Na minha cabine ia, em cima, uma senhora mongol que falava inglês. Já tinha os seus quarenta e muitos, mas era bonita. Ia perceber mais tarde que esta senhora era um exemplo do restante. É que, para minha grande surpresa, Ulan Bator é uma cidade onde não é nada raro uma pessoa deparar-se com figuras e estilos femininos esplêndidos. Fora de Ulan Bator (no deserto) não reparei tanto porque o pessoal não se aprontava da mesma maneira, mas também vi muito pouca gente para poder estabelecer um juízo. Outra cena que reparei em relação às mulheres mongois é o facto de não quererem dizer a sua idade. Levam a sério aquela de não se perguntar a idade a uma senhora. Não é que eu tenha chegado sem mais nem menos e perguntado a idade a uma mulher qualquer, mas perguntaram-me algumas vezes, e quando perguntei de volta, silêncio e um sorriso. Interessante.
Quando saí do comboio em Ulan Bator, dei uma olhada ao mapa que tinha copiado no computador e pus-me a caminho o mais rapidamente possível para a embaixada. Mas já era tardíssimo, onze e tal. Não ia chegar a tempo, por isso decidi ir à agência de viagens buscar o meu bilhete de comboio. Fui perguntado ao pessoal e dei com o sítio sem problema. Fala-se muito mais inglês na Mongólia do que na China. Quando cheguei a senhora deu-me o bilhete e eu pedi-lhe para ligar para a embaixada russa a perguntar quanto tempo demorava o visto e quando estavam abertos. Parecia que lhe estava a pedir para dar o filho para adopção. Mas lá ligou. Ela disse que achava que demorava dez dias úteis ou duas semanas, e que abriam às duas da tarde.
Saí, fui à embaixada. Já não podia pedir o visto nesse dia, porque ainda não tinha mudado o bilhete de comboio, e preciso de mostrar os bilhetes todos para pedir um visto de trânsito. Dei duas voltas ao quarteirão enorme onde está a embaixada russa porque não percebia onde era a porta. Não faz sentido que as embaixadas tenham os sinais na língua local, na língua da embaixada e em inglês? É que é daqueles estabelecimentos onde, seguramente, pessoas que não falam nem russo nem mongol iram diariamente...
Quando finalmente dei com o sítio, esperei uns minutos com outro pessoal à porta, e depois entrei. Quando chegou a minha vez, perguntei ao senhor que não conseguia ver por detrás do vidro escuro quanto tempo é que o visto demorava a ser emitido, e ele disse que deviam ser quatro dias, mas não tinha a certeza. O melhor era eu esperar e perguntar ao diplomata. Quatro dias? Isso era demais. Esperei um bocado, meio impaciente, e foi em êxtase que recebi a notícia de que sim, demorava quatro dias úteis, pagando cinquenta dólares, ou até podia ser de um dia para o outro, pagando cem. Demais!
Fui comer qualquer cena de seguida. Benvindo à Mongólia. Se na China tinha uma refeição boa e granducha por menos de um euro, na Mongólia tinha de pagar mais que isso por algum pão e... bem, pensei que tinha comprado atum mas era uma cena qualquer envolta em banha. Horrível, mas a fome apertava, por isso teve de ser.
Ia encontrar-me com o Mike lá p’rás sete da tarde. Segui as suas direcções, dei com o sítio onde devia esperar, e estava sentado tranquilamente na minha mochila, no passeio, quando, à minha frente se abre a porta de um camião que estava parado no trânsito. Vejo lá dentro uma mulher, do meu lado e que tinha aberto a porta, a chorar e a tentar sair, uma outra mulher no meio, e o condutor de cigarro na boca, mão esquerda no volante e a outra a agarrar a primeira mulher que queria sair. Aquilo foi tão estranho que no primeiro segundo pensei que estavam na brincadeira. Mas não, a mulher estava realmente a chorar e o gajo a agarrá-la, a puxá-la pela camisola e a outra mulher a tentar fechar a porta. Que se fechou, eventualmente. Eles iam avançando metro a metro, lentamente no trânsito, e eu estava sem saber o que fazer. Mas queria ajudar a mulher. Pensei em abrir a porta e puxá-la, mas depois o gajo ia sair do camião e ia correr tudo mal. Podia fazer isso e fugir, mas não ia conseguir ir muito longe com as minhas duas mochilas. Senti-me estúpido e ridículo por não cagar nas mochilas – salvar a mulher e fugir. Assim, pus as mochilas às costas e corri para o cruzamento, na esperança de ver um polícia. Avistei um que vinha de cima, corri para ele, apontei para o camião e dei o meu melhor para me fazer entender. O gajo olhou para mim como se eu lhe estivesse a pedir um cigarro e ele só tivesse mais um. O camião passou mesmo à nossa frente, eu apontei para ele, o condutor do mesmo viu que eu o fazia, passou, o polícia disse “ok” e passado uns segundos bazou como se quando eu estava a apontar para o camião estivesse a dizer “quem me dera ter um daqueles”.
