“Sex is dirty”, ouço, vindo da sala, para onde me encaminho para jantar. Dizia o colega de casa do Duzgun, o nosso anfitrião curdo em Nevsehir, Cappadocia. É muçulmano mas não pratica muito, diz, sendo que só vai à mesquita uma vez por semana. Interessante como, em Portugal, ir à igreja uma vez por semana (pelo menos) é de quem pratica e pratica bem! É um rapaz até aberto e tudo mais, falador, mas que se assume conservador. A conversa seguiu por esses caminhos, sendo o seu argumento um parecido com a ideologia cristã, de que nascemos do pecado e essas cenas que me dão arrepios. O seu reliogismo não é daqueles que me horripila, sendo que era mais ou menos subtil na defesa do Islão como a verdadeira cena e aceitava o meu ateísmo sem problemas, dizendo até que era preciso ser uma pessoa forte parfa ser ateu, na medida em que foge à norma. Ora argumentei que isso é relativo, sendo que em Portugal, tanto quanto me parece, o que foge à norma é ser religioso, na minha geração. O pessoal se calhar às vezes até diz que acredita e não sei quê, mas não me convencem muito e muitas vezes parece-me que mo dizem porque não sabem mais que dizer e fica mal dizer-se ser ateu. Talvez eu esteja a ver as cenas de uma forma enviezada, partindo do princípio que eu é que sei, uma maneira de ver as coisas que não é assim tão rara em mim...
Estivémos um par de horas à conversa, à volta de chá turco, e um grande ponto de discórdia prendia-se com homossexualidade, casamento de homossexuais e adopção de crianças. Parece que ouço os mesmo argumentos em todo o lado, e alguns roçam o ridículo, como o não ser natural. Tenho sempre de me acalmar – porque odeio este argumento. Sexo oral, sexo anal, telemóveis, poliéster, computadores e despertadores também não são naturais, ‘bora deixar de fazer/usar estas cenas (quem as faz/usa). E o outro é as crianças na escola gozarem com os filhos adoptados por um casal homossexual. Iá, boa. Se as crianças discriminam, isso está errado. E vamos deixar de fazer algo porque outros elementos da sociedade fazem algo errado? Assim não há, nem nunca teria havido, qualquer progresso. Parece-me, muitas vezes, um argumento quem quem acha que não é natural desencanta do fundo do seu ser para não se achar a si próprio tão parvo. As pessoas muitas vezes parecem pensar que o progresso e uma maior abertura nunca será do nosso tempo. Temos de esperar que alguém apert um botão qualquer, numa altura qualquer, e aí as cenas mudam. No futuro. Mas se todos, como um, adoptarmos uma postura diferentes, as cenas mudam. E não tem de começar com um visionãrio que vai de casa em casa fazer lavagem cerebral a toda a gente. Se os professores não permitirem aos outros putos gozarem com filhos de homossexuais e explicarem a cena, pode mudar. Se esses mesmos putos que gozam, forem filhos de um casal heteressexual que lhes explica
que a VIDA é a VIDA de casa um, pode mudar. E, acima de tudo, é preferível ter um puto a crescer num orfanato, ou numa casa com dois pais que lhe dão amor, e carinho? Esse amor é vital na formação de uma personalidade forte, que até permite lidar de uma maneira saudável e forte com esses eventuais gozos. E esses gozos não são necessariamente perenes. Se os putos gozam com o puto que tem dois pais e ele se marimba, eles escolhem aquele outro puto que tem sardas. Não quero dizer que se lixem os putos com sardas, mas dizer que, de certa forma, a crueldade dos putos não é necessariamente selectiva.
Em Antalya foi muito fixe. Estava um tempo fenomenal, e foi bom voltar a ver o Turker, ainda que não tenhamos sido exactamente amigos do peito em Birmingham. Foi, igualmente, conhecer a sua namorada Delphine, franco-americana. Um casal interessante, de pessoas com personalidade forte, sempre às turras mas com grande dinâmica ali no meio.
