Não ia escrever. Estava todo partido hoje lá p’rás dez da noite, mas depois ficámos aqui um bocado no paleio, vimos um filme, e agora estou aqui a ouvir os fantásticos “The Wedding Present” e até me deu uma estriquita para escrever.
Istambul anda p’raí a encontrar o seu lugar no meu coração. Chegou ali à zona de preferências e viu Estocolmo sentada lá na poltronazita há seis anos, com Budapeste e Praga encavalitadas em cada perna da capital sueca. Não está fácil porque estas não querem sair e Istambul não está cá com cenas e mais um dia ou dois de me fazerem sentir como um puto e vai tudo porta fora. É que é isso mesmo que me faz sentir. Mal cheguei não conseguia deixar de ficar de boca aberta. Chegámos lá p’rás onze da noite, uma quarta-feira em Fevereiro e era mais pessoal na rua do que em Lisboa num domingo de Agosto! Mas tudo a seu tempo...
Na noite anterior tínhamos decidido fazer uma corridinha de boleias até Istambul. Assim, quinta acordámos, e quanto tomávamos o nosso pequeno-almoço grátis (de onde trouxemos um par de croissants cada um) fizemos par ou ímpar e depois pedra-papel-tesoura e ficou decidido que eu apanharia a primeira boleia, o Pawel a segunda e o pobre João a terceira. Acabou por não ter nada a ver, mas a ideia era essa. Despedidas e tal, e plantamo-nos à porta do dormitório. Parou logo uma senhora, que nos levou até à entrada para a autoestrada, com o auxílio de uma amiga a quem ligou para traduzir. Ora tínhamos acabado de sair deste carro, esticámos o dedo e o segundo carro a passar pára de imediato. O dia começava bem! Ele podia levar três pessoas, por isso seria estúpido ir só eu para ganhar a corrida. Deixou-nos em Komotini, e lá deixámo-nos ficar pela autoestrada. O pessoal que relaxe que se for um sítio bem escolhido não é assim tão perigoso. Pena é a polícia grega não achar o mesmo. É que passado menos de quinze minutos de lá estarmos eles apareceram para dizer olá. Os gajos daquele carro amarelo devem ter ligado! Foram fixes e tudo mais, mas mandaram-nos bazar. E bem que tentámos. Mas estando ali à entrada não era bem o mesmo... e por isso voltámos, duzentos metros à frente, e do lado de fora dos rails.
Ficámos lá meia hora até que, como um abutre faminto, começou a pairar sobre nós a ideia que isto de andarem três gajos à boleia não vai com nada. Assim o Pawel lá decidiu ir à sua VIDA, ficando nós para trás. O acordo era que se ele apanhasse uma boleia mandava um toque e se visse a bófia mandava mensagem. Não vi a tempo a mensagem dele, mas ‘tá-se bem, porque os polícias que apareceram, apesar de terem parado, só queriam saber o que estávamos a fazer. “Ah, à espera de um amigo, sabes?”. Até íamos bazar, mas eles disseram para ficarmos, mas para termos cuidado. Porreiro.
Quem não achou o mesmo foi o polícia que apareceu dez minutos depois, o mesmo que previamente nos tinha avisado. Tivemos mesmo de bazar. E entretanto o Pawel já tinha mandado o seu toquezinho a avisar que se tinha safado.
Fomos para a entrada da autoestrada. Boa sorte! Jogámos daqueles jogos parvitos tipo dizer todos os sobrenomes que existem, ver quem se equilibra mais tempo de certa forma e essas cenas, até que o João se cansou e decidiu voltar para a autoestrada. Eu não estava muito a fim de ir preso, por isso fiquei. E ainda bem, porque passados cinco minutos apareceu o Giorgios, que abriu a porta do seu carro, que nos levaria até Alexandroupouli, mais pertito da fronteira grega. Ao darmos a volta para entrarmos na autoestrada eu pedi-lhe para levar o João e o chavalo lá veio. Se calhar se lá estivéssemos os dois, ele não parava. É engraçado isto. É como pedir boleias nas estações de serviço. Basta iniciar contacto, nem necessariamente super-agradável, simplesmente contacto, que o pessoal já faz oito mil vezes mais por ti do que quando tu eras anónimo. O pessoal nem se importa de ajudar desconhecidos, mas anónimos deus nos livre!
