O Ilya e a Lena tinham conhecido uma chinesa num autocarro a caminho de Kunming que acabou por ir com eles para casa do Neri, e lá passar a noite. Diz que ela ficou apaixonada pelo conceito e que ia começar a albergar pessoal e não sei quê. Ela era de Chengdu. Por isso, quando chegámos, procurámos um centro comercial, montámos a tenda numa loja de fast-food, e o Ilya contactou-a. A comunicação não estava muito boa, sendo que el ligava do skype, mas deu para perceber que não ia dar. Ele foi à volta, disse que estávamos em Chengdu e que precisávamos de um hostel barato. Ela disse qualquer cena que não foi “ah, não precisam, podem ficar comigo”. Por isso procurei no meu lonely planet (de dois mil e sete) e encontrei um sítio que parecia porreiro. Metemo-nos no autocarro com o mapa na cabeça e o computador como auxílio. Saímos demasiado cedo no autocarro, e caminhámos, depois de um dia à boleia e com as mochilonas, mais de uma hora até chegarmos ao sítio onde supostamente o hostel era. Mas aquele mapa do lonely planet não é propriamente nenhum Moisés a guiar o pessoal. Assim, depois de p’rai mais hora e meia e de termos perguntado a seis ou sete pessoas, desistimos. Tínhamos desistido há um minuto quando o Ilya aponta para uma placa que dizia “Sim’s Cozy Place”, exactamente o sítio que procurávamos. Pena é que aquilo estava abandonado. Ok, plano dois. Vi outro hostel, Loft, e seguimos para lá. Mais um erro. É que este hostel estava lá, sim senhor, mas se em dois mil e sete uma noite custava dois euros, em dois mil e onze custava seis. Mas uma coisa é certa, é dos hostels mais fixes onde já estive. Muito boa onda mesmo, e com pormenores simples espetaculares, desde os quadros nas paredes, terem um gato ou terem na recepção uma parece com doze filas, cada uma com trinta e uma caixas – quem quisesse que eles enviassem o seu postal tipo dia cinco de Maio, punham na respectiva caixa, e o postal seguiria nesse dia. Ideia fixe.
Chengdu tem muito mais bom feeling do que Kunming, mas ok, é uma cidade de qualquer maneira. Na primeira noite curti, enquanto caminhávamos estafados, o que vi da cidade. No dia seguinte, no entanto, não descurti, mas não é nada que me tenha apaixonado. Para não pagar outra vez aquela exorbitância, procurámos um sofá, e a Ann foi fixe o suficiente para aceitar o nosso pedido tão em cima da hora. Vimos a cidade durante a tarde, depois apanhámos um autocarro para ir ter com ela. Quando saímos do autocarro, de mapa na mão, uma miuda de vinte e três anos (como a maior parte dos chineses, parecia ser mais nova vinte por cento) muito porreira perguntou se precisávamos de ajuda e acabou por caminhar connosco. Ia visitar a Europa brevemente, com o seu namorado francês. Ela ligou à Ann, que veio ter connosco de imediato.
A Ann nasceu na Coreia (do Sul – reparei que todos os sul-coreanos que conheci dizem que são da Coreia, não especificam sul ou norte), mas foi adoptada desde logo por um casal de dinamarqueses, que já tinha adoptado outras duas sul-coreanas. É uma rapariga com quem se passa um bocado interessante, sendo que quando fala da sua VIDA, parece que tem p’rai cinquenta anos, pensando em tudo o que já passou e em todos os sítios em que já viveu, apesar de ter apenas trinta. É dinamarquesa de nacionalidade, já viveu no Japão, por isso fala japonês, na Noruega, idem, fala francês, a língua do seu marido, fala espanhol, já nem me lembro a que propósito, e agora estava na China a aprofundar o seu chinês – note-se que a outra miuda que nos ajudou no autocarro ligou-lhe e só lhe falou em chinês e elas entenderam-se. Bem, impressionante. E eu pensava que até tinha jeito para línguas. Contudo, diz que não sabe fazer mais nada.
- É como se as línguas ocupassem todo o meu talento – disse a enfermeira que não o quer ser mais por achar que não tem muito jeito.
- Desculpa se te bombardeio de perguntas, mas é que nunca conheci ninguém que tivesse sido adoptado – desculpei-me, a meio do meu interrogatório. Quando conheço alguém numa situação que para mim é nova curto saber o máximo possível. Sem fazer a pessoa sentir-se estranha, claro. Ou assi, o tento. E realmente foi interessante falar com ela. Querendo conhecer as suas origens, já foi à Coreia do Sul, e querendo conhecer as suas origens o máximo possível, já tentou localizar a sua família.
- Para a minha irmã mais velha foi a coisa mais fácil do mundo. Tentou num dia, e no outro já sabia. Pelos vistos a família dela era muito pobre, e meteram-na num orfanato até se recomporem. O pai foi trabalhar para fora da aldeia, voltou, e quando foi buscar a filha, ela já tinha sido dada para adopção. Acontece muito assim. Mas comigo... não tive sorte...
