domingo, 27 de fevereiro de 2011

Istambul


Não ia escrever. Estava todo partido hoje lá p’rás dez da noite, mas depois ficámos aqui um bocado no paleio, vimos um filme, e agora estou aqui a ouvir os fantásticos “The Wedding Present” e até me deu uma estriquita para escrever.

Istambul anda p’raí a encontrar o seu lugar no meu coração. Chegou ali à zona de preferências e viu Estocolmo sentada lá na poltronazita há seis anos, com Budapeste e Praga encavalitadas em cada perna da capital sueca. Não está fácil porque estas não querem sair e Istambul não está cá com cenas e mais um dia ou dois de  me fazerem sentir como um puto e vai tudo porta fora. É que é isso mesmo que me faz sentir. Mal cheguei não conseguia deixar de ficar de boca aberta. Chegámos lá p’rás onze da noite, uma quarta-feira em Fevereiro e era mais pessoal na rua do que em Lisboa num domingo de Agosto! Mas tudo a seu tempo...

Na noite anterior tínhamos decidido fazer uma corridinha de boleias até Istambul. Assim, quinta acordámos, e quanto tomávamos o nosso pequeno-almoço grátis (de onde trouxemos um par de croissants cada um) fizemos par ou ímpar e depois pedra-papel-tesoura e ficou decidido que eu apanharia a primeira boleia, o Pawel a segunda e o pobre João a terceira. Acabou por não ter nada a ver, mas a ideia era essa. Despedidas e tal, e plantamo-nos à porta do dormitório. Parou logo uma senhora, que nos levou até à entrada para a autoestrada, com o auxílio de uma amiga a quem ligou para traduzir. Ora tínhamos acabado de sair deste carro, esticámos o dedo e o segundo carro a passar pára de imediato. O dia começava bem! Ele podia levar três pessoas, por isso seria estúpido ir só eu para ganhar a corrida. Deixou-nos em Komotini, e lá deixámo-nos ficar pela autoestrada. O pessoal que relaxe que se for um sítio bem escolhido não é assim tão perigoso. Pena é a polícia grega não achar o mesmo. É que passado menos de quinze minutos de lá estarmos eles apareceram para dizer olá. Os gajos daquele carro amarelo devem ter ligado! Foram fixes e tudo mais, mas mandaram-nos bazar. E bem que tentámos. Mas estando ali à entrada não era bem o mesmo... e por isso voltámos, duzentos metros à frente, e do lado de fora dos rails.

Ficámos lá meia hora até que, como um abutre faminto, começou a pairar sobre nós a ideia que isto de andarem três gajos à boleia não vai com nada. Assim o Pawel lá decidiu ir à sua VIDA, ficando nós para trás. O acordo era que se ele apanhasse uma boleia mandava um toque e se visse a bófia mandava mensagem. Não vi a tempo a mensagem dele, mas ‘tá-se bem, porque os polícias que apareceram, apesar de terem parado, só queriam saber o que estávamos a fazer. “Ah, à espera de um amigo, sabes?”. Até íamos bazar, mas eles disseram para ficarmos, mas para termos cuidado. Porreiro.

Quem não achou o mesmo foi o polícia que apareceu dez minutos depois, o mesmo que previamente nos tinha avisado. Tivemos mesmo de bazar. E entretanto o Pawel já tinha mandado o seu toquezinho a avisar que se tinha safado.

Fomos para a entrada da autoestrada. Boa sorte! Jogámos daqueles jogos parvitos tipo dizer todos os sobrenomes que existem, ver quem se equilibra mais tempo de certa forma e essas cenas, até que o João se cansou e decidiu voltar para a autoestrada. Eu não estava muito a fim de ir preso, por isso fiquei. E ainda bem, porque passados cinco minutos apareceu o Giorgios, que abriu a porta do seu carro, que nos levaria até Alexandroupouli, mais pertito da fronteira grega. Ao darmos a volta para entrarmos na autoestrada eu pedi-lhe para levar o João e o chavalo lá veio. Se calhar se lá estivéssemos os dois, ele não parava. É engraçado isto. É como pedir boleias nas estações de serviço. Basta iniciar contacto, nem necessariamente super-agradável, simplesmente contacto, que o pessoal já faz oito mil vezes mais por ti do que quando tu eras anónimo. O pessoal nem se importa de ajudar desconhecidos, mas anónimos deus nos livre!

Ficámos na auto estrada, antes da saída. Já parecia estarmos numa zona de polícia diferente, por isso mesmo que aparecesse alguém, já não estávamos naquela cena de “à terceira é de vez” porque ia ser a primeira vez que nos viam. Isso para mim chega.

O João ficou lá parado a seguir a uma entrada com o seu cartazito a dizer “Turkey” e eu segui caminho. “Se aparecer a bófia manda toque”. Começou a nascer em mim ali no peito aquela cena. Caminhava estrada fora, sentia o Vento frio mas agradável que não me deixava dormente perante os limites da minha pele, à direita via o mediterrâneo, à medida que, como ponteiros num relógio estragado, ouvia o barulho dos carros a passarem à direita. Senti-me incrivelmente feliz. Não sabia se me ia safar. Sabia que ia chegar à Turquia, nem que fosse a pé. Mas não sabia se os carros iam parar, se ia ficar sozinho o resto do dia. Sabia que estava ali, e que pensava, e que esses pensamentos não me martirizavam. É que por vezes martirizam. O meu existencialismo às vezes é chato. Quero sempre respostas para cenas mais ou menos descabidas. O sentido disto e daquilo, os porquês e essas cenas que às vezes são como uma pedra no sapato. Mas nestes momentos, a maioria das respostas, quase independentemente das perguntas, é o que se está a passar naquele mesmo momento. E são estas experiências que ficam e ajudam a ver a VIDA como algo que, com ou sem sentido, com ou sem razão de ser, é bestial, engraçada e com um potencial de risadas inesgotável. É incrível quando temos perfeita consciência de que estamos a fazer algo de que nos vamos lembrar para sempre. Nesses momentos vivemos o futuro inteiro em cada segundo do presente.

