sexta-feira, 11 de março de 2011

Beirut


No Domingo acordámos cedo. Os curdos iam para uma tour qualquer com termas e cenas assim. De todo o modo convinha acordar cedo para ver se encontrávamos o nosso anfitrião, o Duzgun. Como o mundo é pequeno e os curdos se conhecem todos uns aos outros por Nevsehir, conseguimos o contacto do Duzgun – o correcto, desta vez. Assim, após tomarmos pequeno-almoço (em folhas de jornal, no chão, como manda a lei) eles fizeram o favor de lhe ligar e o gajo lá apareceu, passado meia hora, perto da mesquita. Ao início ele pareceu-me meio naquela. Estava a dizer que pensava que “éramos só um” e que tínhamos pedido o sofá para dois dias antes. O “ser só um” tinha sido erro seu, mas os dois dias antes, erro cá da casa.

Lá fomos para sua casa, onde estava o seu colega de casa e duas couchsurfers também, que estão em viagem da Suiça... à China... de bicicleta! Ah pois é bebé! É por isso que rejeito sempre, sem falsa modéstia, quando o pessoal diz “ah e numseiquê tu é que és maluco! Ao longo dos tempos já conheci pessoal que faz das cenas mais maradas... E confesso que, ao ouvi-las, ficou plantada em mim a semente do sonho de ir de Portugal à África do Sul de bicla. Porque não? Tudo a seu tempo... (os meus pais que não se passem). As miudas ao início pareceram-me meio enjoadas, mas até acabaram por se revelar bacanas. Assim-assim.

O Duzgun preparou o pequeno-almoço, uma Duzgunada qualquer que me apraziu. Comemos e ouvimos mais um bocado acerca dos curdos. O Duzgun, curdo, vê a razão que o povo tem, mas reprova a violência do PKK, ainda que esta seja apenas dirigida para o exército turco. Os paradoxos deste mundo... um curdo que vive na Turquia é, para todos os efeitos, turco. Os turcos têm de ir para a tropa. Os curdos que são turcos não escapam à regra. Não é nada improvável, então, haver confrontos entre o exército turco e o PKK, e haver curdos a matar curdos, em nome da liberdade do país. Que mundo marado!

Após comermos bazámos e fomos até Derenkuyu (uma cena assim), onde havia uma cidade subterrânea. Apanhámos uma boleia logo num instante para lá, tranquilo. A cidade é fascinante. Um gajo tem de pagar oito euros para entrar e não vale a pena dizer que deixámos o nosso cartão de erasmus em casa, mas ‘tá-se bem na mesma, não é dinheiro perdido. O povo da altura tinha medo dos romanos. Mas uma coisa é medo e fugir. Outra coisa é medo e construir uma cidade subterrânea para cinco mil pessoas! Isso é medo pá! Os gajos estavam mesmo cagados de medo!

Andámos lá umas duas horas, até que já não aguentávamos mais subir e descer aquelas escadas para pessoal escanzelado e atarracado. Ok, o pessoal ao longo dos anos tem vindo a ficar mais e mais alto, mas mesmo há mil anos, os gajos tinham de andar sempre quase a lamber o chão para passar em algumas daquelas passagens e entradas.

Quando saímos jogámos lá à bola com uns putos por dez minutos e depois esticámos o dedo. Passava pouco mas lá conseguímos, depois de quase uma hora, uma boleiíta de volta a Nevsehir. O João estava todo partido e foi direito a casa, ao passo que eu fiquei pelo primeiro internet café que encontrei. Isto vai ser cada vez mais difícil para mim actualizar blogs e essas cenas, cheira-me. Hoje, dia nove de março, já não encontro wireless disponível há p’rai quatro dias.
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Já é dia onze de Março.

No dia seguinte fomos até Goreme, uma das bases da Cappadocia. Apanhámos boleia para o centro e daí apanhámos boleia dum pessoal com música disco turca aos berros. Aqui é raro ouvir música americana. Contudo, mal, no carro, pensei nisso, os gajos mudaram para um hip hop qualquer, daqueles que eu gosto muito muito, como de levar com um xizato nos mamilos...

