quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Portalegre, Olivença e Barrancos


Quando bazei de Proença-a-Nova fui tentando lembrar-me do caminho que o Luís me tinha mostrado no dia anterior, e lá fui seguindo tranquilamente. Depois de uma subida mais agressiva, a cena estabilizou e o caminho foi porreiro, planinho, permitindo-me deslizar bem.
                 
O meu pai apareceu quando subia uma estrada qualquer, depois de descer para o rio Ocreza. Dei-lhe a mochila para levar no carro, e depois tive a brilhante ideia de lhe dar tudo o que tinha. Alforges, tenda, tudo. Já me tinha provado a mim mesmo que conseguia fazer isto. Tinha tido um tormento de Vale de Cambra a Águeda e um super tormento de Coimbra a Figueiró e, apesar de ter custado, tinha conseguido. Por isso não havia necessidade de estar ali a castigar-me só porque sim. Mal me voltei a por na Bicicleta, ui, quase que voava. Até demais... porque tive o meu primeiro contratempo técnico. Estava a chegar às Portas de Rodão, uma descida espectacular apresentava-se à frente. Sorri e segui. E depois deixei de sorrir, porque queria deixar de seguir. É que os travões, que de si já estavam mal afinados, estavam húmidos, e travando com toda a força estava a ganhar velocidade! Um bocado assustador. Tive de meter o pé a zorrar no chão, aguentar a dor no gémeo esquerdo, e parar.

O meu pai, claro, disse logo para por a bicicleta no carro e seguir. Disse que não e tentei ir de novo. Não ia dar. A única opção foi por-me a pé. Numa descida espetacular! A pé! Como não tinha onde ficar em Nisa, o meu destino desse dia, tinha pensado em seguir sempre até Portalegre. Mas assim não ia dar. O mais estúpido é que dei por mim a ansiar por subidas!

Lá cheguei às Portas de Rodão, e o meu pai avisou-me que vinha aí uma grande subida e não sei quê, e que eu podia muito bem meter a Bicicleta no carro. Que raios! Não era isso que estava a fazer, mas parecia que estava a testar-me. Recusei mais uma vez, depois de ter ligado ao Santana a perguntar que fazer, e comecei a tal subida. Na verdade aquilo foi grande empreitada, mas fez-se bem. Entretanto a Bicicleta secou e já podia depois descer bem o que se aproximava.

Chegando-se ao Alentejo, andar de bicicleta é outra coisa. Parece mesmo que aquela linha fluvial impõe à geografia a plenitude. Tanto que voei até Nisa. Voei e passei! Tinha a Graciete na cabeça e queria mesmo vê-la nessa noite. Ainda faltavam uns quarenta quilómetros até lá, mas com as asas do amor voa-se fácil. Passou Alpalhão e depois a dúvida se podia andar no IP ou não. Achando que não, mais um desvio até ao Crato, e depois fazer o ângulo recto em direcção a Portalegre. A última hora foi a dez, com pequenas subidas a parecerem paredes. Mas consegui. Fiz p’rai noventa quilómetros nesse dia, e consegui estar com o meu Kidus!

Foi fixe estar em Portalegre, claro. E agora que escrevo de Algeciras, gostava de lá estar outra vez com a Graciete. Mas se lá estivesse ia querer estar em viagem. Complicado.

Fez os 30, o meu Kidus, e fomos jantar com os amigos dela. Tentei tratar de algumas cenas enquanto lá estive e bazei na Quarta, depois de três dias parado. A ideia era a Graciete ir comigo de carro, como se o meu pai lhe tivesse passado a estafeta.
  
De Portalegre fui para Olivença, a cidade mais ou menos portuguesa, mais ou menos espanhola. Tinha pedido à Graciete para lá estar quando eu chegasse, para ter arranjado um hostel e eu poder descansar e tomar banho mal chegasse. Porém a miúda, que até queria encontrar-me a meio, em Elvas, não conseguiu. Os atrasos da Graciete são a maior fonte consistente de stresses que temos.