E o mais engraçado é que, apesar de não saber se ia ser apanhado ou não, passados dez minutos estava no camião do Borislav, um búlgaro que, apesar de não falar uma palavra de inglês, conversou comigo durante meia hora, ficando eu a saber que tem um filho de onze anos chamado também Borislav, que transporta tabaco para a Bulgária, que voltará à Grécia e enviado para os EUA. Já ele ficou a saber os detalhes desta viagem. Um gajo vai aprendendo a comunicar – além dos óbvios trejeitos, há palavras que são parecidas em várias línguas e outras que apesar de não o serem são percebidas. Como colega, voyage, kaput, money, yes, no, friend/freund (tentativa de escrever em alemão), nicht (idem), etc.

Antes de ter apanhado esta boleia tinha visto que estava um camião parado lá ao fundo e duas pessoas perto do mesmo. Fiz zoom com a câmara mas nenhum deles era o João. Contudo, a verdade é que eram dois condutores amigos de dois camiões. “Vem um camião atrás, vai nesse”, gritou o João pela janela, passando por mim.

Quando saímos, a dez quilómetros da Turquia, um rapazola que trabalhava na alfândega apanhou-nos quase de imediato. Agora o problema era passar a pontezita entre a fronteira grega e a turca. É que tinha lá uns ménes do exército com armas e não sei quê. Era a vez do João arranjar boleia primeiro (não havia carros lá, só camiões), e assim o fez. Após ter arranjado a sua, eu arranjei uma só para me levar até ao outro lado. O gajo deixou-me do outro lado da ponte e eu lá fui tirar o meu visto, não sem antes ser submetido a um teste sobre jogadores de futebol turcos, pelo polícia que vê os passaportes.

Entrei na Turquia e andei lá dum lado p’ró outro a perguntar ao pessoal se ia para Istambul. Agora eu estava esquisito, não ia numa boleia qualquer. É que ali havia bué de pessoal a ir para Istambul, por isso porquê ficar a meio? Arranjei lá um contacto dum méne que me disse que não me podia levar mas que o seu amigo podia. Porreiro. Dirigi-me à saída da fronteira, entreguei o meu passaporte, e o gajo pergunta-me se vou ficar em Couch Surfing. Surpreso, digo que sim, e quando lhe pergunto como sabe, diz que também é. Quando pergunta se vou ficar com uma rapariga e digo que sim, pisca-me o olho. Iá há bué pessoal que vê no site mais do que realmente é. Conheço muita gente que já se safou com couchsurfers, o que não tem problema, porque o que acontece, acontece. Mas quando o pessoal tem isso já em vista antes de mais nada, desvirtua um bocado a cena. Na homepage há uma secção com “nearby travelers”, onde vemos pessoas que têm, por exemplo, um perfil registado no Porto, e acedem à sua conta noutro sítio qualquer. Bué de amigas minhas dizem que estão fartas de receber mensagens de pessoal que está “looking for a good time”... Eu já recebi uma proposta de casamento da Nigéria, alright! Quem não conhece o projecto, dêem uma espreitadela. É a única forma de estadia que concebo. Além da óbvia cena que é não se gastar dinheiro, ficámos com pessoal que vive no sítio e está, muitas vezes, disposto a mostrar-nos as cenas e tal. Além disso, através deste site conheci amigos de que nunca mais me vou esquecer. Se estás em Portugal, é uma maneira de viajar sem sair do sítio, sendo que passam por tua casa pessoas de todos os lados, de todos os tipos. Faz-me falta. Vivendo em Vale de Cambra, por mais espetaculares que são os nossos amigos, como considero os meus, são os nossos amigos. Não há assim tanto pessoal com ideologias diferentes a passar para nos ensinar sobre outras cenas em que nunca sequer pensámos. Claro que aprendemos imenso uns com os outros, e com as experiências uns dos outros, mas de certa forma é, por vezes, um bocado limitado.

O rapazola que disse que me tinha arranjado uma boleia lá passou, apontou para trás, para o seu colega, e quando este passou, disse qualquer coisa como “pausa” e fez sinal de sesta. Hum? Fiquei sem perceber a cena muito bem e foi por isso que, quando o João passou no camião do seu turco, acedi aos gestos do mesmo, e lá fui. O gajo não falava inglês, mas foi bestial connosco. Não só estava a levar dois chicos num camião com apenas dois lugares, como também nos pagou um almoço num restaurante daqueles que deve ver um turista por milénio.

Demorámos umas quatro ou cinco horas até chegar aos subúrbios de Istanbul. Esta cidade tem vinte milhões de pessoas, por isso quando falo em subúrbios, falo numa distância que nos levou uma boa meia hora a percorrer, dentro do camião de um méne que parou na autoestrada para nós. Este deixou-nos mais perto do destino final mas ainda assim longe. Lá nos pusemos a caminho com o polegar espetado, até que apareceu a bófia. Os gajos eram fixes, mas via-se que estavam confusos, sem perceber o que é que um gajo estava ali a fazer. Lá nos levaram até uma paragem de autocarro para chegarmos ao nosso destino, mas autocarros era algo que não havia. O João queria ir a pé e tentar mais boleias, mas o Pawel e a nossa anfitriã Refika estavam à espera há um pedaço e dá-me um bocado de ansiedade quando sei que estão à minha espera – por isso apanhámos um taxi, que custou cinco euros.

Pá eu não cabia em mim, nem conseguia fechar a boca. Só pessoal méne! Numa quarta-feira as ruas cheias, aqueles sons todos árabes, as lojas sem fim a vender sumo de laranja (portokala), as xixas, os bares, os cheiros. A natureza morta tem fortes influências europeias, mas todo o ambiente tem um claro tom de Médio Oriente.

