Deixámos
Casablanca e o Joel começou a sentir-se mal. Tinha comprado no dia anterior
umas bolachas que pareciam, disse eu, no gozo, de 1971. Talvez tenha sido isso,
mas duvido. Talvez tenha sido a água. Ou qualquer outra cena que tenha comido.
Comemos sempre o mesmo por isso, ou ele teve azar numa pequenina peça que eu
não apanhei, ou tem uma intolerância qualquer que eu não tenho. A verdade é que
hoje, cinco dias depois, o rapaz ainda anda a correr para o quarto-de-banho.
Tem sido difícil para o rapaz.
Pedalámos
o dia todo com algumas pausas para ele descansar, e acabámos por acampar num
campo. Deixámos a estrada, metemo-nos campo adentro e montámos a tenda num
sítio que não parecia ter cultivo. Nessa noite, como o Joel estava todo
empenado, coube-me cozinhar, e foi a primeira vez que fiz uma refeição naquele
fogão de lata de cerveja. Foi um bocado complicado porque a cena está sempre a
apagar-se. Talvez tenha sido da falta de experiência. Certo é que
posteriormente desenvolvi um sistema, em que ponho a lata dentro do meu tacho e
depois o tacho dele por cima, e assim fica muito mais isolado do Vento do que
com o papel de alumínio que o Joel costuma por à volta.
Não
dormi mal, mas não foi nenhum sonho, digamos. Aliás... acampar tem sido
altamente e já percebi quer o vou fazer muitas vezes nesta viagem, mais de cem,
talvez. Mas tem as suas desvantagens, algumas das quais que espero que
esvaneçam brevemente. Uma delas é o frio. Pois o meu saco-cama diz que dá para
dormir confortavelmente a quinze graus e o limite é onze. Comprei um outro
saquito que diz que oferece mais três graus. Ainda assim, nessa noite, por
exemplo, tive de dormir com uma camisola polar e depois vestir um casaco. O
chão é outra desvantagem, mas mais por motivos indirectos. É que como sou tão
espectacular, não trouxe nenhum colchão. E, na verdade, não tenho grandes
problemas em dormir na pedra mesmo. O pior é que o chão é frio... por isso
acabo por sofrer um bocado por não ter colchão de uma forma que não era a
esperada.
Contudo,
acho que a desvantagem principal, e que
está a ser o que mais me está a custar na adaptação, é o não me sentir limpo.
Pá, não sou nenhuma madame, e apesar de geralmente tomar banho todos os dias,
aguento bem não tomar vários dias seguidos se tiver que ser. Até hoje o meu
recorde é quando andei pelo Deserto de Gobi, na Mongólia, em que foram uns 8
dias. Mas ainda assim, além de mudar de roupa algumas vezes, não transpirava,
porque estava um frio tremendo. Ora nesta viagem já não tem sido bem assim. Até
Tanger tomei banho todos os dias. Depois de Tanger estive quatro dias sem tomar
banho, até Casablanca, e depois de Casablanca estive três dias. A cena é que
são vinte e quatro horas por dia com a mesma roupa! E a pedalar todos os dias!
Quando penso que só em Jemenas é que me apercebi que não tinha de mudar de
roupa todos os dias até me passo!
Ontem,
quando assentámos arraiais no quarto que encontrámos, fui tomar um semi-banho.
Semi-banho porque o gel de banho que tinha trazido de Espanha não faz espuma
nenhuma e a água tem a pressão da bechiga do Manoel de Oliveira... Ainda assim,
depois de tomar banho vestir os mesmos boxers e meias que ando a usar há três
ou quatro dias foi uma sensação terrível. As meias tresandavam e os boxers não
me atrevi a cheirar. Hoje tentei lavar algumas cenas. Não havia água quente.
Tudo o que tinha era água fria, um sabão que o Joel comprara num super-mercado
e um balde. E depois já não tinha água, que tinha sido cortada por algumas
horas. Lá deixei as cenas a secar e já as fui apanhar. Vou ter de me contentar
com a ilusão de limpeza. Tenho de arranjar um sistema qualquer...
Estou
a pensar em ter roupa para dormir e roupa para pedalar. Pedalo, transpiro e
tal, faço o que tenho a fazer, depois quando páro, molho um pano com água e
sabão e tomo uma espécie de banho seco. Ou então habituo-me. A cena é que não
me quero habituar... foi o que disse ao Joel, que me disse que, se calhar, a
razão pela qual não tinha nenhuma namorada era esse à-vontade tão grande.