- Vais continuar a tentar?
- Não sei... acho que tenho de processar o facto de que talvez não vá conseguir encontrá-los... Mas não sei bem o que fazer. Se continuar à procura, se parar...
- Se calhar era bom dares-te a ti própria uma data limite. Tentavas o máximo até essa data, e se passasse, aceitavas os factos e libertavas-te disso... – tentei oferecer.
- Pois... mas é que eu já fiz isso. E depois voltei à carga – respondeu. Deu para entender que era algo que lhe custava. Mais tarde falei disso com o Ilya e ele achou a cena estranha, e não percebia a importância de querer tanto encontrar os pais biológicos.
- E depois?... P’ra quê? – perguntava. E eu não sabia responder. Também não percebia muito bem porque é que é tão importante para ela encontrar os pais biológicos, mas tinha, e tenho algo dentro de mim que o percebe. Não sei se é o facto de ser uma situação tão fora do que já vivi que me faz querer entender. Mas sei que é tipo um sentimento-instinto e que não consigo explicar de uma forma muito hábil. E não curto nada quando tenho de me sair com um “ai não sei explicar...” porque acho que isso é, geralmente, preguiça.
Depois do jantar, que a simpática rapariga fez questão de pagar, ela foi ao aeroporto buscar uma amiga e eu e o Ilya fomos para casa. Tivemos uma noite descontraída a ver uma discussão do bufo sobre livrarias e a sua possível extinção. Era um debate do bufo, se me perguntas. À volta e volta quando podiam dizer “Bem, eu acho uma pena, porque um livro é algo mais pessoal do que um download, e tem cheiro e etc” e o outro dizer o contrário. Pá, o meu primeiro impulso é dizer que os livros são muito mais fixes. Há, realmente, uma certa mística por detrás de um livro usado, talvez passado de geração em geração, as estórias que leva além da estória que conta, o aroma que nos põe naquele estado de espírito perfeito para ler, e o charme de uma sala com livros como paredes. Mas... só para imprimir o último (ou o quinto, um deles, não interessa qual, ou se calhar até cada um) Harry Potter mandara-se abaixo centenas de milhares de árvores – facto. Então se pensarmos com lógica, e se pensarmos nos recursos que são necessários para produzir um livro (em vez de simplesmente copiar um ficheiro), temos de chegar à conclusão de que é melhor para o mundo... livros digitais. A grande cena é que eu prefiro os livros com as páginas... mas acho que não o devia preferir. Em minha defesa, uma grande parte dos últimos livros que comprei eram em segunda mão.
Na manhã seguinte, demos uma olhada no mapa e pusemo-nos a caminho. Não foi nada fácil. Nada mesmo. Fomos de táxi até à saída da cidade, mas ainda assim tivemos que caminhar bué. E o Ilya estava meio empenado. Assim, com algum esforço, muitos quilómetros nas pernas e bastante tempo de espera, estávamos numa estrada que... não era grande coisa. Fomos andando pouco a pouco, com microboleias, passando por placas a indicar a autoestrada. É que o google maps dizia que era “por ali”, e esse “por ali” implicava não entrar já na autoestrada. Pá e um gajo tem de ver se segue as instruç.oes ou não. Umas vezes sim, outras que se lixe.
Tivémos de chegar à altura do “que se lixe”. É que estávamos já a chegar à terceira cidade (de uma longa lista) e o gajo do google mandava seguir em frente. Mas eu vi um sinal a dizer G5 e decidi ficar aí. O condutor levou-nos um pedaço, e estávamos nas portagens. Mas não podíamos entrar na autoestrada porque o pessoal não deixava. Como era de esperar, primeiro vieram os trabalhadores, depois um oficial qualquer, e depois a polícia a sério. “Sentem-se ali na relva, que aqui está sol” disse o polícia, com a sua linguagem gestual. Tínhamos percebido que nos iam ajudar, mas passou p’rai uma hora e ficámos na dúvida. Mas a cena é que a maior parte dos carros ia para Chengdu. Mas os gajos cumpriram, e a partir daí, apesar de um início terrível, foi um mimo. Camião, vruum, um táxi parou para nós e levou-nos de borla p’rai duzentos quilómetros, vruum vruum, depois outro cota, e assim, já o sol se tinha posto há algumas horas e estávamos numa estação de serviço p’rai a cento e cinquenta quilómetros. Mais uma vez os trabalhadores vieram ter connosco. E não é que nos sacaram uma boleia directinhos?... E eu que, depois daquele início nunca achei que ia chegar a Xian no mesmo dia, vi-me na cidade batia o relógio as onze horas. Fixe.
seis e meia da tarde-segunda-doze de setembro de dois mil e doze
algures entre Erlian e Ulan Bator
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