Goreme foi espetacular. Mesmo. Do outro mundo. Uma cena incrível! Pá chegámos e eu fiquei um bocado naquela. A caminho prometia e tudo mais, mas Goreme mesmo Goreme era giro e tal, mas era um monte de grutas todas transformadas em hotéis. É que era quase tudo! Mesmo! Assim, um gajo deu lá umas voltas, foi subindo, subindo, até que a coisa começou a ficar interessante. Subimos a um miradouro e pasmamo-nos com a vista. Um vale cheio, mas cheio de grutas, ou casas, escavadas naquela pedra que parecia um misto de barro e granito. Caminhámo-nos e descobrimos o trilho do vale, que ignorámos, caminhando por onte nos apeteceu. Andámos assim perdidos p’rai duas horas que pareceram belas eternidades, a explorar aqueles terrenos milenares, andando por caminhos por onde, certamente, pouca gente passava. O pico foi aquela casa. Méne aquela casa! pá andávamos já à procura de civilização e avistei, ao fundo, uma casa de três andares. É basicamente uma rocha enorme em forma de cone, onde o pessoal pensou “fixe, fixe, era uma casa ali!”. Para o segundo andar era um buraco com reentrâncias na parede, de dificuldade média. Subimos e reparámos nos vestígios de alguém que fez o que eu gostava de fazer. Uma fogueirinha, passar ali a noite com uma guitarra e algumas almas. Para o terceiro andar, um buraco com algumas reentrâncias com uma dificuldade que me encheu de adrenalina. Estar ali em cima méne, demais! Tenho de voltar e trazer certas almas comigo. Perdemo-nos durante dias naqueles vales, usufruindo o máximo do que os nossos antepassados nos deixaram, respeitando as fundações desses mesmo locais.

Todos sujos, cheios de lama e terra, apanhámos um autocarro de um euro e bazámos para casa. Passámos a noite à conversa e no dia seguinte seguimos para sul.

Apanhámos boleia duns velhos que nos levaram uns míseros mas simpáticos dez quilómetros, e depois de um rapaz que nos levou p’rai quarenta. Depois a cena ficou difícil, mas acabou por correr excelentemente. É que estivemos à espera p’rai duas horas, e não aparecia nada. Ao João, deu-lhe a fome, e foi pedir comida a uma senhora, que lhe deu um grande pão com queijo – porreiro. A cena correu bem porque quando alguém parou, após decidirmos, pelo menos, caminhar, os gajos iam p’rai trezentos quilómetros na nossa direcção. Lá fomos. A caminho os gajos iam tentando comunicar alguma coisa. Muitas vezes isto funciona numa de adivinhar o que perguntam e responder. Há sempre uma grande probabilidade de perguntarem de onde somos, de onde vimos, para onde vamos e se somos estudantes. Às vezes digo que sou estudante, para facilitar a cena.

Eles deixaram-nos em Iskerendum, já na província de Hatay, e apanhámos em cinco minutos uma boleia de vinte quilómetros. Quando este nos deixou, demorámos outros cinco minutos a apanhar outra, de um camionista que nos deixou a oitenta quilómetros. Achei piada ao condutor, que não falava uma palavra de inglês, me ter dado o seu e-mail. Vou procurá-lo no facebook ou algo assim, mas não há possibilidade nenhuma de comunicação...

Uma vez aí apanhámos boleia de um autocarro e às seis e tal estávamos em Antakya. Entretanto o João já decidira que ia ficar na Turquia, ao invés de seguir comigo para a Síria e Líbano. Encontrar-nos-íamos depois, talvez no Iraque. Ele quer conhecer membros do PKK e passar algum tempo com eles. Toda a gente desencoraja tal iniciativa, e o conselho que lhe dei foi simplesmente para não se armar em campeão. Já eu, não necessariamente nesta viagem, mas gostava de voltar e passar algum tempo com eles, entrevista-los, e compor uma cena porreira onde ilustrasse ambos os lados desta luta. Aparentemente rebenta a guerra dia vinte e um. O PKK pediu negociações ao governo turco, mas aos turcos, não lhes apetece. O PKK deu como data limite o dia vinte e um, o dia “nacional” do “Curdistão”. Não ouvimos destas cenas em Portugal, pois não? Ouvimos o que dá na gana a quem controla os media. Ouvimos estupidezes que não têm razão de ser e outras que às tantas até têm ficam no silêncio.

Em Antakyha passámos um serão super relaxado com o nosso anfitrião. Na descontra mesmo, muito porreiro. Jantámos, comemos umas sanduíches, vimos qualquer cena na tv, conversámos.

