Passei noventa e três horas naquele comboio. E foi fixe, muito fixe. Ainda não sei se aquilo era o transsiberiano, ou um outro comboio que atravessa a Sibéria. Mas isso não faz muito sentido, pelo que acho que a primeira opção é a mais provável.
Acordei de manhã cedo, fui mandar uns postais e comprar alguma comida para levar. Depois caminhei até à estação, onde cheguei p’rai uma hora mais cedo. Esperei a ouvir música, e quando chegou a altura, entrei. Olhando para o meu bilhete, fui dar a uma cabine onde estava sentado um gajo com aspecto de indiano. Era bengali e não ia viajar – era amigo de um indiano que entretanto aparecera. Eu estava deitado na cama de cima e eles dois mais outro méne estavam sentados em baixo.
- Queres vodka? – perguntou o indiano. Não disse que não e dei uns goles. Entretanto apareceu uma rapariga toda ofegante com uma garrafa de vermute. Deduzi que era uma prenda de viagem ou uma cena do género. Mal o comboio arrancou apareceu a pica a pedir para ver o meu bilhete. Mas não pediu para ver se eu tinha realmente um bilhete, como um pica normal, mas porque, não sei como, sabia que eu me tinha enganado. Antes de entrar no comboio tinha-lho mostrado, e ela deve ter decorado. Assim, disse xau ao indiano, que disse que eu podia aparecer quando quisesse, e fui para a minha cabine, três ou quatro cabines acima. Lá estava uma senhora mongol, que ia também em baixo, na cama ao lado da minha.
Fui-me entretendo com o computador e cenas do género, e passado p’rai três horas fui esticar as pernas. Entre as cabines encontro o indiano, e uma mulher com aspecto de ser mongol, a fumar. Estavam os dois bêbedos, mas ela estava completamente fora, mal se aguentava em pé. O gajo aguentava-a, de vez em quando davam uns beijos, uma situação caricata pá, e um bocado horripilante. Ver duas pessoas de meia idade aos beijos a um metro de mim quando a gaja mal se aguenta em pé não é muito cool.
- Queres ficar com esta mulher? – perguntou-me o indiano, para levar a extremos a falta de fixeza daquele momento.
- O quê? – perguntei, meio incrédulo.
- Ficas com esta, podes fodê-la. Eu já a fodi e agora quero tentar com a outra.
- Hei pá, não, a sério, obrigado, eu estou bem – respondi, meio desconfortável. E a cena é que o gajo parecia surpreendido pela minha resposta, como se recusar uma queca fosse algo que eu tinha inventado na hora.
Algumas horas mais tarde, estava eu sentadito no corredor perto da cabine dele, a carregar o telemóvel, quando o gajo me chamou para a cabine dele. Lá fui, sentei-me num cantito e comi umas sandes de presunto com dois ou três copos de vodka. Ele voltou a sugerir eu malhar a outra e nesta altura eu disse que não estava disponível, e ele aligeirou, mas não muito. E apesar da minha recusa, não passei sem ver a teta da gaja. Devíamo-nos estar a aproximar da fronteira, e a mulher, num rasgo de inteligência tentar “esconder” uma caixa de perfume debaixo do soutien. E eu ali a presenciar aquele espetáculo de peles. Assim, chegou em boa hora a pica, que como se eu fosse um puto que tinha ido p’rá carteira de outro menino, me levou de volta à minha cabine. Esta pica sofria daquela enfermidade que afecta tanta gente, chamada de Tromba Gratuita. A Tromba Gratuita é uma doença que se apanha geralmente quando se passa dos vinte e tal anos. Há pessoas, pobres, que já nasceram com a tromba. Têm um caso de Mete-Nojo enquanto são chavalitos, que depois se desenvolve e se torna em Tromba Gratuita. Os sintomas desta doença vão desde a queixa contínua, a falta de habilidade em sorrir e, basicamente, intimidar toda a gente ao seu redor porque o pessoal pensa que a qualquer momento pode sair um berro. Tem cura, mas é difícil. Para algumas pessoas a cura está relacionada com uma ida à praia, para outras com fazer desporto, para outras é aceitar a sua homossexualidade e para outras pode ser uma coisa tão simples como caminhar à chuva. Há um sem número de possíves curas, mas isto é tanto um bom sinal, como um mau sinal. É que como a cura é tão diversa, o pessoal não sabe qual é a sua, e acaba por não se esforçar em procurá-la. De todo modo, o primeiro caso é uma análise da necessidade da tromba e dos efeitos que tem. Boa sorte.
Agora quando eu, dois dias mais tarde, descobri que o indiano também tinha malhado a Tromba Gratuita, passei-me um bocado.
- Já malhei quatro gajas – disse-me, ao segundo dia. Eu acreditei. – E tu?
-Eu não malhei nenhuma... p’ra dizer a verdade não estou interessado sabes...
- Tenta com a pica...
- Não pá, não estou à caça. E mesmo que tivesse, aquela mulher é horrível! – disse.
- Eu malhei-a ontem. E hoje – respondeu. Eu tive a oportunidade de confirmar, mais ou menos, isto. Ele estava a preparar-se para ir embora, e vi-o a enfiar a cabeça na cabine da mulher, e ouvi um beijo. Depois disto, a mulher diz-lhe algo, ele segue-a até à sua cabine, e ela diz algo tipo “isto está sujo” ou assim uma desculpa esfarrapada para entrarem os dois e fecharem a porta.