No dia seguinte, depois do pequeno-almoço no hostel, demos uma voltita por Olivença e seguimos. Queria passar por Barrancos, que implicava um desvio de apenas dez quilómetros, porque tinha curiosidade de conhecer a vila. Por isso, antes de sair de Olivença fui ao grupo da terra do facebook e enviei mensagem à moderadora do mesmo a explicar a minha cena, e a pedir para ela publicar no grupo a ver se arranjávamos guarida. De repente era só malta a responder e já tínhamos mais que um sítio! Altamente!

Foi uma etapa muito madrasta. Subiu bués e doeu-me o rabo como nunca. Tinha de ir parando de vez em quando, outras vezes a caminhar. Mas lá cheguei a Barrancos, a primeira vila portuguesa de quem vem daquele lado, que se vê ao longe, bela ao cimo de uma colina. Enviei mensagem à Ana, encontramo-nos lá no centro e foi levar-nos aonde ficaríamos. 

Quem nos albergou foi uma família que, pelos vistos, é a família cuja casa recebe toda a gente. Uma família cuja casa tem sempre a porta aberta e onde se respira boa onda logo ao entrar. Pois o João, um dos filhos, tendo visto a mensagem no facebook, ligou à mãe e a Maria prontamente disse que sim, mesmo confundindo e pensando que ia albergar um sul-africano em vez de um português que vai para a África do Sul! “Se vêm de bicicleta devem ser hippies”, tinha dito o Luís à sua mãe, na brincadeira. “Pois se forem, são, não há diferença”, respondera a matriarca.
 
Banho tomado descemos à sala e estivemos um pouco à conversa com a família e daí fomos para a mesa jantar um entrecosto espetacular. Senti logo de imediato, pelo discurso das pessoas, um grande sentimento de coesão e comunidade em Barrancos. Touradas, se forem como imagino que são, não é algo que me agrade, mas ainda assim foi interessante confirmar o quanto está presente na identidade do local.

Depois do jantar o Luís, o filho mais novo, pegou em nós e, a caminho da Forja, o bar local, e vindo do mesmo, deu-nos uma pequena visita guiada àquela pacata localidade de casas brancas e beirais amarelos.

Foi um pequeno desvio, mas que valeu bem a pena. Seguiria no dia seguinte para a Serra de Aracena, novamente.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Coimbar e Figueiró dos Vinhos

Na Quarta-Feira acordei e, depois de ter tomado o pequeno-almoço com a Léa, fui ter com o Rui, que me abriria a porta da D’Orfeu para ir buscar a Bicicleta. Perguntei-lhe mais ou menos como saía de Águeda, e lancei-me à estrada. Hoje, em que escrevo de Sevilha, acho que esse foi o trajecto mais fácil, ou o segundo mais fácil. Tive algumas subidas fortes, que na altura me pareciam complicadas. Mas iá, hoje sei que não tinha bem noção da realidade. A verdade é que foi quase sempre plano, e só choveu um bocadito. Só a chegar a Coimbra é que tive que ir ali por Trouxemil e esse último troço subiu um pedaço. Quando cheguei ao Mondego estacionei para ligar ao pessoal a dizer que já tinha chegado e que estava tudo bem, e depois fui para casa do Briosa.

Estava sentado nas escadas do prédio quando o rapaz chegou, acompanhado do Raul. Subimos, comemos uma sanduíche, estivemos na conversa um bocado a decidir o que fazer e depois fui tomar banho enquanto ele e o Raul iam comprar cenas para jantarmos em casa. Viria lá ter o Santi de Vale de Cambra, a Maria João, a Joana e claro, a Inês, que vive com o Petiz (=Briosa). Liguei a aparelhagem e aproveitei aqueles momentos sozinho para reorganizar a minha mala. Reavaliar as necessidades de tantas cenas e sobretudo meter tudo a secar. Aquele quarto parecia uma feira, com tudo pendurado por todo o lado. Em vão, pois nada secaria.

Foi um serão porreiro, entre os debates do costume sempre que estou com o Petiz, sanduíches, vinho tinto, cerveja e jogos de cultura geral.

Teria no dia seguinte a etapa mais complicada de toda a vi... – ia dizer “de toda a viagem”, o que é engraçado, sendo que estou em viagem há apenas 12 dias. Então, posso dizer, de toda a viagem até agora.