Acordei no dia seguinte com Beirut na minha mente. Tinha pensado em passar em Aleppo, Síria, primeiro, mas que se lixe.

Apanhei uma boleia de uma camioneta do centro até um sítio estratégico fora da cidade. Chovia para caramba e a boleia não estava fácil. A bófia apareceu, pediu-me o passaporte, agradeceu e seguiu. Não me tinha acontecido antes. A propósito, sabiam que tenho um amigo que quer dar a volta ao mundo sem passaporte? Passando as fronteiras à volta... Que tenha a melhor sorte, e é um grande projecto caso se concretizasse, mas até eu digo que é estúpido e desnecessário. Mas que tenha boa sorte...

Passado p’rai uma hora apareceu um senhor num carro todo podre que depois disse que não ia para onde eu queria. Mas como para a frente é que é caminho, eu pedi para me levar um bocadito, fazendo aquele sinal com o indicador e o polegar a indicar algo curto, ou pequeno. Ele levou-me até ao seu restaurante, a trinta quilómetros que demorámos mais de meia hora a alcançar. Lá, abriguei-me debaixo de um pedaço de telha e dava uma corrida para a estrada quando vinha algum carro. Passava um a cada dez minutos. Eis que apareceu um carro sírio, que me levou até cinco quilómetros da fronteira. Apareceu um carrito que me deixou na fronteira. Saí da Turquia e entrei em território turco. Pedi o visto, os gajos ligaram para Damasco a ver se havia crise, e autorizaram-mo passado meia hora. Era um visto de trânsito (setenta e duas horas), sendo que ia para o Líbano. Custava vinte e cinco dolares em vez dos trinta e três do visto normal. Depois era pagar o visto no “banco”, que estava fechado. Esperei meia hora e o méne apareceu. Abriu a porta do “banco”, que era um barraco com uma cama, uma secretária, um computador e notas, mas não havia luz, por isso no can do. Lá esperei, enquanto os sírios se metiam à minha frente na fila, e a luz voltou, permitindo ao pessoal pagar as suas cenas.

Certo é que passado duas horas de ter deixado a Turquia estava na estrada, na Síria. Altamente. E aquela cena de estar sozinho também é fixe. Não é mais fixe que estar acompanhado, claro que não, mas atribui um cariz diferente. O primeiro carro que saiu da fronteira levou-me logo! Andei quase uma hora até uma cidade que soa a Latakya. Lá, ia perguntando ao pessoal a estrada para o Líbano, mas eles ou não percebiam, ou me mandavam para os táxis. Consegui encontrar um grupo onde havia um parente que falava inglês. Que gajo fixe. Disse para eu apanhar um táxi até Numseionde. Quando lhe disse que não tinha dinheiro sírio, chamou um táxi, falou com o méne, pagou-lhe e mandou-me seguir caminho, depois de me dizer “bem-vindo!”. O táxi deixou-me à beira dos táxis para o Líbano. Por curiosidade perguntei quanto era – cem dolares (vinte e cinco se fossemos quatro). Pois claro, já a seguir. A cena é que não havia autocarros nem comboios. Com dificuldade, muita, sendo que parece ser um conceito alienígena, expliquei que andava à boleia e lá me disseram que era “para ali”. Fui andando, à procura de alguém que falasse inglês, e encontrei um méne, que chamou outro méne, que acabou por me escrever as tais palavras em árabe a explicar que vou na direcção de tal, e para me deixarem a caminho, etc. Funciona como um berlinde!

Comecei a caminhar estrada fora. Pedi a três carros para parar, pararam dois. Um não ia para sul, outro era um camião todo podre, que me levou. O senhor era simpático, ofereceu-me café e oito bolachas, que caíram bem, sendo que tinha apenas comido duas laranjas nesse dia. Fomos andando e ele deixou-me a sete quilómetros da fronteira com o Líbano. A caminho tinha equacionado ir com ele até Damasco. A cena é que o meu telefone não funciona por estes lados, e por isso não tinha contactado o meu anfitrião. Naquele momento tinha uma boleia garantida até um sítio sem anfitrião, Damasco, ou boleia não garantida onde tinha um anfitrião que não conseguia contactar. Acabei por escolher ir até Beirut, e depois via-se.

