Uma boa surpresa foi que não tive ressaca nenhuma. Nem dessa vez nem das outras duas que bebemos. Não sei se é pelo frio, não faz grande sentido. E que frio. Tinha o meu próprio saco-cama, onde se está confortavelmente com quinze graus (ahahah) e o do hostel, que era mais robusto mas cujo fecho resolveu tirar férias. Acho que adormeci ainda a tremer, mesmo com os dois sacos-cama. E para quem já levava uma tosse valente, provavelmente gentil oferta do Mike, isto não foi muito bom.
Mas como disse, no dia seguinte, nada de ressaca. Nem ressaca nem bebedeira, para dizer a verdade, mas um gentil toque, mais um passe longo recebido com o peito do que um remate de primeira fora da área que bate na trave e acaba por entrar.
No terceito dia iamos dar uma caminhada por um vale cujo nome não recordo, mas como não chegámos a tempo, acampámos lá perto e fizemos a caminhada no dia seguinte.
estou neste momento na minha cabinezinha (toda só para mim) do trans-siberiano e as mulheres que tomam conta do comboio reuniram-se ali no quarto da que toma conta do meu vagão. ia dizer “picas”, mas não é bem o mesmo. estão ali em euforia, às gargalhadas. cá para mim a bruxa má do meu vagão conta o episódio sexual que teve com o passageiro indiano... três vezes. como é que eu sei disto? porque ele disse-me, e eu vi-os depois a darem um beijo. o gajo malhou quatro gajas em duas noites, eu posso confirmar duas. cada uma pior que a outra.
Assim, montámos as nossas cenas, e estávamos dentro dos saco-cama lá prás oito e tal. Cedo, cedíssimo, mas estava um grizo terrível e não havia grandes alternativas. O Alberto adormeceu primeiro e eu e o Nico ficámos um par de horas à conversa.
No dia seguinte fizemos a caminhada através do vale, que curti muito. Tivemos como companhia durante todo o percurso um cão que andava à caça de uns ratos parecidos com esquilos muito engraçados. Só apanhou um, o pobre.
- Hei, olha p’ráqule passarinho – alguém exclamou, apontando para um pássaro engraçado que estava aleijado numa asa e não conseguia voar. – Não... não, olh’ó cãooooo – e pronto, o cão também caçou um pássaro. E eu que o queria apanhar e fazer dele a nossa mascote...
Quando estávamos a sair do vale demos com uma cercazita que proibia carros de entrar. O Puntzca, com a nossa carrinha, esperava do outro lado. Sentado na beira da estrada, à nossa esquerda, estava um senhor a esculpir em madeira a tentar vender a peça. À direita, mais ao fundo, vi algo um bocado surreal. Estava um xamã, com um tambor, às voltas, como que a auto-induzir-se um estado de transe. Encostava o tambor à cabeça e, batendo-lhe com o bastão, dava um sem número de voltas até que parou, duas ou três pessoas aproximaram-se, deram-lhe algo para se sentar, e sentaram-se à sua volta. Depois escutavam com atenção ao que o gajo dizia com uma voz um tanto ao quanto demoníaca.
- Uma pessoa daquela família está doente. Então eles trouxeram um xamão do norte para canalizar os espíritos da montanha – explicava a Hu aos cínicos Pedro e companhia, que pensavam que era uma cena para turistas. Havia ainda outro xamã, a fazer a mesma cena, uns metros ao lado e com outro grupo de pessoas.
Dormimos essa noite numa ger. O Daniel introduziu um novo jogo, que eu já tinha jogado quando era mais novo, mas de que já não me lembrava – o “Desconfio”. Tornou-se o jogo de elite e jogámos o resto das noites. Nessa noite tínhamos comprado vodka também e talvez por isso mesmo ficámos entretidos até às três da manhã. As miudas foram as primeiras a ir dormir, depois o Alberto, e ficámos eu, o Nicolas à conversa. O Danny é uma pessoa um bocado diferente dos argentinos. Oa argentinos são um par de pessoas muito interessante, divertidos p’ra caraças e com uma cultura impressionante. Seja futebol, política ou arte, um gajo pode falar horas e horas com eles. O Danny, apesar de também ser um gajo muito informado é, em alguns aspectos, uma pessoa mais profunda e introspectiva. Curti mesmo o miudo e acho um desperdício que quando volte à Alemanha vá estudar engenharia electrotécnica. É que não tem nada a ver com ele. Sem ofensa para os engenheiros, mas um gajo estuda, entende as cenas, e faz o que tem a fazer. E apesar de não ter dúvidas que ele venha a dar um bom engenheiro, sinto que o puto teria um futuro muito mais profícuo e feliz numa área onde pudesse dar aso ao seu lado humano e até, natural, digamos. Ele tinha trabalhado no Camboja numa cena que envolvia fazer mergulho quase todos os dias, e eu reparei, na semana passado juntos, que sabia bués acerca da natureza e animais. Mas oxalá esteja errado e ele, uma vez começando a trabalhar na empresa do pai, seja um engenheiro genial que traga grandes contributos para o mundo, e que seja feliz. Quando lhe disse isto reparei que era algo que já lhe tinha atravessado a mente. Várias vezes.
No dia seguinte fomos andar de camelo. A ger onde tinhamos acampado era da família da Hu. Tinham sessenta camelos e várias centenas de cabras. Para minha surpresa, um camelo custa à volta de quinhentos euros. Pensei ser mais. Fomos com a mãe da Hu. Curti, mas três horas e tal foi mais que suficiente. É giro e tudo mais, mas passado um bocado é sempre o mesmo – andar p’rá frente. E se o meu corpo tivesse um livro amarelo o meu cu extreá-lo-ia nesse dia. As minhas pernas seriam daqueles que fica a pensar se se deve queixar ou deixar p’ra lá isso.