Fomos a um encontro de couchsurfers onde estavam uns cem. Já percebi que onde gasto mais guito é a cortiré. Quatro cervejas de meio litro, dez euros assim, pam! Mas que se lixe. Fomos para casa lá p’rás duas e tal e ficámos na conversa na sala. Estava lá também um amigo da Refika que se revelou um tristito. Cenas. O gajo está filado na gaja e disse-lhe que não tinha gostado nada do Pawel e que eu era o perigoso. Há outros detalhes muito mais interessantes mas que não convém revelar num blog acessível a toda a gente, sendo que esses detalhes foram contados à laia de segredo, pela nossa anfitriã.

No dia seguinte andámos pela cidade, as cenas do turista viajante. Ver isto e aquilo, experimentar isto e aquilo. Isto não é um guia turístico. Fixe foi ter ido a uma mesquita na altura de reza. Estávamos a chegar a casa e ouvimos aqueles sons todos marados. Cada mesquita chama o pessoal para a reza cinco vezes por dia, sendo o chamamento um méne a cantar com a sua voz a ser propagada por uns altifalantes que cada templo tem. Detesto religião e essas cenas, mas é uma cena bué exótica e que me lembra quão longe estou de casa. fomos à mesquita e estivemos lá p’rai quarenta e cinco minutos. Não rezámos porque não sabemos o que rezar, naturalmente, mas estivemos lá com os ménes a seguir a coreografia de ir ao chão, tocar com a cabeça, etc. É uma espécie de yoga preguiçoso que até relaxa. Não havia mulheres e estou certo que éramos os únicos estrangeiros. Foi uma experiência interessante que me deixou a pensar no porquê de se perder tempo a falar com alguém que não está a ouvir. Não quero ser desrespeitoso e não digo isto advogando que, por exemplo, o cristianismo é melhor. O significado, ou a ausência do mesmo, é algo mais abrangente e lato que uma ou outra religião.

Ontem tivemos outra reunião de couchsurfers, desta feita organizada por nós. Lembrámo-nos de publicar no grupo e apareceram umas quinze pessoas. Foi mais ao meu estilo. Curto assim porque dá para falar com toda a gente. Quando somos cem pessoas se calhar abandonámos um bocado a qualidade das interacções e abunda mais a quantidade. Conheci lá um gajo russo, da Sibéria com cara de chinês, que andou na China uns quatro meses sem visto. Parece fixe e corajoso. Mas quando foi apanhado teve de pagar dois mil dolares! Pam! Pena foi a má notícia que o Dan, um inglês viajado, me deu. Aparentemente a única forma de passar do Nepal para a China é fazendo parte de um excursão e pagar milhares a uma agência turística do bufo qualquer. Bela porcaria. O problema é: o meu visto indiano é só de uma entrada. Pelos vistos não dá para passar da Índia para a China. Não consigo visto para Myanmar. O Bangladesh está rodeado pela Índia. Assim: Índia-China na parte ocidental, zero. Índia-Nepal-China, zero se tiver de pagar os milhares. Índia-Bangladesh-Índia-China, zero porque não posso entrar mais que uma vez na Índia. Myanmar-Tailândia, zero porque só consigo um visto para Myanmar se voar. Burocracias. Mas pode ser que o méne tenha falado sem saber. Depois vejo. Se tiver de voar quatrocentos quilómetros de Katmandu para o sul da China, tem de ser...Depois vejo.

Esse gajo tinha bazado mas depois veio ter connosco ao Pixie, um bar altamente de dubstep, onde me entreguei à pista de dança. Olhos fechados, abrir os braços e curtir. Quero ir ao Boom em 2012. ‘Bora? Depois acabámos por ficar em casa dele. Comprámos duas cervejitas e estivemos lá a conversar até às cinco e tal, sentados num tapete encostados a um corredor. A conversa andou muito à volta de como os turcos são, e não sei quê, e oitenta por cento são assim ou assado. Às vezes não sei se me recuso em acreditar em certas cenas porque são efectivamente uma grande treta, ou se me recuso a acreditar porque não quero acreditar. E não sei se isto é uma entrega à ignorância, uma entrega à razão, ou uma entrega a um estado de espírito que me permita estar completamente despido de qualquer preconceito ao conhecer alguém. Quero dar as mesmas oportunidades seja a quem for, quase como se, para mim, as pessoas começassem apenas a existir no momento em que as conheci.

Agora, por exemplo, estou no carro de um turco cipriota, e ele, apesar de parecer um gajo porreiro, vem com o mesmo paleio que se ouve um pouco por todo o lado, mas sobre pessoas diferentes – que se odeia estes, e aqueles, e que estes fazem isto e aquilo.

- Eles na Índia cagam na rua, sabias? Vão a caminhar e cagam! – diz-me.
- Não acredito nisso – digo.
- A sério? – diz ele, esticando a mão em jeito de aposta.
- A sério. É que já lá estive e não vi nada disso – respondo.

Pois estou agora no carro do rapaz e vamos para Sile, um sítio a sessenta quilómetros e Istambul, na praia. A nossa anfitrião lembrou-se de irmos acampar, publicámos no couchsurfing no grupo de Istambul e juntaram-se a nós duas ou três pessoas. Mas iá, não está tempo disso, por isso vamos ficar em casa de um amigo dela qualquer.

21h23-s-26-2-11
Algures entre Istanbul e Sile

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Xanthi

Na quinta, dia dezanove, ficámos por casa durante a tarde, no relax puro. Fomos vendo os planos para o dia seguinte e cenas assim, ora na internet, ora simplesmente conversando sobre isto e aquilo. O plano era ir para Sarajevo no dia seguinte. Significaria andar um bocado para trás, mas era porreiro conhecer a capital bósnia e depois passar em Dubrovnick, que me dizem ser altamente, e finalmente continuar para Este.

