domingo, 6 de fevereiro de 2011

Até Parma


Estar nestes comboios lembra-me quando andei por aí, em caminhos italianos, com o Kidus. Foi há quatro meses. Esta sensação não é nova, mas talvez seja nova a sua referência nos meus escritos... acho eu. Falo da temporalidade relativa do viajante. Para mim que, não tendo nada que fazer, acordo sempre por volta do meio dia, acordar de manhã dá-me logo a sensação, ao fim da tarde, de que vivi dois dias, ainda que nos dias em que me levanto tarde acabe por dormir as mesmas oito horas aconselháveis. Agora isto aliado à viagem faz com que um dia pareçam quatro ou cinco. O tempo tem manias e diz-nos que são as horas que lhe apetece. Como saberíamos se o tempo não fosse, na realidade, constante? Se os carros andassem mais devagar, ou o ponteiro do relógio, ok. Mas se a nossa capacidade perceptiva e de interpretação estivesse também mais atrasada, a nossa visão da realidade era a mesma, ainda que tivesse passado num ápice, ou num ano. Teorias e incertezas. Mas guardo como certeza esse facto que é o desdobramento da percepção de tempo que se tem quando em viagem. Talvez por vermos mais coisas, por nos ocuparmos de mais coisas, ou pelo nosso organismo fazer por aproveitar mais de cada segundo, em conluio com a nossa mente de ávida criança.

Hoje acordei em Génova e ontem em Marselha e Marselha parece que foi há tanto tempo que me tenho de esforçar para recordar, apesar da epopeia que foi. Um dia com sete boleias e umas quinze horas de viagem!

Depois do pequeno-almoço tomado e das despedidas lançamo-nos ao destino. Não havia possibilidade de apanharmos um autocarro até uma estação de serviço ou assim, por isso fomos ali para um sítio à saída, com uma placa a dizer “A7àA8”. Deixamo-nos ficar ali uns dez metros atrás do gajo que já lá estava, e depois de ele ter ido para Aix, apanhámos nós a boleia do Zoer, um marroquino radiologista, que nos deixou numa estação de serviço onde poderíamos perguntar ao pessoal se ia para Nice. O sol brilhava alto, continuando a concretizar a sua clara intenção de nos perseguir e zelar por nós. Eis que o João tem a ideia de ir para a zona de desaceleração com a nossa plaquinha a ver se arranjava alguém que fosse para os nossos lados. “Se apanhares alguém manda toque que eu venho logo”. ‘Tá-se bem. Uns dez minutos depois falo com um senhor gordo, de óculos a enfeitar uma cara simpática com uma carrinha de matrícula checa (por vezes dá jeito ver de onde são) que nos levava até perto de Nice. Tento ligar ao João, mas nada. Peço ao senhor para esperar, que assente não sem antes me dizer que não tinha muito tempo, e dou uma corrida, apenas para ver o João a caminhar ao lado de uma carrinha com umas luzes azuis a piscar. Fixe. Aproximo-me a aparece uma senhora polícia de face jovem e atraente, toda zangada a dizer já nem sei o quê. Disse-lhe que já tínhamos encontrado alguém e que esse alguém nos esperava, ao que ela respondeu dizendo que não queria saber. Não custa tentar... Pediram os meus “papéis”, que lhe dei, e ao João que, não tendo o seu bilhete de identidade ou cartão de cidadão com ele, lhes deu o seu cartão de estudante e um cartão do seguro europeu de não sei quê. Confesso que estava pronto para uma boleiazinha policial, mas para surpresa minha, estes cartões foram suficientes. Foram-se embora tranquilos dizendo que em França era proibido andar na autoestrada.

