quinta-feira, 24 de março de 2011

Síria-Turquia-Iraque


É uma menos um quarto. Eles pediram-me para mostrar música da qual eu gosto. Pus Bob Dylan, Maggie’s Farm. Estamos quatro no quarto. Eu, o Steve, que conheci em Erbil em casa do Andrew, o Zhino, o nosso anfitrião, e o Ahmed, amigo do último. Pessoal altamente, não conhecem Bob Dylan, ou Bruce Springsteen, ou Nirvana. Já tinha percebido a cena na Síria – que, tanto quanto me parece, as verdadeiras estrelas mundiais não são os cantores ou os actores, mas os futebolistas. Se eu tivesse um cêntimo por cada t-shirty do Ronny Cristy que eu vi nesta viagem tinha já p’rai... trezentos cêntimos. Ok, não é muito dinheiro.

De todo o modo, divago. O que é certo é que estou agora em Sulaimani, ou seja como for que se escreve, no Curdistão, Iraque. Estou um pouco embriegado. Pouco. Daquele pouco que dá para disfarçar perfeitamente vendo, mas que se torna mais real escrevendo. Estas teclas pequenas pá! Sei que não escrevo há uns tempos! Ok, altura de coerência. Vou começar com o Iraque, e depois, se ainda tiver energia e não me apetecer dormir, falo da Síria. Caso contrário a Síria fica para mim.

Oh, que se lixe. Abordo a Síria de repente. Fui ver Palmyra. Curti bué. Fui sozinho, paguei seis euros para ir e vir de lá, de Damasco, a minha bela cidade. Cheguei, conheci um pessoal com quem partilhei um taxizito demasiado caro (cinquenta cêntimos cada um) e de quem depois me separei, porque eles iam dar uma olhada num hotel e o meu tempo estava limitado. Tinha três horas para ver aquilo, porque o último autocarro era às seis e meia. Todavia curti uma rapariga, que me pareceu bastante criativa ao dizer, como se estivesse bêbeda, mas sem o estar, que a minha viagem era como pôr uma fatia de pão em Singapura e outra em Portugal e comer o mundo.... Hum. Acreditem que isto agora parece pascácio, mas a maneira como ela expôs esta ideia pareceu-me genial, talvez por ela o ser, quem sabe. E ainda deu outro exemplo envolvendo um gelado, um cone e diferentes países. Mas da qualquer maneira isto foi tudo num instante, em três minutos. E já estou a demorar demasiado tempo na Síria.

Curti bué Palmyra. Andei ao desbaratinho, o que faço melhor, a explorar as faculdades da minha máquina e do horizonte. Desafiei o monte, subi-o, parti-me todo e não pude entrar no castelo, porque eram oito euros. Ouvi um casal cota, bastante cota, a falar norueguês e introduzi a conversa perguntando as horas em norueguês. Os gajos eram de Askim, uma vilita a dez quilómetros da minha super pequena vila, Mysen. Que cena. Na Síria. Às vezes o cota falava como se eu fosse um professor catedrático de norueguês, nascido em Oslo, e tinha de lhe dizer “hei pá, o meu norueguês não é assim grande espingarda, e eu falo melhor do que percebo”, e ele lá abrandava. Eventualmente lá desci o monte, contrariamente às indicações dos locais, apanhei boleia duma mota, depois de um gajo que dizia “for free” mas depois pediu dinheiro, e a quem eu disse “méne tu não pediste dinheiro no início” e que disse “ok, certo, não pagas nada” e a quem eu, por me ter levado um bom pedaço e ter aceite o facto de que eu não pagaria, paguei cinquenta cêntimos. Às vezes escrevo de uma maneira super confusa. Depois foi chegar à estação e siga dormir.

No dia seguinte abraçei Damasco novamente e no final do dia fui ver o Machester United – Marselha com o meu anfitrião Nick e os seus amigos. Passei-me com o apoio que os sírios prestam a equipas de países que não os seus. Acho que já falei disto hoje. Mas iá, o pessoal aqui vibra duma maneira incrível com equipas europeias, mas quatro ou cinco apenas.
               
No dia seguinte passei um bom bocado na net e depois fui ter com o Habib e o Mazen. Era suposto ter já bazado, mas na primeira noite os gajos convenceram-me a ficar porque quinta-feira é muito fixe e não sei quê. Acedi, e ainda bem. Grande noite. Começou meio despercebida. Tipo fui ter com eles lá p’rás sete e fiquei, ora à conversa com o Brad, americano de Chicago que falar português, ora no computador. Até às dez da noite não sabia se ia haver algo, realmente, ou não. Às dez disseram “iá confirma-se, temos house party às onze”. Onze? Uma festa a começar às onze na Síria? Altamente! Completamente contra o previsto.
               