Acordei e a chuva fustigava como sempre. O Vento abanava as árvores e o meu espírito um bocado também. Não me apetecia nada pedalar à chuva, mas não me apetecia nada ficar! Mas tinha acordado bastante tarde, e isso faria com que chegasse tarde a Figueiró dos Vinhos. Mas queria ir!! “Pá, queria mesmo ir hoje”, disse, ao Petiz, a olhar para a chuva lá fora. “Então vai”, disse-me o gajo. Pronto, certinho direitinho. Almoçámos os restos de frango do dia anterior, dei uma vista de olhos no mapa e por onde me era permitido passar de bicicleta, despedi-me do Petiz e da Inês, e levei as cenas para a cave, onde estava a bicicleta. Estava meio ansioso e irritável. Já eram quase quatro, chovia para carago e eu só ia porque queria caminho, não era porque me apetecia um belo dia de bicla. Depois não sabia de nada. Precisava de não sei quê, dava voltas e mais voltas aos alforges e não encontrava. Encontrava e depois precisava das cordas para prender a tenda. Zero! P’rai vinte minutos para encontrar o caraças das cordas, que estavam num bolso que nem sabia que existia. Quando um gajo está assim convém pararmos um minuto, respirar fundo e começar de novo, ou então nada aparece...

Lá me fiz ao caminho. A subir até Ceira, pim pim pim. Depois de Ceira tinha de ir por Almalaguês. Sempre a subir. “Aquilo tem umas subidas valentes!”, avisara-me a Inês. “Tranquilo, já domino as subidas”, respondi, com a minha arrogância de quem faz uma cena uma vez e pensa que sabe tudo. A verdade é que não estava muito tranquilo. Mas já tinha percebido que não há mal nenhum em levar a bicicleta a pé de vez em quando, e assim, o fazia, p’rai duas horas depois de ter saído de  Coimbra, debruçado sobre o volante, quando recebi uma mensagem que me daria o alento que precisava para chegar até Figueiró dos Vinhos, custasse o que custasse.

“Olá Pedro! Sou a Carina, de Figueiró. Tens casa à tua espera. (: alguma hora prevista pra chegada? Alguma comida que prefiras?”

Antes de sair de casa do Petiz tinha tido a feliz ideia de dar uma vista de olhos no couchsurfing a ver se encontrava alguém que me pudesse albergar. Havia três perfis, mas não tinham grande actividade, pelo que escolhi um, meti o nome no facebook, foi parar a um perfil, e aí sim, enviei uma mensagem. Resultara, e isso era espectacular, já não ia ter de acampar à chuva ou pagar p’rai vinte euros para dormir numa pensão qualquer. Também era fixe ter esse destino marcado. Se não o tivesse, talvez parasse mais cedo. Mas tendo onde chegar, chego!

Não me enganei nenhuma vez, mas isso porque perguntei o caminho p’rai vinte vezes, sem exagero. E isto porque passei em sítios do mais pitoresco e escondido possível. Correndo Portugal por estradas onde apenas bicicletas podem andar vemos um lado diferente do nosso país. Apesar de nem sempre ser fixe, porque sobe bués, apercebemo-nos de que Portugal é ainda mais bonito do que pensávamos, mais autêntico. E tem espaço para carago! É só monte!

Entretanto anoitecia e eu já todo partidinho! Comi duas barras energéticas e continuei, pelo breu. Passei Venda de Moinhos, enviei mensagem à Carina a dizer que estava atrasado. Daí passei por Avelar, a pensar que estava pertinho, e segui sempre. Desci bués para Ribeira de Anges num café para encher a garrafa de água, e depois... a subida. Subiu bués por lá cima, não havia luz nenhuma naquele monte, chovia e o Vento dançava. Passava um carro a cada meia hora, e quando passou uma carrinha de caixa aberta o condutor disse-me que Figueiró era já ali. Bazou, deu a volta, e perguntou se eu queria que me levasse lá cima. “Não, obrigado”, respondi. Não cheguei a pensar que sim, mas pensei em pensar. Ia arrastando a bicicleta a pé e estava a custar-me tanto que de repente aquilo não fazia sentido nenhum. De repente não fazia sentido ir de bicicleta se não tenho preparação, se me canso desnecessariamente, se isto, se aquilo. Mas levantava-me e mandava esses pensamentos para a escuridão, e seguia. Chegado lá cima esperava ver Figueiró. Mas ainda tive uma hora de descidas e subidas, até que vejo a placa. “Consegui!”. Tinham sido oito horas para fazer cerca de cinquenta quilómetros. Tinha sido um tormento, mas nesse momento falava com a Carina, que mandaria o pai dela buscar-me.