- Que paravalhões... vá, pessoal, a senhora está a ficar chateada, parem... – disse a Romina a dada altura, depois de eu instigar o pessoal a corrermos um bocado. Iá é certo que a senhora, de cada vez que tentávamos correr um bocado, resmungava umas cenas quaisquer em mongol, mas não estávamos exactamente a ser uns... parvalhões. Só que é essa a cena da Romina, tem pavio curto e não alinha muito em brincadeiras. A cena é que os camelos quando vão a descer, por mais subtil que seja a descida, começam a correr um bocado. Então nós aproveitávamos e faziamo-los correr um bocado, para ser mais divertido. Mas nada do outro mundo, a senhora mandava parar e parávamos. Passados dez metros.
- Pergunta à tua mãe se fomos muito chatos – pedi à Hu, no final.
- Ela diz que os rapazes portaram-se bem – fixe. Talvez tenha dito isto porque a Jenny, depois de almoçarmos, entrou em pãnico quando estava a tentar subir para o camelo e ele se levantou a meio. Gritou “help!” como de uma forma que parecia que alguém a estava a agarrar pelos mamilos e se a largasse ela caía da Torre das Antas. E eu, na minha imensa bondade, fui tentar ajudá-la e agarrei-a pela cena onde se enfia o cinto nas calças, e ela diz para não a agarrar nas calças. Enfim. Já a Romina teve alguns problemas com o seu camelo, que pensava que aquilo era uma tour de degustação das ervas locais, e por isso parava a cada cinco metros para um snack. Resultado, a mãe da Hu teve de ir com o seu camelo e a conduzir o da Romina também.
Passámos essa noite, claro, a jogar cartas. E a beber uns copos. Quando demos por ela eram três da manhã.
No dia seguinte fomos ver os flaming cliffs, “descobertos” pelo mesmo gajo que descobriu, ali no Deserto de Gobi, que os dinossauros afinal de contas punham ovos. Foi fixe, claro. O argentinos mal pararam, e eu ia com eles, mas ouvia aquela voz dentro de mim que me dizia que se calhar nunca mais lá voltava.
- Pessoal, vemo-nos mais logo – disse, e deixei-me ficar para trás. Deixei-me perder-me naquela imensidão, e quedei-me com o olhar preso no infinito e o pensamento em todo o lado. Viajei. Encontrei o Danny, separámo-nos de novo.
Demorei p’rai uma hora e tal a voltar, quando aquilo parecia que era meia horita. Quando cheguei estive sentado com os argentinos, eles a dizerem-me o que me dariam a provar quando os fosse visitar à Argentina. Durante o jantar tentámos decidir o que faríamos no dia seguinte. Havia a opção de irmos para norte mas fazermos só meio caminho, na descontra, e tentarmos encontrar uma família que nos deixasse andar a cavalo (mediante um preço, claro). A outra opção era acordarmos cedo, conduzir o dia todo, e no dia seguinte, antes de voltarmos para Ulan Bator, irmos a um parque enorme onde poderíamos, eventualmente, ver cavalos selvagens. A Jenny estava a dizer que era o único sítio no mundo onde se podia ver cavalos selvagens.
- Tens a certeza? – perguntei, a pensar que podia jurar que no Gerês também há cavalos selvagens.
- Tenho cento e dez por cento de certeza – respondeu a texana. Eu não disse mais nada.
As miudas estavam muito a fim de irmos para os cavalos selvagens. Eu estava naquela, mas depois de ouvir a Hu a outra opção de andar a cavalo não era certa, achei que preferia ir ver os cavalos selvagens, ainda que isso, também, não fosse garantido. Lá decidimos visitar esse parque onde se vêem os únicos cavalos selvagens do mundo. Nessa noite... jogámos cartas.
E assim de repente estávamos no nossa última noite... Acordámos cedo, e conduzimos o dia todo. Mas passou-se bem. Parámos para almoçar na vila do Puntzca, em casa de quem almoçámos, comprámos umas bebidas p’rá noite de despedida e seguimos caminho. À noite acampámos já perto do parque. Juntámo-nos todos na nossa tenda e passámos lá o serão, até que as miudas foram dormir. O Danny passou p’rai meia hora, dentro da tenda, onde estava toda a gente, a tentar reparar um isqueiro porque queria fumar e era o único que tínhamos. No dia seguinte, a Jenny, que estava dentro daquela tenda de metro e meio por metro e meio enquanto o Danny falava em como gostava de ter um isqueiro, disse que tinha um. No dia seguinte.
No último dia, lá fomos ver os cavalos. Foi fixe. É aquela cena... tínhamos visto cavalos que bem que pareciam selvagens no primeiro dia. Que diferença haveria entre esses e os que veríamos no parque? Saber que eram selvagens, só isso. Mas ainda assim foi fixe. Tivemos sorte e avistámos logo um grupo. Aproximámo-nos com cuidado e estivemos p’rai a sete ou oito metros do grupo. O macho estava lesionado, pobre coitado, e não conseguia caminhar muito bem. Depois foi voltar à carrinha, almoçar, e ala para Ulan Bator...
treze e quarenta, quinta, seis de outubro de dois mil e onze
algures entre Riga e Vilnius
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