Pois então fomos comprar Arak (ai o Arak...) e siga. Demorámos um bom pedaço a chegar ao sítio. Estávamos eu, o Habib, o Mazem, o Luke american, o méne da Jordânia, a rapariga inglesa e o outro de Numseionde. A cada trezentos metros o pessoal duplicava. Altamente. Encontrávamos pessoal que se conhecia, e que parecia ir para a mesma festa. Tal como o Nick, o meu anfitrião chinês. Já agora, nessa noite não ia ficar com ele, porque ia ter a casa cheia de familiares do Antoine, o seu amigo francês.
               
Lá encontrámos a casa. Ficámos lá cinco minutos. Parecia haver outra festa e para lá todos fomos. A sério, saltitar de house party em house party na Síria foi algo que nunca imaginei acontecer, especialmente para lá das onze da noite. A festa onde chegámos estava ao rubro. Aquilo era só pessoal, de todo o mundo, cada um com a sua cena, a beber a sua cena, com umas colunas quaisquer de má qualidade no canto a tocar uma música foleira qualquer. Demais. Curti bastante. Falei muito com americanos sobre o Obama e com muçulmanos sobre o conceito de deus. O Arak (é tipo o Ouzo grego) supreendeu-me e quando dei por mim estava já bem lançado. Mas fize.
               
Pá de lá fomos para outro lado e desse a noite tornou-se num sono do qual eu despertaria, na noite seguinte, disposto a chegar ao norte da Síria. Queria chegar ao Iraque. O Iraque está dividido no Iraque e na zona autónoma do Curdistão. Se eu fosse da Síria para o Iraque, em primeiro lugar, talvez fosse impossível, em segundo lugar, muito perigoso, e em terceiro (o único que eu sei de certeza), teria de pagar oitenta dólares pelo visto. Assim sendo, tinha de seguir para norte, para entrar no país pela Turquia, de onde podia entrar gratuitamente. Só que às vezes vou muito ao sabor do que calhar. Quiçá demasiado. Neste caso nem foi mau de todo, mas quando eu acordei, naquela manhã de dezoito de Março, não sabia onde ia ficar. Apanhei um taxi de vinte cêntimos e uma vez na estação mostrei a minha lista de cidades para onde podia ir. Parecia que havia um autocarro para Al Qamishli, pertinho da fronteira turca, por oito euros. Doze horas de autocarro. Tinha pensado em boleiar, mas estava de ressaca, e doze horas por oito euros pareceu-me fixe. Siga caminho.
               
Cheguei a Qamishli mais cedo do que o suposto. Dez horas, tomou. Um senhor queria mesmo ajudar-me, e apanhei um taxi quase para lhe fazer o favor. Paguei-lhe um euro, na moeda local, e o méne deixou-me num hotel que o senhor de antes tinha aconselhado – eu tinha dito que tinha pouco dinheiro então ele disse ao taxista para me deixar num sítio barato. Cheguei ao hotel e um quarto custava dez dólares. Nada feito. Porque uma noite num edifício em contrução é gratuita. “Obrigadinho, mas vou seguir caminho”. E lá segui. Caminhei aleatoriamente e vi um sinal todo podre a dizer hotel. Aí o preço eram trezentas liras sírias. Quatro euros e sessenta. Mostrei ao méne as minhas trezentas liras e disse “only money” [único dinheiro] enquanto esfregava o estòmago. Basicamente a mensagem era – só tenho este dinheiro sírio e preciso de comer ainda. O gajo fez-me a cena por duzentas e cinquenta liras, três euros e oitenta. O único hotel onde eu já estive onde não havia papel higiénico...
               
Com as cinquenta liras fui à internet. Tinha de procurar casa onde ficar no dia seguinte, no Curdistão e ver o meu mail e tal. Gastei vinte e cinco liras, quantenta cêntimos. Quer dizer que tinha quarenta cêntimos restantes. Comi uma cena fixe. Acho que custava mais, mas fui a um sítio de falafel’s e cenas afins, e quando perguntei se tinham algo por vinte e cinco liras, os gajos disseram para eu escolher o que quisesse, que o preço não interessava. Confesso que isto foi o que eu percebi, e não necessariamente a realidade. É que eles não falam português e eu não falava árabe. Mas o certo é que apontei meio à sorte para um tipo de carne qualquer e eles sorriram e forneceram. Demais. Vi o Easy Rider antes de dormir. Apetece-me falar do filme, mas não o farei. Abordo só a eventual inveja humana de atributos de outréns. Atributos esses escolhidos e não inerentes à condição sócio-económica de alguém ou outras cenas assim. Quem viu o filme talvez entenda.
               
