terça-feira, 25 de março de 2014

Essaouira



Deixámos Casablanca e o Joel começou a sentir-se mal. Tinha comprado no dia anterior umas bolachas que pareciam, disse eu, no gozo, de 1971. Talvez tenha sido isso, mas duvido. Talvez tenha sido a água. Ou qualquer outra cena que tenha comido. Comemos sempre o mesmo por isso, ou ele teve azar numa pequenina peça que eu não apanhei, ou tem uma intolerância qualquer que eu não tenho. A verdade é que hoje, cinco dias depois, o rapaz ainda anda a correr para o quarto-de-banho. Tem sido difícil para o rapaz.

Pedalámos o dia todo com algumas pausas para ele descansar, e acabámos por acampar num campo. Deixámos a estrada, metemo-nos campo adentro e montámos a tenda num sítio que não parecia ter cultivo. Nessa noite, como o Joel estava todo empenado, coube-me cozinhar, e foi a primeira vez que fiz uma refeição naquele fogão de lata de cerveja. Foi um bocado complicado porque a cena está sempre a apagar-se. Talvez tenha sido da falta de experiência. Certo é que posteriormente desenvolvi um sistema, em que ponho a lata dentro do meu tacho e depois o tacho dele por cima, e assim fica muito mais isolado do Vento do que com o papel de alumínio que o Joel costuma por à volta.

Não dormi mal, mas não foi nenhum sonho, digamos. Aliás... acampar tem sido altamente e já percebi quer o vou fazer muitas vezes nesta viagem, mais de cem, talvez. Mas tem as suas desvantagens, algumas das quais que espero que esvaneçam brevemente. Uma delas é o frio. Pois o meu saco-cama diz que dá para dormir confortavelmente a quinze graus e o limite é onze. Comprei um outro saquito que diz que oferece mais três graus. Ainda assim, nessa noite, por exemplo, tive de dormir com uma camisola polar e depois vestir um casaco. O chão é outra desvantagem, mas mais por motivos indirectos. É que como sou tão espectacular, não trouxe nenhum colchão. E, na verdade, não tenho grandes problemas em dormir na pedra mesmo. O pior é que o chão é frio... por isso acabo por sofrer um bocado por não ter colchão de uma forma que não era a esperada.

Contudo, acho que a desvantagem principal, e que está a ser o que mais me está a custar na adaptação, é o não me sentir limpo. Pá, não sou nenhuma madame, e apesar de geralmente tomar banho todos os dias, aguento bem não tomar vários dias seguidos se tiver que ser. Até hoje o meu recorde é quando andei pelo Deserto de Gobi, na Mongólia, em que foram uns 8 dias. Mas ainda assim, além de mudar de roupa algumas vezes, não transpirava, porque estava um frio tremendo. Ora nesta viagem já não tem sido bem assim. Até Tanger tomei banho todos os dias. Depois de Tanger estive quatro dias sem tomar banho, até Casablanca, e depois de Casablanca estive três dias. A cena é que são vinte e quatro horas por dia com a mesma roupa! E a pedalar todos os dias! Quando penso que só em Jemenas é que me apercebi que não tinha de mudar de roupa todos os dias até me passo!

Ontem, quando assentámos arraiais no quarto que encontrámos, fui tomar um semi-banho. Semi-banho porque o gel de banho que tinha trazido de Espanha não faz espuma nenhuma e a água tem a pressão da bechiga do Manoel de Oliveira... Ainda assim, depois de tomar banho vestir os mesmos boxers e meias que ando a usar há três ou quatro dias foi uma sensação terrível. As meias tresandavam e os boxers não me atrevi a cheirar. Hoje tentei lavar algumas cenas. Não havia água quente. Tudo o que tinha era água fria, um sabão que o Joel comprara num super-mercado e um balde. E depois já não tinha água, que tinha sido cortada por algumas horas. Lá deixei as cenas a secar e já as fui apanhar. Vou ter de me contentar com a ilusão de limpeza. Tenho de arranjar um sistema qualquer...

Estou a pensar em ter roupa para dormir e roupa para pedalar. Pedalo, transpiro e tal, faço o que tenho a fazer, depois quando páro, molho um pano com água e sabão e tomo uma espécie de banho seco. Ou então habituo-me. A cena é que não me quero habituar... foi o que disse ao Joel, que me disse que, se calhar, a razão pela qual não tinha nenhuma namorada era esse à-vontade tão grande.

De Casablanca fomos até Essaouira, onde finalmente descansei e onde escrevi a primeira parte deste texto. Tínhamos acampado antes de Safi, numa zona com várias casas em construção. Fiado um bocado naquela onda dos muçulmanos hospitaleiros, fui a uma casa toda janota cujo dono estava cá fora e perguntei se podíamos dormir em casa dele. Ele sorriu e disse que não, porque era da família e tal. Disse que podíamos acampar ali em qualquer lado, e foi o que fizemos. O Joel estava mal, cheio de diarreira, de vez em quando pedindo desculpas se estava irritável. Notei-o uma vezita ou outra, mas absolutamente nada de mais. Aliás, acho que lidou com a cena como um campeão. Mas como estava todo roto, coube-me a mim ir buscar o jantar. Tirei as cenas da Bicicleta e voei até Safi, onde conheci um professor de surf marroquino que me guiou pela loucura de Sábado à noite daquela cidade, em que toda a gente andava na rua e os vendedores de legumes se multiplicava. Comprei massa, vegetais, as nossas bolachas preferidas e fui para cima. Foi uma empreitada e peras, que me levou cerca de duas horas, apenas com dez minutos para comer um cachorro. Acho que fui levado aqui, pois dei dez dirhams ao gajo, e quando me ia embora o gajo disse que só tinha dado cinco. Fiquei na dúvida... mas não tinha a certeza, pelo que tive que ceder. Doravante, mais atenção.
                 