Estou no chuveiro, em casa dos meus anfitriões. Sinto a água que desce da minha cabeça deixar um sabor salgado na minha boca. Encosto as mãos à parece e sinto as pernas a latejar. E de repente estou no sítio onde sabia que estaria, o sítio onde afinal tudo faz sentido, e o sítio onde os nossos esforços são recompensados, nem que seja com a mera constatação de que nos superámos.
 
Mas a recompensa não seria só essa. Em Figueiró lavaram-me a roupa suja, secaram-me toda a minha roupa molhada até quase esgotarem os radiadores da casa, deram-me salada, sopa, arroz de pato, vinho e bolo, e deram-me um bom serão de conversa e relax. Até que sentia o João Pestana a aproximar-se, e me despedi na São, o Licínio e a Carina.

No dia seguinte, depois de almoçar e da São me fazer umas sandes de omolete, segui para Proença-a-Nova.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A Partida



Terça-Feira, dia 4 de Fevereiro! O dia de partida! Depois de tantos meses, era aquele o dia em que, finalmente, ia bazar. Há milhões de anos atrás, quando andava pela Ásia, comecei a fantasiar com uma viagem do Alasca à Patagónia sem voar. Tinha curtido tanto o conceito de longas viagens por terra que queria continuar. Depois comecei mesmo a curtir o conceito de “Daqui Ali”, e pensava em ir de Portugal ao Leste da Rússia, apanhar um barco para o Alasca (se fosse possível, não sei se é), e depois ir daí à Patagónia.
               
Mas comecei a pensar... e percebi que eu queria mesmo era visitar o mundo todo. E África faz parte do mundo, ainda que às vezes não pareça. Estamos sempre a ouvir coisas assustadoras deste continente, e supostamente é o mais exigente para se viajar. Ora estas estórias do quão terrível é deixou-me com vontade de o ir conhecer. Será que é mesmo assim? Nasceu aí o bicho africano em mim. Não só comecei a pensar em lá ir porque queria ver se era mesmo assim tão mau, mas também porque se realmente fosse assim tão difícil, eu queria atravessá-lo o mais cedo possível, enquanto sou esta pessoa que não tem grandes exigências em termos de conforto, que tem a estaleca jovem que lhe permite... qualquer coisa. Nem sei se este último argumento não será uma desculpa esfarrapada, pois só deixarei de ser esse jovem se me permitir. Mas pode ser que me apeteça, mais cedo ou mais tarde, adoptar um estilo diferente. Não quero ser refém de mim mesmo e prometer-me que sempre andarei a viajar em baixo custo, à boleia e a dormir no chão se for preciso. Neste momento isso faz um sentido enorme para mim, mas não sei o que me reservo.
               
Estava então decidido que ia para África. Mas como? À boleia, claro está. Quando tempo? Um ano. Para dar a volta toda. Parecia-me bem. Contudo, em Abril, pouco depois de ter lançado o meu livro sobre as viagens asiáticas, fui a um encontro de viajantes organizado pelos escuteiros, em que várias pessoas falavam acerca das suas aventuras. Era num Domingo, e calhava mesmo bem, porque no dia anterior apresentaria o meu livro na Cineteka do Parque das Nações. A mesma viagem servir-me-ia dois propósitos.
               