De
Casablanca fomos até Essaouira, onde finalmente descansei e onde escrevi a
primeira parte deste texto. Tínhamos acampado antes de Safi, numa zona com
várias casas em construção. Fiado um bocado naquela onda dos muçulmanos
hospitaleiros, fui a uma casa toda janota cujo dono estava cá fora e perguntei
se podíamos dormir em casa dele. Ele sorriu e disse que não, porque era da
família e tal. Disse que podíamos acampar ali em qualquer lado, e foi o que
fizemos. O Joel estava mal, cheio de diarreira, de vez em quando pedindo
desculpas se estava irritável. Notei-o uma vezita ou outra, mas absolutamente
nada de mais. Aliás, acho que lidou com a cena como um campeão. Mas como estava
todo roto, coube-me a mim ir buscar o jantar. Tirei as cenas da Bicicleta e
voei até Safi, onde conheci um professor de surf marroquino que me guiou pela
loucura de Sábado à noite daquela cidade, em que toda a gente andava na rua e
os vendedores de legumes se multiplicava. Comprei massa, vegetais, as nossas
bolachas preferidas e fui para cima. Foi uma empreitada e peras, que me levou
cerca de duas horas, apenas com dez minutos para comer um cachorro. Acho que fui
levado aqui, pois dei dez dirhams ao gajo, e quando me ia embora o gajo disse
que só tinha dado cinco. Fiquei na dúvida... mas não tinha a certeza, pelo que
tive que ceder. Doravante, mais atenção.
O
oportunismo, em geral, é uma cena com a qual tenho vários problemas. Mete-me
uma impressão tremenda que se tentem aproveitar de mim só porque não sou daqui.
Fónix as cenas têm um preço, e deve ser igual para todos. E às vezes dizem,
sejam os locais ou outros viajantes com a mania que sabem “se podes pagar mais,
porque é que não pagas?”. Ora, em primeiro lugar, nunca se sabe se posso ou
não, porque não me conhecem de lado nenhum. Por acaso posso, porque, realmente,
tenho mais dinheiro. Mas estou numa viagem de um ano, e se pago sempre mais, no
final nota-se bem. E como até gostava de viver disto de escrever e viajar, não
havendo muita fortuna na literatura, esse que se nota pode fazer falta, quem
sabe. Depois, se estou a pagar mais, estou a contribuir para eles pedirem mais
a estrangeiros, e podem fazê-lo a pessoas que, realmente, não podem mesmo pagar
mais. Finalmente, é um argumento que não faz sentido porque se não pudesse
pagar nada não mo davam de graça. Tem de dar para os dois lados. Ainda ontem me
irritei com um puto. Pedi-lhe uma sopa e o gajo pediu-me quase o dobro do preço
que andava a pagar. Tentei dizer-lhe, em francês, “Quero o preço normal, não
quero o preço de estrangeiro!”.
Antes
de sairmos de Safi fomos tomar pequeno-almoço, e um méne perguntou-me de onde
era. Quando disse que era de Portugal, disse-me que tinha estado em Lisboa, e
que não tinha curtido nada. “Vais a uma casa de alterne, não podes tocar, não
podes fazer nada...”. Iá, é uma razão demais para não se curtir um sítio.
Quando me perguntou o que achava de Marrocos e eu disse que curtia, ele disse
que era altamente. Ora se em Portugal não se pode tocar nas mamas de uma
stripper, duvido que em Marrocos se possa. Engraçado como as nossas opiniões e
perspectivas mudam.
O
Joel deve ter feito um pacto com o diabo nesse dia, pois apesar de ainda estar
de diarreira, sentia-se lindamente, e pedalámos todo o dia, com um Vento de
cauda brutal até que, 136 quilómetros depois, chegávamos a Essaouira. Fomos a
um café ver se tínhamos resposta do couchsurfing, mas nada. Deixei o canadiano
no café e fui a um campismo ali perto, onde conheci o primeiro marroquino
verdadeiramente arrogante, e percebi que era caro demais para nós. Pegámos nas
biclas e fomos dar uma volta à procura de um hostel ou algo parecido que fosse
fixe. Tínhamos encontrado um hotel bacano onde o dono tinha baixado de quinze
para dez euros cada um quando avistei a estação de autocarros. Tinha lido
algures que à saída da mesma várias senhoras se aglomeravam e abordavam
turistas a oferecer quartos. Aproximei-me e levantaram-se duas num ápice, uma
delas meio segundo mais cedo que a modos que disse à outra para axantrar. Iá,
ela axantrou mas veio connosco na mesma, e mais logo, quando já estávamos
instalados, veio pedir a comissão. Fónix, comissão é quando se presta um
serviço! Ah, sinto-me dividido e controverso em relação a estas cenas. Dei-lhe
dez dirhams, e a minha ideia era serem pelos dois, mas o Joel deu mais dez, e
não me apetecia debater muito sobre a cena. A verdade é que, contrariamente às
minhas expectativas, encontrámos um sítio onde pagámos, para os dois e duas
noites, quinze euros. Nada mau. Claro que o quarto não era exactamente o
Hilton. Era um quarto com duas camas individuais com um cobertor enorme de cem
quilos em cada uma e uma mesinha de cabeceira no meio. Podíamos ter escolhido
outro por vinte euros para as duas noites, mas não era necessário.