Mas voltando à primeira noite... depois da mulher me levar p’rá minha cabine, a senhora que dormia ao meu lado pediu-me para a ajudar. Queria que eu lhe levasse sete ou oito pares de meias. Pensei um bocado, disse ok. Não é uma cena que se deva fazer, se um gajo quiser ter cuidado com isto e aquilo. Mas que se lixe, a mulher precisava de ajuda, meti as meias na mochila, apalpei para ver se tinha outras cenas, tudo ok.
O divertido foi quando atravessámos a fronteira para sair da Mongólia. Disse divertido? Queria dizer stressante. É que a polícia vem ter comigo, normalmente, e pedem-me o papelito de entrada na Mongólia, que eu já não tinha. Não é grande problema. Mas não sei porquê, pediram-me para abrir a minha mochila grande. Tirei-a da bagageira, abro-a, e vejo um saco de plástico que não conhecia. Por um segundo ainda pensei que o Mike me tinha posto uma surpresa ali ou uma cena assim. Mas pego no saco, e estava cheio de calças. Depois outro, depois outro. Tinha três ou quatro sacos cheios de roupa que alguém tinha enfiado na minha mochila.
- Isto não é meu... – disse eu, já a pensar que ia ter de ficar ali ou de pagar uma fortuna para as taxas daquilo.
- Não é seu? – perguntou a mulher, enquanto tirava os sacos todos e os escrutinava. Para surpresa minha, depois de os tirar a todos, pousou-os algo descuidadamente na cama do lado, e bazou. E não a vi mais. Não se importou com cena. Mas eu não sabia que ela não voltaria, por isso aproveitei para devolver o saco de meias que a outra me tinha dado. Não queria mais stresses.
Pois estava eu já recostado, convencido de que não haveria stresse, quando aparece quem? Nada mais, nada menos, que o dono das cenas. Diz “sorry, sorry” e põe-se ali de joelhos a dobrar a sua roupinha que nem uma Maria que vai p’rá praia de Espinho. E pousa as cenas na minha cama e tudo. Eu dou-lhe um pontapé e digo-lhe “no good, no good” mas o gajo nem olhou para cima. Enfim, cenas.
Depois disto estivemos parados um bom bocado enquanto a minha colega de cabine vestia tanto quanto podia de tudo o que trazia. Aquilo era camisolas nas mamas, casacos no cu, meias nas pernas, tudo! E quando acabou a prova de roupa pediu-me, mais uma vez, para eu lhe levar as cenas. Ok, ok, lá levei aquilo. E foi na boa. Tinha pensado em pedir-lhe um par de meias, mas achei que era um bocado foleiro, porque eu não tinha feito aquilo para ser recompensado. Foi por isso que com agrado recebi o par de meias que me deu na mesma, apesar de não ter pedido nada. E pouco depois disto, ela pegou nas suas malinhas e bazou. E não apareceu mais ninguém na minha cabine. Demais, a cabine toda para mim nos quatro dias de viagem.
O resto dos dias foram dias de pás, sossego, água quente, filmes e séries, escrita, e corridas para ir comprar comida. É que a pouca comida que levou assemelhava-se excessivamente a comida de gato. Não sei se já referi isto aqui, porque estou a escrever este texto em dias diferentes, mas eu comprei aquela cena que eu pensava que era salsicha e acabou por ser pate para cães ou uma cena assim. Ou pelo menos assim parecia. Mas lá marchou.
Apesar de não ter nada para fazer senão o referido, não me senti aborrecido nem apanhei seca. Aliás, curti aquela rotininha. Foi como escapar de tudo, estar quatro dias absolutamente incomunicável (deixei o meu telemóvel no Laos), escrever, ver filmes, olhar pela janela, ler de vez em quando. Curti pá. Sofria um bocado com os preços europeus, mas tudo tranquilo. Ia gastando menos de cinco euros por dia para comer, e bebia água quente que estava no corredor para chás, à socapa. É que no primeiro dia a mulher pediu-me um euro. Quando eu perguntei para quê ela disse “chá, café...”. E eu, claro, disse que não queria. Acho que ela se referia a essa água, o que é estúpido, de certeza que isso é grátis, a bruxa má é que se aproveita. De qualquer maneira, acho que aquilo para mim acabou por ser como uma brincadeira para me entreter. Isto porque tinha de primeiro ir investigar e perceber se estava fechada no seu quarto ou não, e depois ia às escondidas encher o meu copito de água a ferver.
Parávamos mais ou menos, assim em média, uma vez a cada três horas por vinte minutos. Dava para um gajo ir esticar as pernas e comprar qualquer coisa. Pegar no leitorzito de mp3, vestir a camisola, sentir um bocado do frio que se espalhava pela Sibéria.
Quanto às séries e à escrita neste computador, era só ligar a ficha no corredor, enfiá-la debaixo da alcatifa e dava mesmo à certa para estar sentado encostadinho à porta. Se estivesse uma cabine mais abaixo seria mesmo perfeito. Mas quem se está a queixar?
Assim, noventa e três horas depois e alguns fusos horários, cheguei a Moscovo. Como logo no segundo dia não sabia em que fuso horário estava, decidi adaptar-me de imediato ao Moscovita, que tinha quatro horas de diferença com o de Ulan Bator.
Olá Europa, tive saudades tuas, talvez, não sei ao certo...
vinte e uma e sezasseis, segunda, dez de outubro de dois mil e onze
Kaunas, Lituânia
O Mundo tá cheio de Trombas Gratuitas e Bruxas Más! ;) Tem cuidado...porque Pedro D só há um ;):)
ResponderEliminarGrande abraço
Tudo de bom