Com duas horas de sono à pala da noite lisboeta fui para o Cais do Sodré contar as minhas estórias e ouvir as dos outros. Foi um dia cheio e porreiro, e tive oportunidade de ouvir o Rafa e a Tânia a falar da sua viagem de bicicleta de Portugal a Macau. Notava ali algo de diferente e de apelativo. Depois foi o Idílio falar da sua viagem, também de bicla, do Canadá à Patagónia. Okay, estava a confirmar-se que algo nascia dentro de mim. Tinha que dar uma voz interna àquela vontade... “Foda-se, vou até à África do Sul de bicicleta!”. Não havia volta a dar, estava decidido.

Ainda tinha muito caminho pela frente. Tinha decidido que ia em Janeiro do ano seguinte, ainda tinha muito tempo para preparar tudo. Mal sabia que prepararia tudo em três ou quatro dias, e que partiria, nessa Terça de Fevereiro, a sentir que já ia atrasado.

No dia de partida fui de manhã com o Santi a Sangalhos buscar uns alforges para trás e o porta-alforges para a frente à Majori Bikes. Quando cheguei a casa, depois de preparar uns livros para enviar por correio enquanto o Santi instalava o porta-alforges, e de almoçar com o meu irmão, chegou o João, o Pipita, o Miguel e a Ausra para me darem a despedida. Tinha-lhe dito que bazava às onze da manhã. Depois às duas, depois às duas e meia. Estes amigos ajudaram-me a preparar tudo, desde meter a luz, a buzina, fazer a mala, instalar o conta-quilómetros, e o meu pai tinha chegado há meia hora quando eu estava pronto para partir, passava o relógio das quatro. Da sala a minha mãe expressava a sua incompreensão em eu querer ir naquele dia em que São Pedro parecia querer castigar os meus pecados. Chovia e o Vento rugia. O meu pai também não percebia. Aliás, todos me aconselhavam a ficar. Mas eu tinha que ir! Já queria ter ido na Segunda e não tinha dado. E queria chegar a Portalegre no dia 10 para o aniversário da Graciete, e as minhas contas a 40km por dia obrigavam-me a partir naquele dia. Tinha de ir! Não podia deixar que, logo no primeiro dia, circunstâncias externas a mim, como o clima, me travassem.
               
Meti o capacete, vesti o casaco, meti a mochilas às costas e outro caso por cima da mesma, tirámos umas fotos, e meti-me na bicicleta. Comecei a deslizar, sorri abertamente para a estrada e gritei para os meus amigos e família “HASTA LUEGO!!”. Estava em viagem, e tinha saído da porta de minha casa, o que eu mais queria.

O João tinha dito que o meu pai ia comigo até Águeda. Pensei que estava no gozo. Mas não só veio até Águeda como ainda fez comigo o trajecto Figueiró dos Vinhos – Proença-a-Nova e Proença – Portalegre, de onde agora escrevo. Foi ter comigo à rotunda quem sai de Vale de Cambra, e já estava eu encharcado. Ora como estava de bicicleta não podia ir por nenhuma via rápida, pelo que tive que ir pelas terriolas entre Vale de Cambra e o concelho de Oliveira de Azeméis. O problema de viver num Vale é que tem, bem... montes. Vários. E isso de bicicleta não é nada fácil. Especialmente se há rajadas de Vento daquelas que quase nos mandam abaixo da bicicleta, se está a chover tanto que nos custa conduzir de olhos abertos, se o máximo que já andámos de bicicleta num dia foi 24km ou se a última vez que fizemos desporto foi há... olha, parei agora de escrever e olhei para o tecto, enquanto coçava o queixo a ver se me lembrava. Nada feito. Mas ainda assim lá fui seguindo, com muito esforço, subindo bastante, quilómetro após quilómetro, com o meu pai calmamente atrás de mim de carro.
               
Chegámos à nacional, parei no semáforo e o meu pai diz-me que “só” faltam 26km. A partir daí, como não podia vir atrás de mim, ora me ultrapassava, ora o ultrapassava eu. Ele dizia que vinha caso eu caísse, porque à chuva é mais perigoso e não sei quê, mas acho que ele quis vir mais por fazer parte deste projecto e para ir dando um lento “até já”. E no fundo foi fixe. Nesse dia foi fixe porque deu-me outra pujança para conseguir chegar a Águeda, e noutros dias foi fixe porque foi fixe.
               