À noite fomos beber uns copázios. Encontrei o meu primo Froza, que se encontra, pelos vistos, de boa saúde, feliz e com uma miuda simpática e muito gira destas terras balcãs. Foi porreiro ter estado com ele ao mesmo tempo que com os meus camaradas sérvios. Fomos para um bar vazio estilo restaurante. Por aí ficámos umas três horas. A conversa andou, naturalmente, à volta de políticas balcãs, etnias, nações, e essas porcarias todas que apesar de, de certa forma, me arrepiarem, me interessam. Era mesmo aquele estilo dos balcãs... bares fumarentos com pessoal a aparecer a tocar violino, contrabaixo naquele ritmo acelerado de quem quer saltar. Tinha reparado num senhor numa mesa, barba grande, cabelo ralo, óculos de fundo de garrafa, lembrava-me o Karl Marx. Estava mais ou menos estátito, só se mexendo para sacudir a cinza do seu cigarro, ou para assassinar mais uns centilitros de rakia. Comentei com o pessoal e oferecemos-lhe uma cerveja. Ele nem agradeceu. Ok. Às tantas o Jovan foi convidá-lo para a nossa mesa, convite que o senhor recusou, dizendo que tinha acabado com a sua namorada e que queria estar sozinho. Todavia, não recusou quando o João, que tinha bebido pela primeira vez na sua VIDA cerveja preta, se aproximou e o convenceu a juntar-se a nós. Era professor de física e um personagem interessante.

A noite seguiu o seu curso natural, e fomos para casa. lá esperáva-nos um prato de Musaka, uma comida típica destes lados. Mas um prato à séria. Apesar de bastante saboroso, lá fiz um esforço para comer a tonelada que a mãe do Jovan tinha feito aterrar no meu prato. Foi com terror que a vi, tendo eu acabado, cortar outra grande fatia e depositá-la à minha frente. Um viajante a queixar-se de lhe oferecerem muita comida – ridículo!

No dia seguinte acordámos cedo, prontos para ir para Sarajevo. Não deu. O Jovan deixou-nos na estação de serviço um bocado antes da autoestrada, e lá nos deixamos ficar, à saída, com um sinal a dizer Sarajevo. Esse sinal depois mudou para Bosnia, e na última estância para “RS”, que quer dizer república sérvia, e escrevemos seguindo o conselho de um senhor. Senti-me um bocado estúpido a fazer aquilo, porque não me fazia sentido nenhum, mas lá pensámos que se ele o disse, devia haver uma razão. Acontece que a Bosnia está dividida na parte muçulmana e na parte sérvia, e esse sinal de “RS” seguido do nome da primeira cidade Bosnia era, efectivamente, o mais indicado. Não que nos tenha levado a lado nenhum... Num último bafo de pseudo-desespero, escrevemos “Anywhere”. Também não deu. Pois então lá contactamos o Jovan, que mais uma vez nos veios buscar.

Nessa noite vimos o “Pretty Village Pretty Burn”, um filme sérvio, dos melhores que já vi sobre guerra. Basicamente os muçulmanos e os critãos na Bósnia começaram a descurtir-se cada vez mais, e rebentou tudo. O filme passa-se em quatro momentos. O momento final, em que os sobreviventes estão no hospital; o momento em que dois amigos partilham as brincadeiras típicas da infância; o momento mais tardio em que ambos abrem uma garagem, e vão cortiré e essas cenas, e finalmente o momento da guerra. Os bósnios cristãos andavam p’raí a queimar aldeias muçulmanas e matar pessoas, e vice-versa. E os dois amigos são de religiões diferentes. Religião. O maior embuste da história da humanidade. Como é possível que alguns gajos com talvez uma grande moca, o dom da palavra e um ego inflamado, começaram a falar e o pessoal deixou-se ouvir? Estes gajos que pegaram nas palavras de outros ménes, desde Buda a Jesus e decidiram que essa cena do amor e tal até é fixe, e o mais fixe é forçá-los sobre os outros. O ser humano é ridiculamente estúpido quando se submete a tais práticas. Pá se tu tens a tua religião, fica com ela, não há crise. Cada pessoa tem as suas estratégias, umas mais eficazes que outras, de lidar com os problemas do dia-a-dia. Mas não deixes para o céu os prazeres e vivências que podes ter agora. Porque não jogar pelo seguro e fazer tudo na única pseudo-certeza que temos, que é esta VIDA presente, sendo feliz sem espezinhar? Há uma estória que fala de um esquimó a quem tentam evangelizar. Ele pergunta ao soldado de cristo: “Estás a dizer que se eu cometer pecados vou para o inferno?” “Sim”. “Mas que se eu não soubesse da existência de deus não ia?” “Sim.” “Então porque é que me disseste?”. Em nome de alguém que, supostamente, anda acima das nuvens a ver o que sete biliões de pessoas fazem...

No dia seguinte o Jovan deixou-nos noutra estação de serviço, direcção a Skopje, Macedónia. Sendo que temos de estar no Irão dia vinte de março (o visto expira a cinco de Abril, e só podemos estar no país quinze dias), os dias estão a passar, e decidimos marimbar-nos para a Europa, que sempre está aqui ao lado e esta, e mandar-nos para Este. Ficámos algum tempo nas portagens até que, percebendo a falta de sucesso, pedimos simplesmente para nos levarem até à próxima estação de serviço. O Nikos assim o fez e lá ficámos meia hora até ter aparecido o Draguisha e a sua filha, que nos levaram cinquenta quilómetros. Estávamos na estação de serviço menos concorrida da história. Mas ok, há que não desanimar. Percebendo que algo estava a falhar, em vez de escrevermos apenas “Nis”, uma cidade sérvia a sul, escrevemos todas as cidades desde onde estávamos até Skopje, perguntando às pessoas se iam para aí. Apareceu a Mila e o seu marido que, vendo “Paracin”, disse que ia p’raí. Fomos com casal e andamos uma boa horinha, para aquecer os pés. É que estava cheio de frio. Uma t-shirt, uma long-sleeve e um casaco, um recorde pessoal de roupa, e ainda assim tiritava como... algo que tirita muito.