Tentei
tomar banho mas a água quente desapareceu num ápice. Continuei de água fria mas
o gel de banho que tinha trazido de Espanha não tinha espuma nenhuma e acabou
por ser uma cena um bocado inglória. E iá, depois calçar meias usadas, que
maravilha!
Fomos
comer qualquer cena na rua ao lado da estação de autocarros e voltámos para o
quarto.
No
dia seguinte ia conhecer Essaouira! Mas antes ainda ia lavar a minha roupa.
Munido do sabão do Joel perguntei à senhora onde era o tanque. Ela mandou-me
para o terraço mas, quando lá cheguei, não tinha lá nada. “Ela deve pensar que
eu perguntei onde é que posso pôr a roupa a secar”, pensei, meio confuso, pois
no dia anterior quando perguntara se podia lavar a roupa ela tinha apontado
para “o lado de lá”, que não existia. Quando lhe fui perguntar outra vez ela
fez cara de quem percebeu e foi buscar-me uma bacia. Okay, era aquilo o tanque.
Fui para o quarto-de-banho do último andar, enchi a bacia de água, estendi as
peças de roupa e comecei a dar-lhe com o sabão. Que suplício! Parecia-me que
aquilo não era o método mais eficaz, mas lá ia dando o meu melhor. Até que a
água acabou, e fiquei com metade da roupa por “lavar”.
Estava
a estender as cenas no terraço quando a senhora apareceu para ir buscar uns
cobertores. Disse que só havia água mais logo e eu acho que lhe mandei um olhar
mais foleiro do que hoje desejaria. Um olhar tipo encolhe-ombros de quem diz
“Pois... isto é assim...”. Quando no fundo a senhora não nos tinha exactamente
prometido água corrente, e não nos estava a cobrar nenhuma fortuna. Apesar de
não ter sido nada de mais, foi um olhar que acho que não costuma vir de mim, e
senti-me, mais tarde, meio culpado por isso.
Fui
ver a cidade e estava um bocado confuso. Onde andava a Essaouira de que me
tinham falado? Dei uma volta, caminhei sempre em frente, passei no
super-mercado para um sumo de manga, continuei a caminhar. Iá, tinha alguns
aspectos interessantes, mas nada que qualquer outra cidade marroquina não
tivesse. Perguntei a uns ménes pela Medina, e lá me encaminharam. Fui andando,
parei para uma sopa, depois para um café e um par de horas na internet, e
segui. Avistei ao fundo uma espécie de castelo. “Deve ser aquilo a Medina”,
pensei. Cá fora tirei uma fotografia e comprei um pacote de pipocas e entrei. E
de repente estava na Essaouira de que me tinham falado! De repente tudo à minha
volta era de outro mundo. Como em muitas outras Medinas, aquilo estava pejado
de lojas, grande parte delas com as suas vistas apontadas aos turistas que por
lá deambulavam. Ainda assim era impossível não curtir bués aquilo! As ruas
estreitas, os cafezitos janotas, as mini-pastelarias, as esculturas de madeira
cá fora, as pessoas sempre de um lado para o outro, as lojas de azeitonas, e a
música ocasional. Deixei-me perder completamente, indo por vezes parar a sítios
todos rebentados com pequenos túneis e malta com ar meio suspeito, e curti bués
aquelas horas em que por lá andei. Eventualmente fui dar à fortaleza, com uma
pequena torre e vários canhões. À saída tropecei na única loja de álcool desde
há algum tempo. Não comprei nada.
Estacionei
num café e o Joel apareceu por acaso. Ficámos lá um pedaço e fomos para o
“hotel”. Tínhamos pensado em ir ver o que se passava em termos de cortiré, mas
aquela terra não era conhecida por isso, e estávamos na época baixa. Aliás, na
Medina, nessa tarde, foi a primeira vez em Marrocos em que vi uma concentração
de estrangeiros. Claro está que não fui a Marraquexe.
Já tomaste banho? ;) :)))))
ResponderEliminarSe estivesses por cá aproveitavas a chuva ;)
Grande abraço.
Tudo de bom.