Ficámos na auto estrada, antes da saída. Já parecia estarmos numa zona de polícia diferente, por isso mesmo que aparecesse alguém, já não estávamos naquela cena de “à terceira é de vez” porque ia ser a primeira vez que nos viam. Isso para mim chega.
O João ficou lá parado a seguir a uma entrada com o seu cartazito a dizer “Turkey” e eu segui caminho. “Se aparecer a bófia manda toque”. Começou a nascer em mim ali no peito aquela cena. Caminhava estrada fora, sentia o Vento frio mas agradável que não me deixava dormente perante os limites da minha pele, à direita via o mediterrâneo, à medida que, como ponteiros num relógio estragado, ouvia o barulho dos carros a passarem à direita. Senti-me incrivelmente feliz. Não sabia se me ia safar. Sabia que ia chegar à Turquia, nem que fosse a pé. Mas não sabia se os carros iam parar, se ia ficar sozinho o resto do dia. Sabia que estava ali, e que pensava, e que esses pensamentos não me martirizavam. É que por vezes martirizam. O meu existencialismo às vezes é chato. Quero sempre respostas para cenas mais ou menos descabidas. O sentido disto e daquilo, os porquês e essas cenas que às vezes são como uma pedra no sapato. Mas nestes momentos, a maioria das respostas, quase independentemente das perguntas, é o que se está a passar naquele mesmo momento. E são estas experiências que ficam e ajudam a ver a VIDA como algo que, com ou sem sentido, com ou sem razão de ser, é bestial, engraçada e com um potencial de risadas inesgotável. É incrível quando temos perfeita consciência de que estamos a fazer algo de que nos vamos lembrar para sempre. Nesses momentos vivemos o futuro inteiro em cada segundo do presente.
E o mais engraçado é que, apesar de não saber se ia ser apanhado ou não, passados dez minutos estava no camião do Borislav, um búlgaro que, apesar de não falar uma palavra de inglês, conversou comigo durante meia hora, ficando eu a saber que tem um filho de onze anos chamado também Borislav, que transporta tabaco para a Bulgária, que voltará à Grécia e enviado para os EUA. Já ele ficou a saber os detalhes desta viagem. Um gajo vai aprendendo a comunicar – além dos óbvios trejeitos, há palavras que são parecidas em várias línguas e outras que apesar de não o serem são percebidas. Como colega, voyage, kaput, money, yes, no, friend/freund (tentativa de escrever em alemão), nicht (idem), etc.
Antes de ter apanhado esta boleia tinha visto que estava um camião parado lá ao fundo e duas pessoas perto do mesmo. Fiz zoom com a câmara mas nenhum deles era o João. Contudo, a verdade é que eram dois condutores amigos de dois camiões. “Vem um camião atrás, vai nesse”, gritou o João pela janela, passando por mim.
Quando saímos, a dez quilómetros da Turquia, um rapazola que trabalhava na alfândega apanhou-nos quase de imediato. Agora o problema era passar a pontezita entre a fronteira grega e a turca. É que tinha lá uns ménes do exército com armas e não sei quê. Era a vez do João arranjar boleia primeiro (não havia carros lá, só camiões), e assim o fez. Após ter arranjado a sua, eu arranjei uma só para me levar até ao outro lado. O gajo deixou-me do outro lado da ponte e eu lá fui tirar o meu visto, não sem antes ser submetido a um teste sobre jogadores de futebol turcos, pelo polícia que vê os passaportes.
