chegámos. Foi por isso mesmo que a miuda acabou por não nos albergar. Ok., ok. Já eram quatro ou cinco da tarde, ela tinha feito outros planos. Os hostels em Pequim eram carotes (o mais barato por cinco ou seis euros), por isso fui dar uma espreitadela no grupo do couchsurfing. Estavam a falar em ir cortiré. Era sábado, por isso disse que sim, só precisava de encontrar um hostel. Uma rapariga respondeu a dizer que podíamos encontrar-nos com o resto na esperança de que alguém acabasse por nos albergar. Aqui eu fui um bocado rato. Expliquei assim por alto a nossa estória, e que tínhamos boleiado a China desde o sul até ali e tal... e como eu esperava, essa mesma rapariga, solidária com boleiantes, disse que nos podia albergar. Cool.
               
Era longe p’ra caraças, mas encontrámo-nos passado uma hora e tal. A Lily também tinha boleiado bastante, daí a solidariedade. Cresceu perto da Coreia do Norte, trabalhou uns anos numa engenharia qualquer, poupou algum guito e bazou por um ano. Andou pelo sudeste asiático à boleia. Agora trabalhava de novo, poupando mais algum dinheiro para se mandar outra vez, desta feita para o Médio Oriente e vizinhança. Curti a miuda e tenho pena de que não tenhamos passado mais tempo juntos. É que no dia seguinte ela disse que só nos podia albergar mais essa mesma noite porque aparentemente a cota vizinha se tinha queixado do barulho...
               
Nessa noite, a nossa primeira em Pequim, estávamos na dúvida entre ir ter com o resto da malta do couchsurfing ou ir jantar ali ao lado. Mas a prima da Lily, de vinte e dois anos, também estava connosco, e se fôssemos ter com o pessoal, ela não podia vir. Porque supostamente a Lily tinha de tomar conta dela. De uma chavala de vinte e dois anos que, descobri mais tarde, nunca se tinha emburraxado e era virgem! Pá entendo, é a cena chinesa, mas é espantoso, para mim. E até tenho um bocado de pena... porque é um adiar de bons prazeres da VIDA. O alcool nem tanto, porque por vezes não é exactamente o nosso melhor amigo. Mas de qualquer maneira, acho fascinante esta diferença cultural.
               
Outra cena chunga em relação à prima dela não poder vir connosco, é que tinha acabado de chegar. Pá eu confesso que não estava muito preocupado com isso. Tinha só um sábado em Pequim, curtia ir ver o que se passava. Mas o Ilya sugeriu irmos jantar ali ao lado, e eu percebi que eu era o único que estava mesmo filadinho. Mas foi fixe, curtimos na mesma. Jantámos espetadas, p’rai dez mil, bebemos não sei quantas cervejas e no final pagámos p’rai sete euros no total.
               
- Posso beber mais uma cerveja? – perguntava a Lily de vez em quando.
- Pá eu não sou teu pai... – eu respondia. Mas se calhar devia ter dito “não”. É que a miuda passou o dia seguinte todo na cama, de certa forma dando razão ao parágrafo ali em cima onde digo que o álcool nem sempre é o nosso melhor amigo.
               
Depois de jantar ainda ficámos à conversa a beber mais umas cervejas sentados no jardim do seu prédio até o sol raiar. Foi uma noite porreira, apesar de não nos termos entregue verdadeiramente à cidade.
               
No dia seguinte andámos por Pequim um bocado. Acordámos tarde, fomos até à Praça Tianamen, fomos até à cidade proibida mas não entrámos, porque estava a fechar. Demos mais umas voltas, jantámos, e voltámos para casa. Passei a noite de volta do meu comboio para Moscovo. Estava mau, aquilo. Segundo o Ilya, não havia lugares disponíveis no comboio de Ulan Bator para a capital russa. O que era mau, muito mau. Havia alguns do Casaquistão, e isso ainda me passou pela cabeça. Mas tinha de me mandar num instante para Urumqi, cidade chinesa perto do país do Borat, pedir o visto, esperar seis ou sete dias úteis, depois chegar até Astana... não, não ia dar. Se tivesse todo o tempo do mundo dava, sem problema. Mas se tivesse todo o tempo do mundo também podia ir até à Mongólia, ver se dava, e depois voltar para trás...
               
Na manhã seguinte encontrei o número de uma agência de viagens e perguntei acerca dos bilhetes. A senhora disse que havia, o que era óptimo, mas que eram duzentos e sessenta dolares. Ora eu tinha lido acerca de um gajo que tinha pago duzentos e vinte uns meses antes. Claramente os quarenta dolares eram comissão. O que eu entendo, claro, mas era um bocado pesado. Então, por razões que não entendo, decidi esperar e não disse à senhora para comprar os bilhetes até alguns dias mais tarde.
               
Nesse dia fomos ao Summer Palace. Adorei. Incrível e gigantesco. O Ilya não partilhou da mesma opinião. Andava a arrastar-se e a criticar o facto de termos de pagar para ver algo – não pelo preço em si mas pelo princípio – e eu sugeri que nos separássemos e nos encontrássemos duas horas depois. Iá, devia ser grátis, engloba um lago e um monte porreiro, e muitas outras cenas. Devia, mas não é. Mas já que não é não é, que se lixe, acho que não deve impedir-nos de curtir. E eu curti.
               
O resto do dia foi irmos buscar as nossas cenas a casa da Lily e irmos ter com o Nicola, o nosso próximo anfitrião, que vivia a quase duas horas do centro. O Ilya estava com a paranóia de que a cota do outro quarto no apartamento da Lily não tinha dito nada e que a miuda simplesmente não nos queria albergar. Mas não tive essa impressão de todo.
               
Bazámos, metemo-nos no metro e passado um montão de tempo encontrámos o Nicola.

dezanove horas-terça-vinte e sete de setembro de dois mil e onze
algures entre Ulan Bator e Moscovo






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