quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O Deserto de Gobi - Parte I

Foi sorte a Jenny ter visto aquela mensagem. Era perfeito. Bazava para o deserto sábado, voltava sábado, depois bazava para a Rússia terça-feira.
               
A Jenny era uma chinesa que foi com os pais para o Texas quando tinha doze anos. Era gira, tinha vinte e sete anos, trabalhava como analista ou uma cena assim aborrecida qualquer, e foi das pessoas mais insuportáveis que já conheci. É a cena de passar oito dias, quase vinte e quatro horas por dia com o mesmo grupo de gente, uma experiência sociológica do caraças. E super interessante. O Alberto e o Nicolas, da Argentina, estavam à beira dos vinte e cinco anos, eram ambos advogados, ainda que em campos diferentes, e eram uns bacanos espetaculares. De facto, ter feito esta viagem com eles e com o Danny foi um factor decisivo para ter sido uma experiência como foi. O Danny é alemão, tinha vinte e um anos e estava na Mongólia após ter passado um ano no Camboja. Pelos vistos acabou este ano, mas até então o pessoal na Alemanha tinha de decidir entre meio ano no exército, dez meses numa cena qualquer ou um ano a fazer voluntariado (o governo paga os bilhetes de avião e dá mais algum dinheiro) em qualquer país menos desenvolvido do mundo. Há mais de oitocentos lugares em todo o mundo que o pessoal pode escolher. O Danny escolheu uma pequena ilha sem internet no Camboja. A cena que eu mais curti neste grupo foi que tanto falávamos de cenas como imigração, arte, literatura, política ou sustentabilidade, como jogávamos aos jogos de “quem é mais boa?” ou “preferes perder o braço esquerdo ou perder a vista no olho direito?” e cenas do género. Efectivamente, tínhamos conversas de merda muitas vezes. Mas acho que quando é uma opção, e quando é alternada com outras conversas com mais substância, que se lixe. O pior é quando o pessoal não sabe falar de mais nada.
               
Quem não curtia muito essas conversas era a Romina, o “último” elemento do grupo. Tinha vinte e nove anos, era suiça e já tinha estado quase em qualquer lado que um gajo nomeava. E quando lhe perguntámos se viajava com baixo orçamento, disse, muito calmamente, como se fosse um exemplo: “Não... no &(não me lembro do país(& gastei mil e quinhentos dólares num mês”. A miuda não era má de todo, mas sinceramente não se enquandrava com os gajos. E acho também que estava um bocado farta de nós, e até que nos achava um bando de pacóvios por vezes. Cenas como dizer “ainda bem que é o quarto dia” ou outros comentários diziam tudo. O mais estúpido é que dizia “vá, pessoal, depois de um certo ponto começa a ser chato” quando cinco minutos antes estava a chorar com o riso.
               
Mas às vezes parecia que fazíamos de propósito... mas sem realmente o fazer. Recordo-me de uma noite em os gajos estão numa ger e falamos acerca da diferença de qualidade de VIDA em África e na Europa e como os europeus têm uma parte enorme da culpa. As gajas chegam, e não sei como a primeira coisa que nos sai vem do Alberto e tem algo a ver com os seus tomates peludos.
               
- Hei Romina, eu vi isso – apontei, meio na brincadeira. – A Romina acabou de lançar um olhar à Jenny que diz algo tipo “´tas a ver de que é que eu ´tava a falar?”!
- Era suposto veres – respondeu.
               
Quanto à Jenny... Já ouvi que, por exemplo, na tropa, fazer de alguém um alvo de chacota e bode espiatório fortalece o grupo, e até é algo encorajado (talvez subliminarmente) pelos superiores. Bem, não foi o mesmo, nós não fizemos dela nem um bode espiatório nem um alvo de chacota. Bem, chacota mais ou menos. Mas com as barbaridades que saíam da sua boca era impossível ficar indiferente. Eu ainda tentei, e consegui, p’rai dois dias, o que naquelas condições é muito tempo, mas depois não deu mais, era impossível não comentar com os outros. O Alberto abriu a tampa. Na terceira noite, estávamos a enfiar-nos nos nossos sacos-cama dentro da tenda...
               
- A Jenny... é um bocado estranha, não é? – perguntou, em espanhol. Parece que carregou num botão, porque mal disse isto, estivemos a falar quem nem três beatas durante meia hora.
- Pá eu não curto isto... de falarmos sempre nas costas dela... Nem é tanto por princípio, porque não somos amigos nem nada... mas se toda a gente apenas falar nas suas costas, ela vai ser sempre igual... por isso gostava de lhe dizer, frente a frente... – comentava com o Nicolas e o Danny, na nossa ger, numa noite em que bebíamos vodka e o resto do pessoal já tinha ido dormir. Não é que eu seja uma autoridade acerca de como se deve ser... mas as cenas com ela eram demasiado evidentes... Mas após alguma discussão sobre o assunto, não parecia fazer grande sentido eu abordá-la assim sem mais nem menos, e isso acabou por não acontecer. O seu grande problema era que era daquelas pessoas que tem sempre de dizer algo, mesmo quando não faz a mínima ideia do que está a falar. Do tipo de pessoa que quando fala e manda uma posta de pescada o resto do pessoal olha para o lado desconfortavelmente. Tipo estarmos a falar de línguas e ela dizer que o português é um dialecto do espanhol. E, pobre rapariga, tinha o hábito incrível de comer de boca aberta! Isto eu disse-lhe, uma vez, ao ouvido para não a envergonhar, enquanto almoçávamos. Aguentou dois minutos. Chegou a uma altura em que o pessoal ou falava de uma merda qualquer para não a ouvir ou bazava, simplesmente.