Passado p’rai uma meia hora apareceu o Matthiew (em francês, não sei como se escreve) para nos levar. Disse que ia para Aix e lá se calhar era melhor. ‘Tá tudo. Note-se que Aix era para onde o outro gajo da boleia tinha ido, num carro com ainda três lugares disponíveis. Em Aix deixou-nos num sítio aparentemente porreiro, numa saída mesmo para a autoestrada onde passavam centenas de carros, mas devagar, numa fila apenas, e com espaço para pararem à frente. A frustração apareceu aí um bocadito. Eu aceno, sorrio, e essas cenas todas, e o pessoal faz o mesmo, e segue em frente. O medo do pendura! Medo de quê? Tu paravas para levar alguém? Há situações mais limite que outras, naturalmente, mas ali estávamos nós, dois rapazes com duas mochilas, aspecto tolerável/normal, sorrisinho no rosto, onze da manhã... O medo da ínfima probabilidade de que nos façam algo impede-nos de ajudar pessoas em situações menos favoráveis. Temos de ter cuidado com tudo, e tomar conta de tudo! A probabilidade de apanhar alguém que nos queira fazer algo é de, sei lá, que seja um em dez mil. Mas por causa disso privamos a nossa ajuda a cem por cento das pessoas. Agora quando se conhece alguém num bar que se leva para casa, o sítio onde vivemos e quem sabe outros que nos são queridos, aí é tranquilo. A coerência aqui escasseia. Note-se que não critico que o pessoal se entregue e que efectivamente leve alguém para casa numa noite mais acalorada, conquanto as circunstâncias assim o permitam e não haja factores externos que saiam danificados. O que critico é a falta de consistência de comportamentos. É diferente, claro que é diferente... mas será que é assim tão diferente?

E por isso mesmo ficámos em Aix umas duas horas. Eventualmente descemos um bocado e estávamos mesmo à entrada da autoestrada, mas ainda numa estrada secundária e onde os carros circulavam lentamente. Finalmente parou a Isabella, senhora francesa de cara simpática e de quem sabe o que quer, que viveu em Singapura, trabalhando como instrutora de Pilates, em Pequim, fazendo o mesmo, e que já correu meio mundo, com o marido e os filhos, até que, para a educação dos rebentos, se estabeleceu no seu país de origem. Já tinha, no passado, andado à boleia, um factor que, tenho vindo a descobrir, aumenta as nossas probabilidades em dez milhões por cento. O azar foi que a Isabella ia para Toulon e não havia nenhuma estação de serviço antes dela virar para aí, o que significa que andámos uns vinte quilómetros numa direcção nem por isso conveniente... Ficámos numa estação de serviço deserta, e atravessámos uma ponte para o outro lado, ficando numa estação de serviço que sempre tinha mais gente e tinha essa vantagem que era ser estar na direcção que nos interessava. Falámos com os caros camionistas e fomos levando as nossas negas do costume. Sem problema. A dada altura, e depois de uma dessas negas, percebi, vendo a matrícula do camião, que tinha falado em francês com um português. Voltei atrás e voltei a perguntar. A resposta foi diferente, ainda que igualmente negativa. Todavia, passado um bocado, o Humberto lá me chamou. “Pá, eu ainda não sei se vou para a Itália ou para a França, estou à espera de serviço. Se eu for para a Itália, posso deixar-nos perto de Cannes numa estação de serviço...”. ‘Tá tudo ó Beto! Deixamos o português e fomos tentar a sorte mais meia hora, interpelando as pessoas que iam passando. Não conseguindo nada, fomos comer o nosso pato. A cena é que em Marselha encontrámos, ao lado de um caixote de lixo, uma caixa com mais de vinte euros em comida, quase tudo dentro de prazo. De alguém que se mudou, suponho. Trouxemos algumas cenas, claro. O pato estava um bocado horrível. Não por horrível ser, mas porque estava envolto em banha, e um gajo não tinha exactamente os dispositivos para se livrar da pasta amarela. Mas fechou qualquer buraco que se quisesse abrir no estômago.