Frustrado e com alguma adrenalina a correr no meu corpo, voltei ao sítio. Quando o Mike chegou e eu lhe contei a cena, ele adivinhou que o polícia não faria nada, e disse que na Mongólia violência doméstica é o pão nosso de cada dia. Quanto a violência doméstica não posso dizer mais, porque não vi mais nada. Quanto a violência, infelizmente confirmei o duas ou três pessoas me tinham dito. Em cerca de oito dias na cidade presenciei um episódio de violência quatro ou cinco vezes, e em duas vezes poderia muito bem ter-me tocado a mim. Ulan Bator fica na minha memória como uma espécie de Sin City. Deve ser das cidades com mais bares e discotecas onde já estive, vê-se malta a cair de bêbeda de manhã à noite e a qualquer dia da semana, e há aquela sensação no ar de que tudo é possível.
- O que eu curto aqui é que um gajo pode fazer o que lhe apetece... – dizia-me o Mike – É tipo o faroeste, tudo é possível. Contractos, leis, regras, cenas socialmente correctas... tudo tem a sua própria versão em Ulan Bator – e é verdade. Vale tudo. Até curti a cidade. Apesar de ter pouco para ver, tem esse ar. Claro que tem cenas que pertencem a esse ar que são desprezíveis, como haver um risco elevado de um gajo levar nas trombas sem ter feito nada. Uma vez estava na descontra em casa, fui comprar uma cabeça de alho e um pacote de massa e passei por uns gajos à porrada. Um deles fugiu, outros dois foram atrás. Não o apanharam e quando voltavam, um deles dirigiu-se a mim e empurrou-me, gritando qualquer cena. Eu segui caminho. Noutra noite, em que saí com o Mike, a sua namorada e uma amiga dela, o Mike, porque tripou com a Solongo, sua namorada, bazou, e a Solongo bazou também. Quando saía do bar com a amiga da Solongo um gajo começou a caminhar para nós a gritar qualquer cena... o que aparentemente é a principal causa de lutas entre locais e estrangeiros – o pessoal ver os segundos com uma gaja mongol. Seguimos caminho.
- Quando trabalhava como segurança no Strings havia p’rai três lutas por noite. Havia sempre lutas entre estrangeiros e locais e a maior parte das vezes era porque um estrangeiro estava a dançar com uma mongol – disse o Mike.
Na minha última noite estava com o Mike e um canadiano à procura de um restaurante e aparece um gajo com cara de bêbedo vindo não sei de onde e dá um encontrão no Mike. Seguimos caminho. Seguimos caminho mas o que aquele filho da puta merecia era que lhe fodêssemos a tromba à grande. Pá quem sabe aprendesse uma lição. Se eu faço sempre a mesma cena, e na maior parte das vezes corre mal, vou deixar de a fazer... hum... certo?
- Se nós lutassemos com ele, num minuto tinham parado três carros e estavam a apoiar o gajo mongol independentemente da razão... aliás, sem saberem a razão... – disse o Mike.
O Mike é um americano de vinte e quatro anos que cresceu numa família mormon. Teve uma infância muito religiosa, começou a fumar seis meses antes de nos conhecermos e nunca tinha bebido até aos vinte e um. Vem de uma família pobre que cria cavalos, tem um curso de paramédico (mas não é médico), já caminhou, com o pai e os irmãos desde o Canadá ao México, já viveu no Iraque e agora vive na Mongólia. Foi lá parar porque fez parte de uma expedição de mota desde o Reino Unido até à Sibéria. Um grupo de pessoal rico decide seguir os passos de outro gajo que fez isto pela primeira vez, contracta uma empresa que arranja as cenas todas e lá vão. Nestas “cenas todas” está incluído um paramédico, o nosso caro Mike, neste caso. Estava na Mongólia há um mês e tinha arranjado uma namorada local nos primeiros dias.