Ficámos na última estação de serviço antes de Paracin e depois apanhámos boleia dum senhor cujo nome não me lembro. É que perdi a cena onde aponto os nomes e não consigo decorar todo e cada um. Tive de os convencer a nos levar durante um bocadito. Ai não há espaço e tal. um gajo aperta-se. Ai as malas e não sei quê. Um gajo leva no colo. Acontece que o gajo tinha dito que ia andar quarenta quilóemtros mas tinha-se enganado e ia mas era andar cinco! Estranho. Ainda assim levaram-nos a uma estação de serviço fora da autoestrada, mais à frente. Já estava noite, os pés molhados e o número de carros a diminuir. A situação afigurava-se triste. Após desistirmos de estar nas portagens, caminhámos um bocado, numa estradita ao lado da autoestrada e fomos ter a um restaurante, onde um outro méne esperava boleia para Skopje. Ficámos ali meia hora,  à espera que ele se safásse, sendo que tinha prioridade, e apareceu um autocarro. Quando pedi a um méne para traduzir e perguntar quanto era o bilhete, o condutor disse que eram quarenta euros para duas pessoas! Ora nós estávamos a mais ou menos quarenta por cento do percurso. E para cem por cento do percurso, de Belgrado, eram quarenta e quatro euros. O gajo estava era a dar uma de chico, como o outro no comboio. Um gajo disse que não e depois, num instinto, vendo que o condutor estava a tomar café, o João foi caminhando para o autocarro pela parte de trás e eu segui. Nada a perder.

Estivémos convencidos de que passáramos despercebidos durante umas duas horas, até que ele vem pedir os passaportes. Porque estávamos prestes a passar a fronteira. Depois o gajo pediu outra vez os quarenta euros. Já tínhamos antecipado a situação, e eu tirara trinta dólares, ficando eu com vinte e o João com dez. Dei-lhe os vinte dólares, dizendo que era o que tinha, e quando ele insistiu o João deu-lhe os dez. A comunicação arrastava-se em sérvio dele e inglês foleiro nosso. Após termos dito ambos a mesma coisa vinte vezes, ele a escrever o número quarenta e nós a dizer que era isto que tínhamos, ele calou-se. Esteve a olhar para o chão uns dois minutos, e dava para ver que ele estava com por cento naquele limbo de “será que permito, será que não...”. E eventualmente foi embora.

Quando chegámos a Skopje fomos à internet ver se tínhamos sofá. Tínhamos, e contactámos o Thomas, com quem fomos ter a um bar onde via um concerto. A minha primeira impressão de Skopje foi bombástica. Não sei se foi do timing ou da minha disposição, mas disse logo que era a minha cidade preferida da viagem. Acabou por não ser. Ficámos lá no bar com o Thomas e os seus amigos, pessoal do European Volunteer Service. Pagam-lhes a renda num apartamente muito porreiro, e dão-lhes um fundo de maneio de cento e cinquenta euros, o que, numa cidade como Skopje, dá para viver sem grandes problemas. E considerando que é voluntariado, ‘ta-se muito bem. Fiquei a pensar nisso. Afinal de contas, estar à procura de emprego em Portugal, ou fazer voluntariado na Albânia enquanto se procura emprego, não só ajudando como adicionado ecperiências ao currículo e à VIDA, não é bem o mesmo...

O Thomas é uma rapaz de vinte e cinco anos da Eslováquia, formado em documentação de não-sei-quê histórico, um curso de que nunca ouvi falar. Foi um anfitrião porreiro, simpático e que me mostrou, no dia seguinte, um documentário que ficou. Um documentário dos anos setenta que consiste, basicamente, em vários velhos e velhas que vivem isoladas, sozinhas, numa sítio qualquer na montanha. Tocou-me a solidão deles. Nem sempre penso nisso, mas ver estas realidades lembra-se sempre que há muito mais do que aquilo que os meus olhos conseguem alcançar. Acho que às vezes prefirimos viver dentro da nossa bolha, o nosso mundinho que conhecemos e não é assustador. Isto nem tem que ver com ciajar ou não viajar, pois tantas vezes levamos, na nossa percepção, o mundo atrás de nós. Não tem necessariamente nada que ver com viajar pois não basta mais que sair do nosso quarto para nos apercebermos do que realmente se passa por aí.

Depois do concerto viemos para casa e ficámos na conversa enquanto comíamos uma sopa.

No dia seguinte fomos dar uma volta pela cidade. Houve um terramoto em Skopje em mil novecentos e sessenta e quatro e oitenta por cento da cidade foi destruída. À conta disso, passear em algumas partes da cidade, nesta altura pré “projecto 2014”, é como passear num prédio em construção. Apesar disso, tem imagens belas, ainda que essas sejam criticadas pelos gregos. É que a arquitectura que está visível em alguns monumentos em construção e algumas estátuas é, dizem, roubada aos gregos. “É como se eles estivessem à procura de uma identidade”, diz-me o Thomas.

Andámos com uma amiga do João e duas amigas suas. Depois de uma voltita fomos tomar um café. Não sei como a conversa foi parar aos albaneses e não sei quê. Que frustração me deu esta conversa. Tanto ódio estúpido e cego por pessoas que, coitadas, nasceram dentro de outras fronteiras. Ai porque eles fazem isto e não sei quê. E roubam. E matam. Esfolam? Uma estupidez, sendo que primeiro, em tantas vezes uma situação é exagerada e generalizada e segundo, sendo que esta atitude e predisposição a agir para com determinado grupo ostraciza-os, e essa ostrização leva a comportamentos anti-sociais, como roubar, e roubar leva a uma predisposição a ostracizar. E parece que o pessoal não entende que isto é um ciclo vicioso e que cabe a cada um de nós interromper. O comportamento de uns pinta um grupo inteiro se este grupo não é do nosso. Como com o romenos em Vale de Cambra.

Elas disseram mesmo “nós odiamo-los”.
- Mas como é que sabes que é um albanês? A cara é diferente? É mais moreno? Isto é, como é que sabes quem odiar – perguntei
- Ai agem diferente e tal – responderam, nem percebendo a intenção da minha pergunta. E roubam. Quando perguntei a cada uma se já tinham tido problemas com albaneses responderam que não. Mas os media mostram. Iá, os media da Macedónia. Mas pronto, os media mostram, um gajo acredita e seiga para a frente com a pala no olho...
Nessa noite, depois de ver o documentário fomos dormir.