Quem até quase lá me levou foi o Samet, um turco que falava americano, um personagem interessante. Misturava a abertura com algum convencionalismo. Era o único dos seus irmãos que não era muçulmano, e da mesma forma, não impingia religião ou ideologia nenhuma aos seus filhos. Tinha seis deles, de duas mulheres. Tinha uma ou dua namoradas em cada país e era inimigo de quem mentia. “Uma vez o meu filho mentiu-me [sobre fumar] e não falei com ele durante três meses”, diz-me. Quando lhe pergunto acerca da sua mulher, diz que ela nunca perguntou acerca as suas cenas, porque ela sabe. Por outro lado, o seu convencionalismo manifestava-se em, por exemplo, não querer que a sua mulher trabalhasse. “Eu sou um gajo preguiçoso. Gosto de saber que tenho alguém à minha espera, e gosto de ter a comida pronta”, responde. Gostei de conhecer este homem que não consegue estar parado, que tinha centenas de milhares de euros que perdeu numa noite, que não está cá para essas regras de conduzir só dez horas por dia e que faz dezasseis ou quantas possa, que não curte ficar a dormir numa estação de serviço e prefere ir sair e arranjar um gaja.
Deixou-me a oitenta quilómetros de Antalya, tal como o seu amigo deixou o João, que seguia à frente. Estava escuro, e por isso demorámos cerca de uma hora a arranjar boleia. Mas curti. Curti
estar ali na escuridão, debaixo de um poste de luz como quem da chuva se abriga, a temperatura naquel limite da t-shirt...
Quando chegámos a casa do Turker jantámos e ficámos na conversa até às duas, ao abrigo de Havana Club. Falámos da Turquia e do Curdistão, e de outra cenas de que não me recordo. Foi uma noite porreira, na descontra.
No dia seguinte fomos ver Antalya. Iá é um sítio turístico e tudo mais, mas é bonito. Às vezes não curto muito a onda do pessoal não curtir sítios turísticos. Pá se um sítio é bonito, continua a ser bonito se tiver pessoas de outros países. Claro que muitas vezes se perde um bocado aquela cena, aquele sentimento do verdadeiro país. Pá aqui a ler-me escrever, sei que também prefiro sítios não explorados... acho que o que quero dizer é que às vezes me parece que o pessoal desgosta dos sítios turísticos mais porque é a cena fixe a se dizer.
Dei um mergulho no mar, que me soube pela VIDA. Foi, para mim, um momento interessante. Dei por mim a pensar “Até dava um mergulho, se estivesse mais quente. Se tivesse toalha, se isto, se aquilo”, e de repente tive de me parar. Quem era aquele gajo a falar? Se isto, se aquilo, tantos se’s quando o se mais importante é o “se me apetece mergulhar, mergulho”. Nunca fui muito destes se’s, e às vezes tenho um bocado de medo que isso seja uma condição inerente à idade. Aprendemos a avaliar as consequências, e depois não fazemos outra coisa! Não quero isso para mim, não quero arrastar-me constantemente para um futuro que me arrasa o presente. Quero estar ligado com as minhas vontades, devaneios e sabores, e seguir a direito, colado intrinsicamente ao que me é íntimo e desejado.
Por isso mesmo, curti, ainda que numa cena tão simples como um mero mergulho, apanhar-me, dar-me quatro estalos, e ser o que quero ser.
No dia seguinte partimos em direção a Konya. Esta cidade estava a meio caminho de Cappadocia, e parecia sensato apontar para ficar por aí, sendo que não íamos conseguir boleiar as dez horas que eram precisas até Cappadocia, onde não tínhamos ainda um anfitrião. Pelo caminho passámos em Sile. Apanhámos uma boleiita de cem quilómetros e fomos dar uma vista de olhos nesta vila com interessantes ruínas, e com mais alemães do que a Alemanha.