Encontrámo-nos de manhã no Golden Gobi, o hostel que estava a organizar a tour. Tomámos o pequeno-almoço, conhecemos a nossa guia, a Hu e o nosso condutor, o Puntzca (pelo menos soava assim) que apesar de não falar inglês era um grande porreiraço. A Hu também era fixe. Mas para ser sincero era mais a nossa cozinheira do que guia. Se pensarmos bem, não há assim um monte de informação que um guia pode dar, oito dias seguidos, acerca do deserto. Mas como cozinheira foi uma grande surpresa, a comida foi, todos os dias, divinal. Chegámos a comer carne de camelo, que curti.
               
Passámos a grande parte do primeiro dia na carrinha. Tínhamos muito terreno para cobrir. Mas não importava muito. Claro que não era exactamente a A3, tinha os seus buracos, mas o cenário era esplendoroso e isso fazia com que a viagem não custasse. Sempre que parávamos para almoçar tínhamos cerca de meia hora para ir dar uma volta. Para jantar também, mas quando parávamos para jantar parávamos, ou na ger onde dormiriamos, ou no sítio onde acamparíamos. Assim, no primeiro dia parámos perto de um lago e de uma pequena montanha. Perto do lago relaxavam duas ou três dezenas de cavalos. A Hu disse que não eram selvagens. Mas não sei qual é a diferença, porque não tinham nunhuma marca, não tinham os pés atados nem sela. Andavam na sua, e os donos não se preocupavam porque eles iam sempre beber água e tomar banho ao mesmo sítio. E foi demais estar a meio da pequena montanha, ouvir um splash, olhar e ver os cavalos, todos juntos, a beber água e devez em quando mandar-se. Deixavam-se cair de lado, convencidos que que aquela água lamaçenta os lavava. O lago era limpo e tudo, mas os gajos eram preguiçosos e não se aventuravam a lavar-se onde a água não levantasse terra.
               
Antes de pararmos na nossa ger, parámos num sítio que costumava ser um retiro de monges budistas. Trepando íamos dar ao cume de um pequeno monte cheio de pequenos montes de pedras.
               
- Dantes, quando havia uma guerra, os guerreiros reuniam-se num determinado sítio e deixavam uma pedra que tinham trazido de casa. Criava-se assim uma pequena pirâmide. Quando voltavam, retiravam a sua pedra. Mas como muitos morriam, os montes ficavam – explicava a Hu, dizendo que hoje em dia, naturalmente, já não é pelas mesmas razões que podemos ver aqueles montes.
               
Parámos pouco tempo depois num acampamento de nómadas. Tinham ali três gers, uma delas era a sua casa, as outras duas para pessoal como nós. Mudavam de sítio duas vezes por ano.
               
Depois de passarmos algum tempo com eles na ger, e de bebermos iogurte de leite de camelo, fomos para a nossa, onde jantámos. Depois de jantar passámos a noite a jogar Uno. Não adoro o jogo, mas foi divertido, tenho de dizer, por causa do grupo que me rodeava.
               
No segundo dia, depois de tomarmos o pequeno-almoço, metemo-nos na carrinha, de onde saímos só para almoçar. Almoçámos e fomos visitar os White Cliffs. Uma cenário porreiro, no meio daquela imensidão de nada. Parámos na vila e comprámos três garrafas de vodka, que desapareceram na mesma noite. A ideia era a Romina e a Jenny beberem connosco, mas a Romina quando foi à tenda depois de jantar, já não voltou, e a Jenny voltou durante um minuto só para como que justificar não ficar connosco.
               
- Bem, se não vamos fazer nada, então vou para a tenda, porque está frio – disse, ainda de pé, quatro segundos depois de ter voltado.
- Nós estámos a fazer algo, estamos a conversar... não há muito mais que se possa fazer – respondi, sem efeito. Se pensarmos bem, estávamos no deserto, ia ser difícil conseguir entrar numa discoteca. Estávamos no deserto com não sei quantas camadas de roupa, sentados numa mesa provavelmente roubada ao enxoval de um dos sete anões, e debaixo de um dos melhores céus que já vi. Talvez apenas nas montanhas no Paquistão consegui ver tantas estrelas. Nunca tinha visto a via láctea com tanta claridade. Daqueles momentos que fica para sempre.
- Pessoal... – disse, enquanto nos dirigíamos, já ébrios, para um acampamento que avistáramos ao fundo – Vamos parar por um segundo e tomar consciência da sorte que tivemos em ter um grupo tão bacana – foi o nosso “bro moment”. Demos um abraço quádruplo e seguimos para o acampamento. Estávamos à procura de mais companhia, mas estava tudo a dormir. Fui então às tenas perguntar, pelo lado de fora, se tinham preservativos. Partimo-nos a rir a imaginá-los, no dia seguinte, a pensar “quem é que será que queria os preservativos? será que foi aquela e aquele? ou aquele e aquele?”.







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