Acordámos no dia seguinte com intenções de vir para a Grécia ou a Bulgária. É que tínhamos estadia para ambos, e o sítio para onde iríamos à boleia er antes da autoestrada se dividir. Assim sendo, iríamos para onde fosse a primeira boleia. Caminhámos até à estação de autocarros e, percebendo não os haver, decidimos apanhar um táxi com um méne que apareceu. Ai três euros até lá, são quatro quilómetros, diz o Chico. Dissemos que sim, o méne andou p’rai cinco minutos e parou. Após alguma discussão saímos. Caminhámos um pedaço até uma estação de serviço e aoanhámos uma boleia do Dean, na primeira vez que perguntámos. Fomos até a uma estação de serviço vazia onde já estava um rapaz à boleia. Esperámos que ele apanhásse a sua, que foi no primeiro carro que apareceu, e fomos na nossa, que foi no segundo carro que apareceu. Andámos um bocado com este senhor, até que nos deixou noutra estação de serviço, deserta mas deserta. Tínhamos anteriormente equacionado separar-nos, e desta feita era a minha vez.

Assim, após cerca de uma hora de espera, apareceu uma boleia para um, em que fui. Pá aquilo dá todo um novo significado à palavra “carripana”. Não tinha cintos, fazia um barulho a andar que parecia uma cadela a parir, e ao meu lado,  na porta tinha um buraco onde podia por onde entrar um pombo correio.

Eu tinha percebido que ele ia até à Grécia, mas não! Deixou-me uns seis quilómetros antes, debaixo de uma ponte na autoestrada. Esperei p’rai vinte minutos mas aquilo assim não dava. Estava a chover e eu estava cheio de frio. pus-me a caminhar com o polegar esticado, e apareceu um rapazola com a sua dama. Disse que ia a Thessaloniki mas passado um bocadito disse que tinha de parar depois da fronteira. Antes da fronteira macedónia disse que tinha de ir para não-sei-onde depois da fronteira e que era melhor eu ir. Estranho, mas ok. Podia simplesmente ter dito “não quero atravessar a fronteira contigo.” A pé lá passei a fronteira. Estava à espera que a polícia estranhasse mas mal olharam para mim, mesmo quando olharam para o passaporte.

Depois da fronteira grega apanhei uma boleia p’rai do sexto carro que apareceu, que ia para Thessaloniki. Ora eu queria ir para Xanthi, que é depois de Thessaloniki. Só que eu não sabia para onde ia essa estrada, e não sabia falar com o Kris, o senhor que só falava grego. Assim fui ter ao centro da cidade. Procurei um sítio com internet e fui mandar um pedido no grupo de emergência do couchsurfing, caso não conseguisse boleia. Lá vi que o Pawel, que conhecera em Belgrado, também andava por ali. Mandei-lhe um sms e passado meia hora encontrámo-nos no centro, prontos para seguir para Este. Apanhámos o autocarro 27 e depois o 83. Conhecemos a Maria, uma grega engraçada e baixinha, que nos disse que não era preciso pagar.

Saímos num sítio mau e metemo-nos c aminho. Ui, chovia e tudo. Caminhámos p’rai uma hora e meia. Mas foi fixe pá... Ao caminharmos ali naquela descida, vendo a estrada a alargar-se a dezenas de quilómetros à frente, esventrando os campos verdejantes ao seu redor, sentindo a chuva e o Vento frio senti que, pode ter os seus inconvenientes e problemas, mas aquilo é que é a VIDA. Aquilo. O não-saber, o andar meio perdido, o conhecer a amabilidade dos demais, as meleitas inerentes a quem se lança ao desafio, isso tudo é o que se cola dentro de mim. Deixa-me mais soessegado, mais descansado, ainda que nas pernas leve oitenta quilómetros.

Sou muito existencialista e questiono às vezes cada pixel do que vejo. Isto não é bom. Porque as perguntas que não têm resposta, na sua maioria, e a frustração pesa muito, por vezes. Contudo, neste último mês em viagem, as perguntas surgem na mesma, mas surgem como se tivessem sido lavadas com condicionador. São suaves porque não há frustração quando a resposta sobre o sentido é fazer o melhor por cada momento que agora existe em nós.

A lua já reinava quando parou à nossa frente um camião turco. Só com dois lugares, mas que interessa? Altamente! Sentei-me no meio, o Pawel no pendura, e seguimos até seis quilóemtros de Xhanti. Aí fomos caminhando. Estava meio preocupado com o paradeiro do João, mas descansado ao mesmo tempo por saber que ele não precisa de mim para se safar. Tentei ligar-lhe mas o telefone ainda não funcionava. Passado um minuto parou um carro à nossa frente. Porreiro. Sai uma pessoa a gritar e eu pensei, dado o agudo presente naquele grito, “deve ser uma gaja toda divertida”. Era o João! Tínhamo-nos separado seis horas antes, trezentos quilómetros antes, e acabei por apanhar a boleia dele! Há cenas assim.

Chegámos ao dormitório da Evi, uma pequenina grega que fala inglês com um sotaque italiano enrolado, e ficámos a noite toda a conversar, beber uma duas cervejas, e comer umas sanduíches. Era o que esperava. Os gregos que conhecera antes tinham todos uma personalidade forte e uma atitude revolucionária. Este, igual. Curti muito a conversa. Desde torias da conspiração à corrupção, abordámos um pouco de tudo.