Depois lá nos pusemos a caminho de Konya. Chegámos lá num ápice. Boleia em Sile para fora de Sile, duns gajos barulhentos e simpáticos; boleia de um carro com três turcos porreiros; boleia de um turco que nos levou um pedação e depois, finalmente, boleia de dois parentes que iam numa carrinha com três lugares. Não há espaço? E daí, ‘bora! A paisagem era, em alguns lugares por onde passámos, de cortar a respiração. Assim, boleiar não custa. Quando olhas para o lado, arrepiado do inesperado frio, e vês uma montanha coberta de neve, sorris, ainda que o carrito não pare.
Viemos a saber mais tarde que Konya é das cidades mais conservadoras da Turquia. Mas deu para perceber. Tínhamos pedido guarida no grupo de emergência do couchsurfing e uma rapariga disse que nos podia ajudar. Essa rapariga é a Eda, que pediu aos seus amigos, não parte deste site, para nos albergar. No problem. Eram quase todos estudantes de inglês no primeiro ano da universidade, ainda que o seu inglês não fosse dos melhores. Dava para falar razoavelmente bem. A Eda é uma miuda muito gira de dezanove anos que ainda não está pronta para cobrir o cabelo. Entristeceu-me ouvir aquilo. Entristece-me que se sinta a compulsão para fazer algo que muito provavelmente não se quer fazer. “O Islão é a religião que mais promove a igualdade de géneros”, disseram-me. Em muitos sentidos, aprendi fazer sentido. Mas em cenas como estas, acho que é evidente a diferença. “Para não tentar o homem”. Ela deixou-nos com os seus amigos, sendo que tinha de voltar (dormitório de raparigas com recolher obrigatório às sete e meia) e pusemo-nos a caminho. Não nos deixaram pagar o jantar nem uma cena que compraram parecida com farturas. Em casa bebemos chá, invariavelmente, e conversámos. De vez em quando eu pedia para não se ofenderem com as nossas questões acerca das suas crenças, sendo que estas mesmas questões advinham de interesse e curiosidade. Eles respondiam com todo o gosto. Eram quatro, malta porreira e pura, acho que posso dizer. Pura mesmo. Nunca tinham saído da Turquia, porque não pensavam nisso. Encorajei-os a ir em erasmus, alertando-os, ao mesmo tempo, que o estilo na Europa é muito diferente.
Às vezes sentia um bocado a necessidade de fazer conversa, mas encontrámos um ponto comum que era o futebol, e o Pro Evolution Soccer, que funcionou como um desbloqueador fixe. Jogámos um ou dois jogos e ficámos amigos. Achei fixe a maneira como os gajos chegaram com um par de folhas de jornal, a dada altura, e espalharam três tachos de pipocas para lá. Sentámo-nos à volta e comemos, conversando.
No dia seguinte fomos ver Konya. Não tínhamos planeado, mas quando chegámos a Eda falou logo nos planos para o dia seguinte e era um bocado chunga dizer “ah pá mas nós só viemos cá dormir!”. Assim, andámos numa pequena tour até às duas e pico. Eles queriam que ficássemos, e achámos que, caso não tivéssemos estadia em Nevsehir, Cappadocia, ficávamos. Tínhamos o Duzgun, por isso pusemo-nos a caminho.
Eles estavam um tanto ao quanto incrédulos quanto às nossas capacidades de sucesso, e grizaram-se todos quando, ainda na cidade, o João se aproximou da berma e mostrou um sinal a dizer Aksaray (cidade a caminho). A ideia que me deu é que era pessoal que se grizava facilmente com bué de cenas. Tipo quando o João dizia “Vai-te foder”, na brincadeira, em turco, eles riam-se, num riso que misturava a surpresa, o humor, choque e embaraço. Lá nos despedimos, caminhámos um pedaço e interpelamos um cota num semáforo. Perguntámos se nos podia deixar em determinada rua e ele acabou por nos levar oitenta quilómetros. Após esta boleia, demorámos dez minutos a entrar no próximo carro, mais uma vez uma carrinha com capacidade para três pessoas que levou, connosco, quatro. Entretanto tinha enviado mensagem ao Duzgun, a dizer que estávamos a caminho. Não tinha respondido. Tinha o destino reservado para nós uma surpresa, nesse dia.