Entrei na Turquia e andei lá dum lado p’ró outro a perguntar ao pessoal se ia para Istambul. Agora eu estava esquisito, não ia numa boleia qualquer. É que ali havia bué de pessoal a ir para Istambul, por isso porquê ficar a meio? Arranjei lá um contacto dum méne que me disse que não me podia levar mas que o seu amigo podia. Porreiro. Dirigi-me à saída da fronteira, entreguei o meu passaporte, e o gajo pergunta-me se vou ficar em Couch Surfing. Surpreso, digo que sim, e quando lhe pergunto como sabe, diz que também é. Quando pergunta se vou ficar com uma rapariga e digo que sim, pisca-me o olho. Iá há bué pessoal que vê no site mais do que realmente é. Conheço muita gente que já se safou com couchsurfers, o que não tem problema, porque o que acontece, acontece. Mas quando o pessoal tem isso já em vista antes de mais nada, desvirtua um bocado a cena. Na homepage há uma secção com “nearby travelers”, onde vemos pessoas que têm, por exemplo, um perfil registado no Porto, e acedem à sua conta noutro sítio qualquer. Bué de amigas minhas dizem que estão fartas de receber mensagens de pessoal que está “looking for a good time”... Eu já recebi uma proposta de casamento da Nigéria, alright! Quem não conhece o projecto, dêem uma espreitadela. É a única forma de estadia que concebo. Além da óbvia cena que é não se gastar dinheiro, ficámos com pessoal que vive no sítio e está, muitas vezes, disposto a mostrar-nos as cenas e tal. Além disso, através deste site conheci amigos de que nunca mais me vou esquecer. Se estás em Portugal, é uma maneira de viajar sem sair do sítio, sendo que passam por tua casa pessoas de todos os lados, de todos os tipos. Faz-me falta. Vivendo em Vale de Cambra, por mais espetaculares que são os nossos amigos, como considero os meus, são os nossos amigos. Não há assim tanto pessoal com ideologias diferentes a passar para nos ensinar sobre outras cenas em que nunca sequer pensámos. Claro que aprendemos imenso uns com os outros, e com as experiências uns dos outros, mas de certa forma é, por vezes, um bocado limitado.
O rapazola que disse que me tinha arranjado uma boleia lá passou, apontou para trás, para o seu colega, e quando este passou, disse qualquer coisa como “pausa” e fez sinal de sesta. Hum? Fiquei sem perceber a cena muito bem e foi por isso que, quando o João passou no camião do seu turco, acedi aos gestos do mesmo, e lá fui. O gajo não falava inglês, mas foi bestial connosco. Não só estava a levar dois chicos num camião com apenas dois lugares, como também nos pagou um almoço num restaurante daqueles que deve ver um turista por milénio.
Demorámos umas quatro ou cinco horas até chegar aos subúrbios de Istanbul. Esta cidade tem vinte milhões de pessoas, por isso quando falo em subúrbios, falo numa distância que nos levou uma boa meia hora a percorrer, dentro do camião de um méne que parou na autoestrada para nós. Este deixou-nos mais perto do destino final mas ainda assim longe. Lá nos pusemos a caminho com o polegar espetado, até que apareceu a bófia. Os gajos eram fixes, mas via-se que estavam confusos, sem perceber o que é que um gajo estava ali a fazer. Lá nos levaram até uma paragem de autocarro para chegarmos ao nosso destino, mas autocarros era algo que não havia. O João queria ir a pé e tentar mais boleias, mas o Pawel e a nossa anfitriã Refika estavam à espera há um pedaço e dá-me um bocado de ansiedade quando sei que estão à minha espera – por isso apanhámos um taxi, que custou cinco euros.
Pá eu não cabia em mim, nem conseguia fechar a boca. Só pessoal méne! Numa quarta-feira as ruas cheias, aqueles sons todos árabes, as lojas sem fim a vender sumo de laranja (portokala), as xixas, os bares, os cheiros. A natureza morta tem fortes influências europeias, mas todo o ambiente tem um claro tom de Médio Oriente.
Fomos a um encontro de couchsurfers onde estavam uns cem. Já percebi que onde gasto mais guito é a cortiré. Quatro cervejas de meio litro, dez euros assim, pam! Mas que se lixe. Fomos para casa lá p’rás duas e tal e ficámos na conversa na sala. Estava lá também um amigo da Refika que se revelou um tristito. Cenas. O gajo está filado na gaja e disse-lhe que não tinha gostado nada do Pawel e que eu era o perigoso. Há outros detalhes muito mais interessantes mas que não convém revelar num blog acessível a toda a gente, sendo que esses detalhes foram contados à laia de segredo, pela nossa anfitriã.
