Cheguei a Budapeste todo partido. Tinha
feito os meus oito turnos em Birmingham e fui da Comunidade Terapêutica para a
estação de autocarro por volta da meia-noite. O melhor vôo que tinha conseguido
partia do aeroporto de Stansted às oito e meia da manhã, pelo que tinha de apanhar
um autocarro de Birmingham à uma, estar no aeroporto às quatro, e depois anhar
até à hora do vôo. Detesto este tipo de vôos, passar noites no aeroporto... e é
sempre a mesma merda. Chego lá decidido a não dormir, com medo de não acordar
para o avião, aguento-me na boa a ver séries, e p’rai duas horas antes do vôo
começo a prepositadamente dormitar, sempre a acordar sobressaltado a cada cinco
minutos convencido de que o vôo já partiu. Nunca aconteceu.
Entrei no avião meio torto e nem
cheguei a ouvir as senhoras a dizerem para usarmos coletes amarelos e não
stressar. Nunca as ouço, na verdade... como tenho um amigo que faz, ou já fez,
essa parte, sinto-me um bocado mal por isso, mas a verdade é que acho que essas
cenas já estão gravadas em mim... e depois há aquele argumento meio fatela de
que se um avião cair... caiu. Não me lembro de ver nenhum sobrevivente a dizer “ui
pá, por acaso o que me salvou foi ter saído ordeiramente pelas saídas de emergência
depois de ter mandado o meu oxigéniozito da máscara que caiu!”.
Saí do avião ainda mais torto. “Foda-se,
agora tenho de ver como é que vou ter ao caralho do parque automóvel para comprar
o carro”, pensei. O Gabor já me estava a sair uma bela peça. Co-organizador do
Black Sea Run, o húngaro tinha prometido que ia ter comigo e outra equipa ao
parque para nos ajudar a comprar o carro. Éramos as duas únicas equipas, de
treze ou catorze, que ainda não tinham carro. E vim a descobrir que a outra já
o tinha comprado no dia anterior. Okay, os tugas, os últimos a comprar o carro.
Os tugas e o Sam, que se entugueceu para, e ao longo, da viagem.
Tinha a morada do parque apontada num
papel, que entreguei ao taxista. Doze euros depois, o méne deixou-me num parque
que tinha uns dois mil carros. Duas horas de sono nas trombas, um mochilão às
costas e o céu a armar-se em esperto. “Não me digas que vai começar a chover”.
Tínhamos combinado que, no máximo dos máximos, daríamos quatrocentos euros pelo
carro, já com o registo, que custava quase duzentos euros, e assim, munido
desta ideia, pus-me a perscrutar a cena. Mil, setecentos, mil e tal,
seiscentos, alto! Um clio por quinhentos e noventa! Estava-me a passar com
aquela cena. Tínhamos visto carros privados (sem papéis) por cem euros, e o caralho
do Gabor tinha-me dito que depois de os registar e tal, que o preço ficava mais
ou menos o mesmo. E ali estava eu, a ver carros com aqueles preços terríveis.
Continuei a andar, sempre a andar,
acho que vi os carros todos, e depois de alguma negociação, o carro mais barato
que encontrei foi um carocha por quatrocentos e cinquenta euros. Curti o bicho,
mas aquilo era apertado para quatro, quanto mais quatro com quatro malas.
Troquei algumas mensagens com o João, ele a chatear-me para continuar a ver, eu
frustrado por já ter visto tudo o que havia para ver. Continuei a caminhar até
que vi um Suzuki Maruti branco todo giro cujo preço ainda não tinha inquirido.
Perto do carro estava um gordo meio transpirado e outro gordo com cara
simpática. Perguntei quanto era o carro, mas já estava tomado. Reparei que o
simpático se desenrascava em inglês e comecei a falar com ele, na esperança de
que traduzisse para o outro. “Black Sea?”, perguntou o transpirado. Estranhei,
até que o simpático me disse que o Maruti tinha sido precisamente comprado pela
outra equipa a quem faltava um bólide. Perguntei por quanto e quando o
simpático perguntou ao transpirado, reparei que o gajo fez cara de “hei pá, que
os chulaste tanto!” - tinha sido mais de setecentos euros!
- Podes dizer ao gajo que eu quero o
carro mais barato possível? Todos estes carros são demasiado caros para mim... –
pedi ao simpático.
- Ele diz que tem um Ford Escort por
quinhentos euros... ele ligou a um amigo para o trazer – respondeu. Detesto
quando fazem isto! Não tinha pedido nada e o gajo mandou logo o carro vir,
deixa comigo uma pressão desnecessária.
- Ui, quinhentos euros é bués! –
disse o João.
- Iá, mas tirando o carocha, onde não
cabe nem um besouro, é o mais barato! Mas até curtia o carocha...
- Não pode ser, méne...
Continuei, em vão, à procura, e
voltei aos gordos. O simpático começou a ver carros na internet, dizendo-me que o que o transpirado pedia pelo Escort era
muito. Na internet havia carros
privados a cem euros... a cena é que vinham sem papéis... e a outra cena é que
se quiséssemos legalizar o carro ia demorar dias, e o rally começava daí a dois dias.
- Achas que se levasse um carro
privado sem papéis me lixava? – perguntei ao simpático, que me disse que talvez
não mas que não sabia se valia a pena arriscar. Talvez não? Para quem já tinha
ido de carro ao Mali, o gajo estava a bater mal! É que nessa viagem acabariam
por nos pedir os papéis não só em todas as fronteiras como duas ou três outras
vezes só porque sim. Acabei por resistir ao fascínio de comprar um carro tão
barato e esperei pelo Ford. Pá, era um carro cinzento com rebordos
cor-de-laranja “por causa da neve”, uma roda sem tampão de jante e um tecto de
abrir. Dei uma volta, pareceu-me razoável. “Estou a ver que sabes testar carros”,
disse-me o dono do carro, só porque testei os travões. O gajo estava numa de me
fazer sentir bem... agora que penso nisso, acho que até as luzes me esqueci de
testar...
Liguei ao João, e o gajo continuava a
foder-me a cabeça para encontrar outro, negociar, tirar um do cu, não sei bem
que é que o rapaz queria. Ia falando com o méne, e de quinhentos euros consegui
que baixasse para quatrocentos e vinte. Outra chamada ao João, que queria
esperar para o dia seguinte para depois irmos lá todos e procurar melhor. “Pá,
vou ter de tomar uma decisão, ficamos com este carro”, disse. Já lá estava p’rai
há seis ou sete horas, e se deixássemos para o dia seguinte, sexta, corríamos o
risco de vir o fim-de-semana, atrasarem-se os papéis e perdermos a partida.
Ainda consegui baixar mais vinte euros e apertei a mão ao homem. “O quê,
quatrocentos euros?”, dir-me-ia o Gabor, na noite seguinte, “Isso não é nada! O
vosso carro é o mais barato de todos!” exclamava, para nosso contentamento. “Oh
yeah, o carro comprado mais tardiamente e o mais barato de todos”, sorríamos.
Na verdade, era mais barato do que qualquer um daqueles dois mil que lá
estavam.
Tínhamos um carro.