Os gajos deixaram-nos lá em Numseionde e tínhamos p’rai meia hora de sol. Caminhámos um pedaço e apanhámos boleia de uma camioneta, que nos deixou p’rai quatro quilómetros adiante. Fomos caminhando estrada fora e só passado cerca de uma hora entrámos numa carrinha que vinha com o pessoal todo partido de trabalhar, que nos deixou poucos quilómetros mais adiante. Estava preta, a cena. É que à noite todos os gatos são pardos e todos os boleiistas são invisíveis. Quase.
Fomos caminhando, outra boa hora, e nada. Encontrámos um velho, numa bicicleta, que não nos largou enquanto nos deixou, a pé, na estrada que ia mesmo para Nevsehir, estrada para onde já estávamos a ir de qualquer maneira. Ficámos aí uma meia hora, até que apareceu um autocarro. Tentar não custa, não é? Veio um homem cá fora e perguntei se ia para Nevsehir. Quando disse que sim, eu disse que não tínhamos dinheiro, e perguntei se dava para ir na mesma. Ele gesticulou para o condutor que, de dentro do autcarro, lhe disse “ok!”. Lá fomos até Nevsehir!
O Duzgun não atendia o telefone. Boa. Dez da noite. Frio.
Fomos a um internet café mandar um pedido de emergência que falhou. Conseguímos, contudo, ver que o Duzgun vivia perto da universidade. Pedimos instruções a um surdo e metemo-nos a caminho. Apanhámos uma boleiita e estávamos na rua do gajo. Mas o número da casa dele, nem vê-lo. Liguei ao gajo e o número estava errado, devia ter apontado mal. Umas atrás das outras! Caminhámos lá meio sem saber o que fazer, e avistámos uma malta jovem. Uma deles falava inglês, era guia turística por estes lados. Explicámos a situação e tentaram ajudar-nos a encontrar a casa, sem sucesso. A dada altura decidi mandar, subtilmente, a bola para o campo deles. “Ah e tal, estas ruas são seguras para dormir?”, perguntei. Acabei por marcar golo, mas ainda houve uns centros e assim. Ela falou do frio e não sei quê, ligou a uns amigos, e quando dou por ela estou numa sala com doze ou treze curdos, duas ou três pessoas que falam inglês, jantar no chão para nós, nas famosas folhas de jornal, e uma cama que mais tarde nos receberia, naquela mesma sala. Demais pá. Pessoal mesmo fixe. Ficámos lá no paleio um par de horas, falámos sobretudo acerca da história curda. É um povo que, supostamente, está na Turquia antes dos turcos, já da altura da Mesopotâmia. São dezenas de milhões na Turquia (ouvi vários números, de dezassete a trinta milhões, e aTurquia tem p’rai setenta) e ocupam sobretudo o Este. Contudo, não podem aprender curdo na escola, ainda que a maioria da gente nesta região seja curda. E há uns anos era proibido falar curdo.
Nos anos vinte, foi-lhes prometido pelo Ataturk, o gajo que ajudou à queda do império otomano e a subsequente criação da Turquia, que, caso os ajudassem, teriam o seu país, mas país nem vê-lo.
Assim, nos anos setenta, nasceu o PKK (Partido dos Trabalhadores Turcos, algo assim), conhecidos pelos turcos como terroristas assassinos de mulheres e crianças e pelos curdos como uma organização que luta pela liberdade de um povo e que só ataca militares e nunca civis. Mais uma vez a tal cenas das nações...
E agora vou dar um xónix.
0h57-2ª-7-3-11
Nevsehir, Turquia
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