No dia seguinte andámos pela cidade, as cenas do turista viajante. Ver isto e aquilo, experimentar isto e aquilo. Isto não é um guia turístico. Fixe foi ter ido a uma mesquita na altura de reza. Estávamos a chegar a casa e ouvimos aqueles sons todos marados. Cada mesquita chama o pessoal para a reza cinco vezes por dia, sendo o chamamento um méne a cantar com a sua voz a ser propagada por uns altifalantes que cada templo tem. Detesto religião e essas cenas, mas é uma cena bué exótica e que me lembra quão longe estou de casa. fomos à mesquita e estivemos lá p’rai quarenta e cinco minutos. Não rezámos porque não sabemos o que rezar, naturalmente, mas estivemos lá com os ménes a seguir a coreografia de ir ao chão, tocar com a cabeça, etc. É uma espécie de yoga preguiçoso que até relaxa. Não havia mulheres e estou certo que éramos os únicos estrangeiros. Foi uma experiência interessante que me deixou a pensar no porquê de se perder tempo a falar com alguém que não está a ouvir. Não quero ser desrespeitoso e não digo isto advogando que, por exemplo, o cristianismo é melhor. O significado, ou a ausência do mesmo, é algo mais abrangente e lato que uma ou outra religião.
Ontem tivemos outra reunião de couchsurfers, desta feita organizada por nós. Lembrámo-nos de publicar no grupo e apareceram umas quinze pessoas. Foi mais ao meu estilo. Curto assim porque dá para falar com toda a gente. Quando somos cem pessoas se calhar abandonámos um bocado a qualidade das interacções e abunda mais a quantidade. Conheci lá um gajo russo, da Sibéria com cara de chinês, que andou na China uns quatro meses sem visto. Parece fixe e corajoso. Mas quando foi apanhado teve de pagar dois mil dolares! Pam! Pena foi a má notícia que o Dan, um inglês viajado, me deu. Aparentemente a única forma de passar do Nepal para a China é fazendo parte de um excursão e pagar milhares a uma agência turística do bufo qualquer. Bela porcaria. O problema é: o meu visto indiano é só de uma entrada. Pelos vistos não dá para passar da Índia para a China. Não consigo visto para Myanmar. O Bangladesh está rodeado pela Índia. Assim: Índia-China na parte ocidental, zero. Índia-Nepal-China, zero se tiver de pagar os milhares. Índia-Bangladesh-Índia-China, zero porque não posso entrar mais que uma vez na Índia. Myanmar-Tailândia, zero porque só consigo um visto para Myanmar se voar. Burocracias. Mas pode ser que o méne tenha falado sem saber. Depois vejo. Se tiver de voar quatrocentos quilómetros de Katmandu para o sul da China, tem de ser...Depois vejo.
Esse gajo tinha bazado mas depois veio ter connosco ao Pixie, um bar altamente de dubstep, onde me entreguei à pista de dança. Olhos fechados, abrir os braços e curtir. Quero ir ao Boom em 2012. ‘Bora? Depois acabámos por ficar em casa dele. Comprámos duas cervejitas e estivemos lá a conversar até às cinco e tal, sentados num tapete encostados a um corredor. A conversa andou muito à volta de como os turcos são, e não sei quê, e oitenta por cento são assim ou assado. Às vezes não sei se me recuso em acreditar em certas cenas porque são efectivamente uma grande treta, ou se me recuso a acreditar porque não quero acreditar. E não sei se isto é uma entrega à ignorância, uma entrega à razão, ou uma entrega a um estado de espírito que me permita estar completamente despido de qualquer preconceito ao conhecer alguém. Quero dar as mesmas oportunidades seja a quem for, quase como se, para mim, as pessoas começassem apenas a existir no momento em que as conheci.
Agora, por exemplo, estou no carro de um turco cipriota, e ele, apesar de parecer um gajo porreiro, vem com o mesmo paleio que se ouve um pouco por todo o lado, mas sobre pessoas diferentes – que se odeia estes, e aqueles, e que estes fazem isto e aquilo.
- Eles na Índia cagam na rua, sabias? Vão a caminhar e cagam! – diz-me.
- Não acredito nisso – digo.
- A sério? – diz ele, esticando a mão em jeito de aposta.
- A sério. É que já lá estive e não vi nada disso – respondo.
Pois estou agora no carro do rapaz e vamos para Sile, um sítio a sessenta quilómetros e Istambul, na praia. A nossa anfitrião lembrou-se de irmos acampar, publicámos no couchsurfing no grupo de Istambul e juntaram-se a nós duas ou três pessoas. Mas iá, não está tempo disso, por isso vamos ficar em casa de um amigo dela qualquer.
21h23-s-26-2-11
Algures entre Istanbul e Sile
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