Hoje acordámos lá p’rás onze. É que ontem fomos dormir tarde. Relaxamos um bocado, ainda almoçámos (de graça, nas cantinas) e depois fomos tentar a sorte da Turquia. Fomos apenas eu e o João, e apanhámos logo boleia de um rapaz aqui no dormitório, até à estrada que seguia para Este. Fomos andando um pedaço e apanhámos boleia de outro rapaz que nos deixou numa estrada que desembocava em duas para o mesmo destino, mas uma sendo autoestrada e a outra nacional. Um senhor parou passado um bocado e disse que ia para uns vinte quilómetros de Komotini, uma cidade sessenta quilómentros Este. Ora o problema foi que ele foi pela nacional, e nos deixou depois num sítio onde passava um carro a cada quinze minutos. Bela porcaria. Metemo-nos um de cada lado da estrada e caminhámos em direcção a Xanthi. Assim, se eu apanhásse boleia, íamos para Este, se o João, do outro lado da estrada, apanhásse, voltávamos para casa. Não apareceu ninguém. Caminhámos bué até que vimos um sinal a dizer “Termas”. Ah, porque não?! Era a três quilómetros e decidimos ir ver. A caminho apareceu um cota num jipe, que apesar de não falar inglês nenhum, nos levou às termas. Era um monte de casas todas destruídas e partidas. Ok, siga p’ra trás.

Caminhámos tanto,... “Xanthi 17km”, um gajo via. Dezasseis, treze...

Foi dez minutos após termos feito uma pausa que apareceu, imagine-se, o mesmo cota que tinha andado connosco algumas horas antes! Levou-nos ao dormitório, tendo nós chegado mesmo a tempo do jantar! Agora estou a descansar na sala comum, e amanhã siga Turquia.

21h19-3ª-22-2-22
Xanthi, Grácia

domingo, 20 de fevereiro de 2011

percursos por aí. daqui ali...

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Belgrado

(atrasado mas.............)

(fotos nem por isso novas de veliko mlacebo e de zagreb abaixo)

Pouco tempo depois de ter escrito o meu último texto tivemos uma experiência que, apesar de não ter sido extrema, me deixou com alguma adrenalina a correr...

Estávamos lá sentados na paragem de autocarros a ver uns videozitos para passar tempo, e aparece um gajo que começa a falar connosco. Topei logo que este gajo não tinha grandes intenções porque perguntou-me, em francês, a que horas era o comboio para Ljubljana, e depois de lhe ter mostrado onde estavam os horários e ter apontado, tocado literalmente, ele continuou a perguntar, sem se interessar minimamente em sequer tentar ver, a que horas era o comboio para Zagreb, e depois para não sei onde... Quando me afastei e lhe disse que não sabia, para ser ele a ver, o gajo seguiu-me uns dois metros e ficou ali especado a olhar para nós. Guardei o computador e quando passado um pouco ele foi lá fora, fomos para a parte principal da sala de espera, em vez de ficarmos nom corredor.

- Tens o gás pimenta aí à mão? – perguntou o João.
- Iá – respondi, com o mesmo na mão que se escondia no bolso. Pá pode parecer exagero, mas havia ali um comportamento geral no gajo que não ia muito bem. Lá voltou, e em quarenta ou cinquenta lugares disponíveis, sentou-se imediatamente a seguir ao João. Foi fazendo todo o tipo de perguntas, em francês, nacionalidade que disse ser a sua, apenas para minutos mais tarde dizer que era italiano. Eu ia respondendo, manipulando a realidade naturalmente e, acho, sem me engasgar. A nossa estória era que íamos para uma convenção em Belgrado, sendo que eu trabalhava no exército português, e esperávamos uns amigos que vinham connosco e vinham lá ter à estação. Esses amigos eram polícias. O João não concordou tanto com este caminho, mas foi o que me pareceu melhor. Depois o gajo começou a perguntar se tínhamos ganza, se conhecíamos alguém que podia comprar, e estava sempre a insistir para ligar ao Ricardo, o nosso amigo, para ver se ele tinha. Dizer-lhe que eu não me podia associar a drogas, nem ele, devido às nossas profissões, não foi suficiente, e tive mesmo de lhe dizer um “não” mais firme quando voltou a dizer para ligar ao Ricardo. Perguntou que documentos tinha, se lhe podia dar dinheiro para um café e essas cenas todas. Mas depois o comboio veio, e um gajo bazou.

Nos primeiros cinco minutos apareceu o pica, que deve ter pensado que já nos tinha pedido e daí bazou de imediato. Fomos semi-dormindo, até que aparece um polícia imbecil a gritar a palavra passaporte. O João tinha encontrado a carteira de um gajo qualquer, e quando tenta encetar um conversa que visava a eventual entrega da carteira o gajo só grita “passport! passport”. Mas ele era mesmo um atrasado, porque no final, após episódios semelhantes (como gritar com o João para ele se sentar num sítio que lhe permita ver melhor a sua cara) o seu colega polícia desculpou-se e fez sinal com o dedo a implicar que o cota não jogava com o baralho todo. Depois apareceu a polícia sérvia e aí foi tranquilo. Finalmente apareceu o pica sérvio, que de burro não tinha nada. Pediu vinte euros por ambos os bilhetes (de Novska teria sido trinta euros) e após lhe dizer que não tinha euros, lá o consegui convencer a aceitar vinte e cinco dolares. Ora está na cara que o dinheiro é para ele, e por isso mesmo disse que aparecia mais tarde, antes de chegarmos a Belgrado. Quando apareceu sugeri vinte dolares (dezasseis euros) e ele aceitou, mas ainda pediu coroas croatas. Finji que não percebi.

Eram sete da manhã e estávamos em Belgrado. O nosso anfitrião só aparecia à uma da tarde, e mesmo que um gajo quisesse ir para um hostel, que não queríamos, o check-in é sempre lá p’rás onze. Fomos para o Mac, onde ficámos umas três horas, até que nos disseram que não podíamos dormir lá. Fomos dar uma volta, e o João quis arroxar numa garagenzita que não me transmitia muita confiança. Ele ficou aí e eu fui dar uma volta, encontrando um prédio aberto, onde entrei e fiquei por uma hora, a jogar uns jogos quaisquer, sem conseguir adormecer.