Acabávamos o nosso manjar quando o Beto nos chama ao fundo. “Hei!” – caminhamos na sua direcção, todos contentes.
- É assim, eu vou para a Itália... mas e se aparece a polícia?
- Não aparece nada... Ande lá, faça o jeito.
- Isto é muito complicado, muito complicado... e se aparece a polícia, como é?
- Nós pagamos a multa – esta conversa demorou mais um bocado. Ele ainda disse a palavra “complicado” mais oito vezes e “polícia” mais sete. Lá nos metemos a bordo, o João sentado no colchãozito e eu no pendura. O Beto era camionista há nove anos, e estava farto de Portugal, da crise e “dessas merdas todas, pá”. Equacionava ir para a Noruega, onde “o salário mínimo são quatro mil e quinhentos euros”, coisa de que duvido seriamente. Quase que dava para ver o Beto a mudar de ideias, se uma pessoa olhásse com atenção. Começou com “eu podia levar-vos até à Itália... mas não, não...” e acabou com “Vocês querem ir até à Itália”. Ah pois queremos, ó Beto!

Parámos de qualquer maneira na estação de serviço onde íamos parar. Os portugueses reinavam por ali, e pensámos em ir atirar o barro à parede. Não foi preciso barro nenhum porque o Beto conhecia o Edgar, que acabou por me levar a mim, ao passo que o Beto continuou com o João, tendo nós marcado o rendez-vous para não sei onde na Itália. A viagem de Cannes até não sei onde na Itália é esplêndida. Mas o Edgar não é gajo para andar devagar, e eu via-me ali a atravessar aquelas pontes e só pensava em como seria transmitido no telejornal a notícia de um acidente envolvendo dois portugueses a cair de uma ponte de trezentos metros, dentro de um camião, e com o milagroso sobrevivimento do mais novo. A cena é: quando num camião, a cabeça de um gajo está p’rai a uns três metros de altura. Isto é fixe quando vamos tipo numa auto-estrada, e temos o conforto daqueles estofos aliado à visão privilegiada e pseudo-magestral que os três metros atribuem. Mas quando a atravessar uma ponte de trezentos ou quatrocentos metros, um gajo olha para o lado e não vê senão o chão lá em baixo...

Lá chegámos a não sei onde na Itália, que era a oitenta quilómetros de Génova. Achei que ia ser tranquilo, mas não podia ser, para salvar a coerência daquele dia caricato. Estávamos sem sorte nenhuma e o sol já se tinha posto. E tal como os vampiros, depois do pôr-do-sol saem à rua os gajos que andam à boleia que são ainda piores que aqueles que andam de dia. Estes matam também, além de roubar. Lá ia perguntando com o meu italiano macarrónico...

Uma destas pessoas a quem perguntei respondeu que ia sair antes. Não me dando por vencido fiz uma pergunta qualquer e ao responder reparei que a pessoa, ainda que tentando dar um sotaque italiano, usava a palavra “eu”. Voltei à carga, mas desta feita em português e, passado não mais que um minuto do Luís ter dito que ia sair antes de Génova, ele diz que por acaso até ia sair depois, e que nos podia levar. Tinha de esperar para fazer a sua pausa (a minha cultura camionista está a ficar cada vez mais rica... que me perguntem horários, cargas rotas, tudo...) e depois nos levava, mas nos entretantos continuámos a perguntar. Não encontrámos nada e lá fomos com o Luís, que disse que como éramos portugueses nos levava, mas se “fosse assim alguém doutra raça ou assim ou daí” não dava. Eu, pelos vistos, tinha uma panela surpresa na mochila, e lá dentro andava tudo às turras. Valores, respeitos, simpatias, julgamentos e o esforço de não os fazer, praticabilidades, tolerâncias, contextualizações... tinha de tudo um pouco à porrada e o único lesado era eu, que me encontrava numa situação que não me deixaria agradado de maneira nenhuma. É que eu agradeço ao Luís por nos ter levado, agradeço do fundo do meu ser a simpatia demonstrada para um desconhecido, mas não entendo o que leva alguém a ser mais simpático para alguém que fala a mesma língua... só porque sim! Pá eu se estou na Papua Nova Guiné e vejo uns tugas lá a jogar mini-golf, vou mandar um bitaitezinho e socializar... mas porque há um background que partilhamos e facilita eventuais conversas, e um sentimento mútuo que advém da distância a casa. Mas creio serem situações diferentes, na medida em que uma visa algo que não é necessariamente indispensável, o lazer e partilhar as saudosas mágoas, e a outra visa algo que não é necessariamente dispensável, providenciar transporte para que alguém não tenha de passar a noite numa estação de serviço. Se o que me preocupa é a minha segurança, eu confio tanto num português como num espanhol, italiano, francês, e por aí fora... Não sei se faz de mim um hipócrita pensar assim e ter ido com a boleia de qualquer maneira. Teria sido um radicalismo apanhar boleia só de quem passa no “teste do Pedro”, ou é a consideração de isto ser um radicalismo apenas uma desculpa que dou a mim próprio? E o mais interessante é que o Luís se revelou um rapaz bastante simpático e prestável...