Foi um esforço colossal. Pedalava com as forças que ia buscar a todo de mim, sentia o cabelo molhado a bater nos lábios, tinha de cerrar os olhos ao máximo para não me cegar com as gotas atacantes, o rabo ia-se queixando, as mãos doíam e não podia levantar muito o pescoço senão tinha uma cãimbra enorme. Às vezes questionava se aguentaria, mas visualizava a África do Sul ali à frente. Repetia baixinho “África do Sul” e mandava umas caralhadas e lá seguia, com outra pujança. Quando vi, pela primeira vez, “Águeda” numa placa comecei aos berros “ÁGUEDA CARALHO!! VAMOS LÁ CARALHO, TU CONSEGUES!!!”, tanto que fiquei um bocado rouco ao fim. E foi assim que me fui apercebendo que, talvez até mais do que força física, um desafio destes requer força mental. Porque iá, eu não tinha preparação física nenhuma, mas é verdade que me considero muito forte psicologicamente, e isso vai valendo. “Sabes porque é que conseguiste?”, perguntava-me o João, ao telefone, chegado eu a Águeda, “Porque és um teimoso fodido!”. Teimoso, forte psicologicamente... Bem, são termos que por vezes se cruzam...

Entrei por Águeda Norte e passado dez minutos parava a bicicleta à beira do rio. Tinha conseguido. Sentia um orgulho fixe. Na verdade, sentia-me um bocado como se fosse o maior. É o que acontece quando nos propomos a algo, a meio achamos que não vamos conseguir, mas encornamos e conseguimos mesmo.
               
O meu pai desapareceu assim meio de repente. Tinha pedido direcções a uma senhora e havia alguns carros atrás dele e teve de bazar, nem nos chegando a despedir. Eu perguntei à mesma senhora onde era a D’Orfeu, onde contava ficar, e lá fui. Aquilo estava fechado e fui para o Bar à frente, o Johnny 101, à espera do Lima e da Rita. O Lima fazia anos e vinha de Famalicão buscar a Rita a Águeda para jantar. Eu calhei de lá estar e calhei de ir.
               
Deixei a bicicleta lá fora, pedi um café, e sentei-me, a pensar o que ia fazer à minha VIDA. Estava encharcado, e poucas coisas na minha bicicleta não estavam do mesmo modo. Pensei em ir ao quarto-de-banho mudar-me, mas não sabia onde estava nada. De repente lembrei-me que pedir ajuda aos meus amigos para fazerem a minha mala não foi das melhores ideias. Como também não sabia das chaves dos cadeados, pedi ao Johnny para deixar a bicicleta na zona de fumadores do bar, uma parte lá fora, oposto a quem entra, e com mais que espaço para não dar nas vistas.
               
- Porquê?... – perguntou com um sorriso meio foleiro.
- Porque eu não sei das chaves do meu cadeado. Mas... incomoda-o?
- Incomoda – respondeu. Agradeci de qualquer maneira, sem perceber muito bem a cena, e voltei a sentar-me. Entretanto liga-me o Lima a perguntar se eu confirmei com o pessoal da D’Orfeu. Quando digo que não ele põe-se a disparatar a dizer que aquilo não era um dormitório e não sei quê. Ora tinham-me dito que dava para lá ficar, eu disse “Fixe, obrigado”, pensei que fosse isso. Mas não era, e não estavam a contar comigo, pelo que fiquei sem saber onde ficar. Entretanto chegou o meu amigo e a sua namorada, e fomos até aos Bombeiros. Perguntei se dava para ficar, que qualquer local era bom, mesmo o chão, mas disseram que quem estava a receber peregrinos era a Cruz Vermelha. Para lá fomos. Chegados, disseram que iam ver. Tive o cuidado de dizer que qualquer local dava, mesmo o... chão.
- Desculpe, mas só temos lugar para dois peregrinos e já cá temos dois... – responderam, para minha frustração. Não fiquei zangado, porque não tenho o direito de exigir nada, mas fiquei um bocado desiludido com a falta de vontade e improviso que o pessoal às vezes tem.
               