Chovia. Fui caminhando, após ele me ter deixado, e apanhei outra boleia num instante até à fronteira. No lado da Síria tive de pagar catorze dolares para sair do país (sem comentários), e depois caminhei até ao Líbano. Duas fronteiras a pé, num dia, engraçado!

Tirei um visto grátis no Libano, e enquanto o fazia, um senhor apareceu a dizer que o condutor do seu autocarro me podia levar até Beirut por seis ou sete dolares. Quando hesitei, disse cinco. O senhor estava a ser genuinamente fixe, sendo que nem trabalhava com os gajos. Era uma viagem de duas horas e meia, por isso disse ‘tá tudo. Quando saí e entrei no autocarro, os gajos apareceram e pediram vinte dolares. Estes gajos. Pá uma coisa é subir um bocadito, outra é pedir vinte. Nem stressei nem nada. Só disse que me tinham dito cinco e preparei-me para sair. Avistei o senhor outra vez, expliquei-lhe a cena e ele só disse, após ter falado com eles “dá-lhes seis dolares”. Fixe.

Chegado a Beirut, tinha de arranjar como comunicar com o Michal, o meu anfitrião eslovaco. Fui caminhando com o Ipod (que perdi na mesma noite, paciência, não posso ter coisas fixes) à procura de net. Quando encontrei tentei ligar-lhe do pc, mas os meus programas estavam podres. Encontrei a minha mãe na net e pedi-lhe para ligar ao rapazola. Enfim, o que acabou por funcionar foi pedir a alguém na rua para lhe ligar. Primeiro ele não atendeu, mas passado meia hora lá nos entendemos.

Encontrámo-nos na American University of Beirut. É um gajo fixe. Fez (tipo) erasmus o ano passado em Istambul, e agora está num programa qualquer aqui em Beirut, a receber mil euros por mês para passar aqui um semestre a estudar Psicologia. Fomos a uma festa no dormitório feminino, porque ele tinha dito que havia lá comida grátis. Não havia bebidas alcoólicas nenhumas, mas as cenas estavam bem animadas. Iá não é preciso álcool para se divertir e tudo mais, certo certinho, ok. Lá o gajo encontrou umas amigas e fomos beber um par de caras cervejas a um bar que tocava músicas agradavelmente foleiras. Ficámos lá duas horitas, a conversar acerca do sistema e do poder que cada um de nós tem para o mudar. Ele defendia que não. Eu, ingenuamente ou não, acredito, como tenho vindo a descrever aqui, que não podemos negligenciar o nosso poder em mudar as cenas. É assim tão estúpido referir pessoas como o Ghandi ou o Luther King? Nós agimos de acordo com aquilo que nos achámos capazes. Se nos acharmos burros, vamos agir de uma forma que confirme esta nossa crença. Mas se nos acharmos, por exemplo, capazes de mudar o mundo, vamos agir de uma forma que vá de encontro a esta expectativa. Claro que vale a pena balançar isto de uma forma que não nos deixe com um ego do tamanho desse mundo que queremos mudar.

Depois comprámos duas garrafas de vinho e viemos para casa, continuar a conversa. Foi fixe.

Ontem, dia dez, andei pela cidade. Incrível os edifícios todos esburacadas da guerra civil de mil novecentos e oitenta e nove. Beirut estava dividido em duas partes, de acordo com as religiões vigentes em cada parte, e assim esteve de 1974 a 1989. Não fui aos sítios típicos do turista. Em vez disso andei a caminhar meio sem destino. Choveu, trovejou e choveu mais, e encontrei guarida num acampamento de protesto no meio da cidade. Tinha um oleado enorme para proteger da chuva, um par de tendas dentro e p’rai vinte pessoas. Perguntei qual era a cena e explicaram que era um protesto contra o regime “sectarista” que existe aqui. O Líbano é, supostamente, um estado laico. Contudo, o presidente tem de ser de uma certa religião, o primeiro ministro de outra, e outra pessoa influente qualquer, de outra. Eles protestam contra isto, dizendo que isto promove a corrupção, sendo que eles usam a religião como uma poderosa arma de manipulação das massas. Entrevistei um gajo, mas a minha câmara lembrou-se de não guardar a filmagem. Obrigadinho.

Eventualmente encontrei-me com o Michal. O resto do dia foi tranquilo, estou cansado de escrever e quero ir ver a cidade. Hasta luego.

13h45-6ª-11-3-11
Beirut, Líbano

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