Pois assim lá nos levou o Luís até perto de Génova. Queríamos sair nesta saída, depois naquela, depois naquela... e já tínhamos passado Génova... é que os camiões têm, não só os discos que controlam a quilometragem mas também um dispositivo gps que deixa quem se interessa a saber exactamente onde estão. Isto aliado ao facto de consumirem uma média de quarenta litros aos cem, fez com que ele não nos pudesse ter deixado onde mais se nos aprouvia. Tudo compreensível, obviamente. Lá ficámos, já bem de noite, numa estação de serviço para lá de Génova. Não precisámos de pedir a muita gente até que o Shimon (?), um israelita que já andou, há muito tempo, à boleia, nos deixou exactamente onde queríamos – a estação de comboios! Daí foi um tirinho até casa do Giacomo, o nosso anfitrião. O Giacomo e o Mateu foram as primeiras pessoas que já conheci que estudam engenharia náutica. O Giacomo é de Roma e depois das conversas iniciais e uma cerveja, foi comigo dar uma volta a Génova. Um rapaz muito porreiro que me lembra o Leandro. Pelo pouquíssimo que tinha visto de Génova, não estava impressionado, mas depois daquela tour de madrugada de cerca de hora e meia, fiquei agradado. Tem a parte com os eficios fascistas que me agradam visualmente, e tem a parte velha, de ruas estreitas e aquele ar italiano difícil de se escapar. Sabias que a bandeira Inglesa advém da bandeira de Génova. Há muito tempo o reinado de Génova tinha uma reputação muito respeitável nos mares, e ninguém se atrevia a meter-se com eles. Estou a imaginar os piratas “Hei méne vamos àquele? Ai deixa, é de Génova. Aliás, se calhar dávamos era o baza!”. Assim a Inglaterra pediu a Génova para usar a sua bandeira e benificiar da sua reputação. Coisas.  Acho que a Itália é o país que conheço melhor... Roma, Milão, Verona, Veneza, Florença, San Gimigniano, Lucca, Pisa, Siena, Génova... e Parma, daqui a pouco.

Hoje deixamo-nos dormir. Após um breve debate na noite anterior decidimos ficar até mais tarde, sendo que tínhamos apenas cento e tal quilómetros para fazer. Erro. Acordámos, almoçámos com o Giacomo, vimos para onde tínhamos de ir e pusemo-nos a caminho. Caminhámos uma boa hora com a nossa mochila a encostar-nos ao chão, e depois de pedir indicações a umas dez pessoas, e de andarmos um bocado para a frente e para trás, lá demos com a estação de serviço concorrida que ia para o Norte. Tínhamos de nos meter na autoestrada que ia para Milão, e depois na estação de serviço antes de aparecer o novo troço que ia para Piacenza e eventualmente Parma. Perguntei a umas vinte pessoas, até que apareceu o Luciano. Daqueles que nem nos olha nos olhos. Cabelo branco, cara antipática. Perguntei se ia para Norte, disse que não, que ia para Milão, e entrou para pagar. “Ora a menos que algo se tenha passado hoje de noite, Milão é para Norte. Assim decidi tentar outra vez e mal ele saiu perguntei se podia(mos) ir com ele. ‘Tá tudo!

- Estamos a chegar a Parma -

21h40-6ª-4-2-11
Parma, Itália

Sem comentários:

Enviar um comentário