A partir daí foi ver no couchsurfing, perguntar a pessoal no facebook, e a opção mais viável parecia eu ficar em Aveiro em casa doutro amigo. Sempre íamos para lá jantar, assim ficava em casa do Hugo e no dia seguinte apanhava autocarro para Águeda e seguia de lá. Estávamos já no restaurante de Sushi com o meu irmão, que veio lá ter, e dois amigos do Lima e da Rita quando a namorada do meu amigo diz que afinal podia ficar em casa da Léa. Excelente!
               
Chegados a Águeda ainda fomos beber uma cerveja com a miúda. O pessoal bazou e fui para casa da Léa com a mesma e o Rui, seu namorado (não curto o termo “companheiro”). Ficámos umas duas horas no paleio a beber chá e cama. No dia seguinte, ainda com tudo molhado, Coimbra!

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

As Compras Pré-Partida



- Que bicicleta é que tens? – perguntou-me a Cáti, na última Quinta-Feira antes de partir. Tinha-a convidado para o meu jantar de despedida nesse Sábado, mas como a miúda ia para o Brasil, disse para ir jantar a casa dos pais dela, para o aniversário surpresa do seu pai.
- Não tenho bicicleta ainda... – respondi, inocentemente. As gargalhadas demoraram um pouco a parar.

Na verdade, quando na Sexta acordei, olhei para a minha mesinha de cabeceira, do meu lado direito, e ali estava a única cena que tinha comprado para esta viagem – um tubo de filtrar a água para poder beber do rio em África! Não tinha bicicleta, utensílios, e o meu passaporte só estava pronto na Quarta, partindo eu na Terça. “’Táss bem”, pensei. Porque na verdade ‘tava-se bem. Em minha defesa, tinha muito recentemente apenas sabido que podia ir de bicla, pelo que não pude arranjar nada. É certo que o soube na Terça e até então não tinha arranjado nada. Mas cada um tem o seu estilo e a sua cena. O meu estilo e cena passa um bocado por levar com o cepticismo do pessoal que me rodeia. “Vais quando? Algum dia!? Não tens nada pronto! É-me difícil levar este teu projecto a sério porque não arranjaste nada! Estás a tratar das cenas irresponsavelmente! Não fazes a mínima ideia disto e daquilo!”, e frases do género, que eu lá ia ouvindo, deliberadamente deixando entrar num ouvido e sair noutro, por sentir tais afirmações como precipitadas ou injustas.

Por ter uma maneira de ser bastante desprendida e relaxada, acho que às vezes o pessoal confunde isso com toleirice. Sei lá, algo do género. Acho que às vezes não me dão muito crédito, é isso. Não digo isto com rancor ou mágoa, pois se tanta gente o diz realmente devo emitir uma onda qualquer de desorganização. Que não corresponde necessariamente à realidade. Pois o que interessa é que as coisas aconteçam! Para que é que eu precisava de ter tudo com duas semanas de antecedência?

Assim, depois de ter reflectido a olhar para aquele tubo, liguei para a Veloculture, uma loja de bicicletas em Matosinhos que o Rafa 2numundo me tinha aconselhado. Falei-lhes do que ia fazer, eles aconselharam-me a Raleigh Royal e predispuseram-se a fazer-me um desconto de dez por cento como forma de apoio. Liguei ao Miguel e fomos lá buscar a bicicleta que baptizarei de Bicicleta. Okay, já tinha uma bicla, excelente!

O resto ficaria para Sábado. Liguei ao João e ao Lima, que tinham dito que vinham comigo comprar as cenas e, juntamente com o Filipe, que tinha vindo de Lisboa para o meu jantar de despedida, lançámo-nos para a Decathlon de Aveiro. Três horas e 525€ saíamos de lá com quase tudo o que eu precisaria nesta viagem. Ficou a faltar um fogão de vários tipos de combustível e os alforges.

Nesse dia tive o meu jantar de despedida. Foi fixe juntar no mesmo restaurante do costume tanto amigos quanto família, e foi uma noite demais. Tão fixe que só fui dormir no dia seguinte às nove da noite...