No dia seguinte acordei farto da preguiça. É que tinha apanhado um autocarro de dez horas. Ok, foi só oito euros, vale a pena... mas confesso que quando um gajo anda à boleia, parece que, depois, apanhar transportes públicos soa a batota. Já não é tão genuíno. Ainda que ache que vá apanhar bastantes até Singapura.

Méne deu-me um certo sentimento agora. Que liberdade! Vi-me a mim mesmo pendurado no destino rodoviário, a falar comigo mesmo, como faço, sorrir para a chuvita, minha companheira de vez em quando, desde Portugal até para sempre, e curti bué. Estou tão à vontade nesta viagem. Sentimentos nem por isso agradáveis por vezes fazem-se sentir, como um candeeiro de solidão ou uma toalha de mesa de saudades, mas são retalhos enquadrados num quadro tão global quanto a imensidão da noção de fazer o que está certo. Não tive medo ainda nesta viagem. Nunca. Já estive apreensivo, algumas vezes, mas ainda não tive medo. E acho que não terei. Tive receio por antecipação, ao pensar em, por exemplo, andar à boleia no Iraque, mas tendo-o feito... são... batatas fritas...

               
Então acordei, e fui caminhando em direcção à fronteira. Entretanto tive de pagar a treta dos doze dólares para deixar a Síria. Uma vez na Turquia, fui aos meus bolsos e encontrei quatro liras turcas. Pensei em como gastar esse guito de uma maneira eficiente  e comprei dois pacotes de bolachas para me alimentar nesse dia. Isto foi no sábado. Foi a última vez que gastei dinheiro. Hoje é a noite de quarta para quinta. Tem sido altamente. Comendo essas bolachas estiquei o dedo. Quando dei por mim tinha apanhado boleia de uma carroça puxada por um cavalo. Tróc tróc tróc... saí e passado menos de um minuto, boleia de uma mota. Menos de um minuto e estava na estrada para Cizre, este da Turquia. Mas aquilo era só pessoal à boleia. Locais. A cada trezentos metros. Seguindo o código, fui passando o pessoal, para estar para lá deles. Decidi fazer render o meu Vodafone Travel e liguei à pessoa com quem mais naquele momento queria falar. E apanhei boleia, ainda ao telefone. Não tenho culpa, eu pus-me depois dos outros ménes, não lhes roubei a boleia, por isso a cena é que ele talvez me tenha dado boleia pela mochila, que traduz a minha estrangeirisse, ou o meu cabelo semi-comprido, idem.
               
O méne deixou-me para lá de Cizre. Caminhei uma meia hora e apanhei boleia de um táxi até à fronteira. Aí, as oportunidades paraceram escassar. Tinha de passar a fronteira de carro, como na Grécia p’rá Turquia, e carros era o que não havia p’ráli. E os camiões não me podiam levar. E o pessoal abutre fronteiriço pedia vinte dólares. Por amor de deus! Vinte? Na minha estupidez, ainda ofereci seis. Ainda bem que não aceitaram. É que passado um bocado apareceu (mais) um táxi, quase cheio, só um lugarzito, e eu lá fui tentar a minha sorte, com o meu sinalzito em árabe, a explicar a cena... havia uma senhora no lugar do pendura, que falava inglês
               
- Onde vais? – perguntou.
- P’ró Iraque. Curdistão.
- Porquê? Qual é o teu propósito?
- Bem,... gostava de visitar o Curdistão... e queria estar lá no Nevrós – ora o Nevrós, que seguramente não se escreve assim, é o ano novo curdo, e tipo o dia nacional da mesma nação. Ela estava à procura de uma razão válida para visitar o seu país, pareceu-me, e esta pareceu-me ser uma boa resposta, sendo que da qualidade da mesma poderia advir uma boleia.
- Ah... vais fazer  fogo? – perguntou-me ela. “Are you gonna make fire?”, perguntou-me exactamente. Pá... estou na fronteira de um país acerca do qual pouco sei. Sei do que falam, como bombas e merdas assim, mas sei que isso, eventualmente, nada tem que ver com a realidade. Mas ainda assim, na fronteira, a senhora pergunta-me se eu vou fazer fogo? Não sei que dizer e sei que da minha resposta depende a sua boleia. Assim, sorri e acenei lentamente, esperando que ela repetisse – É que para festejar o Nevrós tens de fazer uma fogueira [... make a fire] – disse a mulher.
- Claro que vou fazer uma figueira, então não?! – respondi, genuinamente animado.

E assim entrei no Iraque.

2h14-4ª-23-3-11
Sulaimani, Curdistão, Iraque

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