- Hei, olá, onde estiveste o dia todo, não me mandaste mensagem nenhuma – perguntou ele à namorada naquela primeira noite, quando ela entrou em casa. Antes dela chegar tínhamos bebido dois shots de vodka e estávamos à conversa. Esta sua frase para a sua miuda foi o início de uma noite com os seus momentos desconfortáveis aqui para o tuga. A gaja estava a agir de uma forma super estranha que pelos vistos não era normal, porque o gajo estava a estranhar. Não falava e ele em vez de deixar p’rá lá isso continuava a insistir. E pelos vistos ela tinha dito que no dia seguinte ele ia conhecer alguém e o gajo estava a stressar com aquilo, a pensar que era a chama antiga (como se referem aos ex-namorados na Mongólia), alguém com quem a rapariga ainda falava ao telemóvel três vezes por dia.
- Pá ele chega a ligar-lhe a meio da noite, ela está na cama comigo e levanta-se para ir atender... – dizia o Mike. E eu a esperar, mais ou menos, que ele não me perguntasse o que é que eu achava disso, porque não me queria meter. Fomos jantar nessa noite, a Solongo bazou e fomos depois para uma discoteca. O Mike estava seguro que ela queria acabar com ele. Também me tinha dado essa impressão, mas não aconteceu nada do género. Fomos para o Strings, um bar onde ele trabalhara durante alguns dias como segurança, até arranjar um tacho melhor noutro sítio, como director de segurança de um centro que abriria em Outubro, ao mesmo tempo que ensinava inglês. Pelos visots o pessoal so Strings não tinha curtido que ele tivesse bazado.
- O pessoal do Sanctis não me quer a trabalhar aqui, eles têm o meu visto de trabalho... – ia dizendo a qualquer pessoa que aparecia. Tanto que levou à minha iminente questão...
- Isso é couro ou é mesmo como dizes?
- É couro – respondeu.
A noite foi porreira, e mais ou menos surpreendente. É que quando lá chegámos (note-se que era uma terça-feira qualquer) não se passava nada, mas passado duas horas aquilo estava cheio. A pista de dança estava cheia de gajas a dançar, juntamente com um ou dois casais russos que parecia que tinha acabado de chegar dos anos oitenta – tanto na roupa, como na dança. Tocava uma banda filipina no palco que pelos vistos trabalha sete dias por semana, e que tinha dos melhores guitarristas que já vi. O gajo fazia amor descaradamente com aquela guitarra e era, claramente, muito melhor do que o resto da banda. Mas o que alimenta o bucho é benvindo...
Fomos para casa quando a disco fechou. O Mike fartou-se de dançar, eu... bem, eu fique a aguentar o balcão, à conversa com uma russa que trabalhava na força aérea americana em Anchorage, no Alaska.
No dia seguinte fui trocar o meu bilhete de comboio de manhã e pedir o meu visto à tarde. Tive de pagar mais quinze por centro para trocar o bilhete, mas que interessa... Troquei-o para dia vinte e sete, e troquei online o meu bilhete de autocarro de Moscovo para Riga, onde chegaria dia três de Outubro – um dia antes do dia quatro. Passei o resto do dia imerso em Ulan Bator. Mas acabei por ir só ao museu de história porque quando saí estava tanto frio que tive de me refugiar no Budweiser Café ao lado do parlamento. Curti o museu, e aprendi muito sobre o Chinggis Khan (é assim que se escreve na Mongólia, mesmo usando o nosso alfabeto em vez do cirílico). Como todos os imperialistas, o gajo desbravava terreno e VIDAS com um pretexto que até parecia giro, tipo unir o mundo e não sei quê. Tinha grande personalidade, grandes atributos e isso fez com que ele tenha sido uma peça fundamental no maior império de sempre, que chegou até à Ucrânia. Um personagem interessante que acaba por ser talvez a única coisa pela qual a Mongólia é conhecida. Por isso e pelo deserto de Gobi, o quinto maior do mundo, contando com os polares. Mas sinceramente, eu, que não sou estúpido de todo, só ouvi falar do Gobi há pouco tempo.