Eventualmente encontrámos no bar de um hotel que tinha internet. O Jovan apareceu lá p’rá uma e meia da tarde, no seu Mercedes azul escuro, e fomos directamente beber uma cerveja. Ok, no problem. Ficámos lá no paleio umas duas horas, depois viemos para casa. Tomámos banho, comemos umas sandes feitas pela sua mãe e estávamos prontos para bazar. A sua mãe, que nos tem tratado como príncipes, trabalha como enfermeira na Alemanha durante quinze dias seguidos, e depois passa quinze dias na Sérvia. Vive em Belgrado com um salário alemão. Considerando que o salário mínimo em Belgrado são cento e vinte euros por mês (fora da capital menos), imagino que tenha uma boa VIDA no que a isso diz respeito. O Jovan... não percebi ainda muito bem o que faz, mas acho que não faz nada. Curte. Disse que tinha umas acções e algum dinheiro a entrar com alguma regularidade. Deixou de fumar há mês e meio e engordou dez quilos!

Veio cá ter o Philip, o “gajo que sabe tudo”, como disse o Jovan e fomos, no seu Yugo que comprou por quatrocentos euros, para o centro. O Phil é um gajo, efectivamente, muito culto, que fala como se fosse um actor de teatro. É aquela maneira de falar que, a ser um bocadito mais para o lado de lá, sugeria um problema nas cordas vocais. Mas é simplesmente a sua cena. Lá fomos para uma “Cafana”, que signigica um pub sérvio, bastante barato e cheio de pessoal amigo e do couchsurfing. Entre eles o Pawel, polaco de trinta e três anos, que vive em Cambridge há treze anos, e que está numa viagem à boleia desde o Reino Unido até Goa à boleia. É um gajo porreiro, ainda que por vezes me tenha parecido que tem aquele “orgulho do viajante”. Tipo o pessoal que diz “ai nós os viajantes e não sei quê....”. Não curto muito apesar de não ser uma característica detestável, na medida em que foi muito subtil. É simplesmente algo que me deixou a pensar e em que já tinha reparado. Alguns vegetarianos e viajantes acham-se pessoas especiais, num nível acima. Quem me conhece sabe que estas são duas qualidades que prezo e admiro, mas estão longe de definir um indivíduo...

Os sérvios são danados p’rá bebida...

Ficámos neste pub umas três horas, bebendo cerveja e rakia, a bebida espirituosa mais famosa dos balcãs. Houve um episódio interessante... a dada altura o Grua (algo assim) está a provocar o Pawel, dizendo que ele não bebia ou uma cena assim qualquer. No gozo, mas isto tocou ali no ego do Pawel, que para provar que sim, era um homem, arregaçou a manga e desafiou o Grua para um braço de ferro. Hum? Ok. Pitoresco, no mínimo.

Conheci também lá o Jovan (outro) que me deixou muito mais descansado com o Paquistão. Não estava aterrado, mas era o país que me deixava mais hesitante. Ora para ele, que já andou pelo sudeste quase todo, é um país apenas precedido pelo Nepal, nos seus favoritismos.

- No Nepal podes fazer tudo o que quiseres pá...
- Tipo quê?
- Tipo acordar e ir às compras nu, que o pessoal ‘tá-se a cagar!

Diz que o Irão é completamente tranquilo e que, para ele, a verdadeira fronteira entre a Europa e a Ásia é quando passas do Irão para o Paquistão. Claro que falou na pobreza e essas meleitas todas paquistanesas, mas ainda assim adorou o tempo que lá passou.

Eventualmente, e depois do Jovan ter bazado, fomos para outro pub, este já maior, que tocava rock. Pagámos dez euros cada, no final, algo inesperado mas que acontece. Quando fomos embora, mais um encontro com a polícia. Aparentemente o Jovan tinha mijado na rua e os gajos viram-no. Pediram identificação e ele, pensando que tinha pedido de todos, deu a de todos. Ora o polícia deve ter pensado que ele estava a dar a identificação de outra pessoa por outra razão, e sai do carro com cara de quem vai ter de se sentar num varão por uma semana, com a sua testa a centímetros da testa do Jovan, à espera de uma razão para o desancar. Eu não tinha dado a minha identificação, para evitar eventuais horas de escrutínio sérvio, e disse ao João, que não tinha identificação com ele, para se afastar subtilmente. Mas ok, eventualmente lá fomos e não se passou nada. Um gajo tem de ter cuidado, parece que quanto mais para Este, mas a polícia é agreste...
O Jovan não se lembra deste incidente.

Hoje fomos dar uma volta pela cidade. Não é nada do outro mundo a nível de monumentos e cenas assim, mas atrai-me, muito pela história fascinante por detrás de cada parede. Não podes evitar passar em edifícios com buracos de balas, edifícios rebentados com bombas ou recontruídos recentemente. Cenas horríveis se passaram por estes lados... lembro-me vagamente de ser puto e ouvir muito falar na guerra dos balcãs, e lembro-me de uma música dos UHF chamada Sarajevo. Tinha uma imagem na minha mente que sempre achei que fosse exagerada. Mas depois de ter visto os documentários que vi hoje, e de ter ouvido o pessoal, especialmente o Philip, a falar do que por aqui se passou, percebo a realidade. O Philip tem no Tito a imagem de um herói. É certo que após ter morrido, em mil novecentos e oitenta, pouco tardou até isto rebentar tudo, mas curtia também falar, por exemplo, com nacionalistas sérvios (ao contrário do Phil, que se considera jugoslavo) para perceber se realmente havia razões mais palpáveis para a rotura. Iá posso sempre pesquisar, e fá-lo-ei, mas não é o mesmo que ouvir directamente duas opiniões distintas.

Éramos para ir sair hoje, mas o pessoal não estava disponível e acabámos por ficar. Amanhã, festa de despedida! E vou estar com o Frosa (Paulo Franzini), o meu primo que está por cá. Vimos o “Filme Sérvio”, algo do mais horrífico que já vi e que não recomendo a ninguém. Chama-se mesmo “Filme Sérvio” e o Phil acha que: a) quem o fez e assim o intitulou devia ser preso; b) quem o fez e assim o intitulou vai ser assassinado.

Depois vimos um documentário sobre esse rapaz, o marechal Tito...
O sono espera...

2h52-4ª-16-2-11
Belgrado