No dia seguinte a Solongo já estava melhor, pareceu-me. Sorria mais e... falava. Vi-a quando estava na net no computador do Mike e ela entrou no apartamento. Tive oportunidade de confirmar algo que o Mike me tinha dito.
- Pá, a minha namorada chega a minha casa, diz para eu me sentar no sofá, e começa a limpar tudo... eu quero ajudar mas ela não deixa, diz que é assim que se faz na Mongólia. Achas que isso é mau?
- Acho que não, desde que não comeces a contar com isso... e que se um dia ela se cansar tu não te sintas agastado e queiras que ela continue a fazer tudo – confirmei isto porque ela chegou ao fim da tarde, só estava eu em casa, e começou a arrumar, limpar e lavar tudo. Até cozinhou para mim. Obrigado. Nessa noite apareceu uma amiga dela, a tal pessoa que era suposto o Mike conhecer. Era aquela a “surpresa”.
No dia seguinte dei mais umas voltas por Ulan Bator. À noite fomos a uma disco com a Solongo e a amiga ela da noite anterior. Parecia-me um bocado que a Solongo ditava aquilo que queria fazer e o Mike anuia. Mesmo quando ela não ditava nada.
- Se eu te disser uma coisa não ficas chateada comigo? – perguntou-lhe ele, na mesma tarde – Tenho de me encontrar com o meu chefe por uma horita. Mas é só uma horita. Ok? – ela disse algo que me pareceu ok, apesar de eu não falar aquela língua relacional através da qual as namoradas dizem o que querem dizendo que não o querem. Iá mas deve ter sido nessa língua porque o Mike disse logo que não ia. E depois de um tango verbal o gajo lá acabou por ir. Encontrámo-nos na disco. E que disco! Esse ponte de exclamação aí atrás não é pela qualidade da mesma mas pela peculiariedade. A diferença do Strings era que tinha strippers que pareciam das que estavam a fazer um reality-show entitulado “Eu Não Sou Boa Nem Bonita Mas Ainda Assim O Pessoal Paga P’ra Me Ver” e depois, com todo o meu espanto, um show tipo de circo, com um gajo a engolir fogo e a caminhar em vidro. Só visto mesmo, só visto.
Pois a dada altura a Solongo atendeu o telefone.
- É a chama antiga? – perguntou o Mike à amiga da Solongo, que encolheu os ombros. Com isto, o Mike bazou, e depois disto, bazou a Solongo também. A outra rapariga mal falava inglês, e eu não curto muito discotecas de qualquer maneira, por isso quis bazar mal houve oportunidade. Foi nisto que um parente que estava lá fora começou a gritar quando me viu a sair com a amiga da Solongo. Seguimos caminho.
Quando voltei ao apartamento o Mike estava a dormir. Estava cheio de tosse e passado um bocado veio para a sala. Falámos um bocado. O gajo estava zangado. Eu aconselhei-o a discutir as cenas com ela, mas eles tinham um grande problema que é o de ela não ser exactamente fluente em inglês. A miuda safa-se bem, mas ele tem de falar com ela tipo “I not like this and that. Last night I go this and that” para ela perceber melhor, o que até às tantas acaba por desajudar, sendo que ela vai aprender inglês com erros. Ele disse que ela tinha uma amiga que falava bem inglês e era uma ajuda. Já tinham recorrido aos seus “serviços”.
Passei o dia seguinte a dar umas voltas por Ulan Bator e uma boa parte da tarde na internet. Estava farto da capital, tinha duas semanas no país e não queria ver só uma cidade. Mas parecia que para ir fosse onde fosse um gajo ou ia num tour com outro pessoal ou tinha de pagar bem. Tinha ouvido falar de tours ao deserto onde, se fossem seis pessoas podia pagar-se à volta de trinta e seis dólares por dia, o que era muito fora do meu orçamento, mas não era mau de todo. Mas e encontrar esse pessoal?
Foi aí que tive uma brilhante, mas simples ideia. Fui ao couchsurfing, cliquei em “viajantes perto de ti” e mandei uma mensagem p’rai a cinquenta pessoas a dizer que queria ir ao deserto e estava à procura de malta. Passado duas ou três horas, recebi uma mensagem da Jenny, que ia com mais cinco pessoas na manhã seguinte, por oito dias. Havia lugar para mais um. Perfeito!
quinze horas-quinta-vinte e nove de setembro de dois mil e onze
algures entre Ulan Bator e Moscovo
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