O oportunismo, em geral, é uma cena com a qual tenho vários problemas. Mete-me uma impressão tremenda que se tentem aproveitar de mim só porque não sou daqui. Fónix as cenas têm um preço, e deve ser igual para todos. E às vezes dizem, sejam os locais ou outros viajantes com a mania que sabem “se podes pagar mais, porque é que não pagas?”. Ora, em primeiro lugar, nunca se sabe se posso ou não, porque não me conhecem de lado nenhum. Por acaso posso, porque, realmente, tenho mais dinheiro. Mas estou numa viagem de um ano, e se pago sempre mais, no final nota-se bem. E como até gostava de viver disto de escrever e viajar, não havendo muita fortuna na literatura, esse que se nota pode fazer falta, quem sabe. Depois, se estou a pagar mais, estou a contribuir para eles pedirem mais a estrangeiros, e podem fazê-lo a pessoas que, realmente, não podem mesmo pagar mais. Finalmente, é um argumento que não faz sentido porque se não pudesse pagar nada não mo davam de graça. Tem de dar para os dois lados. Ainda ontem me irritei com um puto. Pedi-lhe uma sopa e o gajo pediu-me quase o dobro do preço que andava a pagar. Tentei dizer-lhe, em francês, “Quero o preço normal, não quero o preço de estrangeiro!”.

Antes de sairmos de Safi fomos tomar pequeno-almoço, e um méne perguntou-me de onde era. Quando disse que era de Portugal, disse-me que tinha estado em Lisboa, e que não tinha curtido nada. “Vais a uma casa de alterne, não podes tocar, não podes fazer nada...”. Iá, é uma razão demais para não se curtir um sítio. Quando me perguntou o que achava de Marrocos e eu disse que curtia, ele disse que era altamente. Ora se em Portugal não se pode tocar nas mamas de uma stripper, duvido que em Marrocos se possa. Engraçado como as nossas opiniões e perspectivas mudam.
               
O Joel deve ter feito um pacto com o diabo nesse dia, pois apesar de ainda estar de diarreira, sentia-se lindamente, e pedalámos todo o dia, com um Vento de cauda brutal até que, 136 quilómetros depois, chegávamos a Essaouira. Fomos a um café ver se tínhamos resposta do couchsurfing, mas nada. Deixei o canadiano no café e fui a um campismo ali perto, onde conheci o primeiro marroquino verdadeiramente arrogante, e percebi que era caro demais para nós. Pegámos nas biclas e fomos dar uma volta à procura de um hostel ou algo parecido que fosse fixe. Tínhamos encontrado um hotel bacano onde o dono tinha baixado de quinze para dez euros cada um quando avistei a estação de autocarros. Tinha lido algures que à saída da mesma várias senhoras se aglomeravam e abordavam turistas a oferecer quartos. Aproximei-me e levantaram-se duas num ápice, uma delas meio segundo mais cedo que a modos que disse à outra para axantrar. Iá, ela axantrou mas veio connosco na mesma, e mais logo, quando já estávamos instalados, veio pedir a comissão. Fónix, comissão é quando se presta um serviço! Ah, sinto-me dividido e controverso em relação a estas cenas. Dei-lhe dez dirhams, e a minha ideia era serem pelos dois, mas o Joel deu mais dez, e não me apetecia debater muito sobre a cena. A verdade é que, contrariamente às minhas expectativas, encontrámos um sítio onde pagámos, para os dois e duas noites, quinze euros. Nada mau. Claro que o quarto não era exactamente o Hilton. Era um quarto com duas camas individuais com um cobertor enorme de cem quilos em cada uma e uma mesinha de cabeceira no meio. Podíamos ter escolhido outro por vinte euros para as duas noites, mas não era necessário.

Tentei tomar banho mas a água quente desapareceu num ápice. Continuei de água fria mas o gel de banho que tinha trazido de Espanha não tinha espuma nenhuma e acabou por ser uma cena um bocado inglória. E iá, depois calçar meias usadas, que maravilha!

Fomos comer qualquer cena na rua ao lado da estação de autocarros e voltámos para o quarto.

No dia seguinte ia conhecer Essaouira! Mas antes ainda ia lavar a minha roupa. Munido do sabão do Joel perguntei à senhora onde era o tanque. Ela mandou-me para o terraço mas, quando lá cheguei, não tinha lá nada. “Ela deve pensar que eu perguntei onde é que posso pôr a roupa a secar”, pensei, meio confuso, pois no dia anterior quando perguntara se podia lavar a roupa ela tinha apontado para “o lado de lá”, que não existia. Quando lhe fui perguntar outra vez ela fez cara de quem percebeu e foi buscar-me uma bacia. Okay, era aquilo o tanque. Fui para o quarto-de-banho do último andar, enchi a bacia de água, estendi as peças de roupa e comecei a dar-lhe com o sabão. Que suplício! Parecia-me que aquilo não era o método mais eficaz, mas lá ia dando o meu melhor. Até que a água acabou, e fiquei com metade da roupa por “lavar”.

Estava a estender as cenas no terraço quando a senhora apareceu para ir buscar uns cobertores. Disse que só havia água mais logo e eu acho que lhe mandei um olhar mais foleiro do que hoje desejaria. Um olhar tipo encolhe-ombros de quem diz “Pois... isto é assim...”. Quando no fundo a senhora não nos tinha exactamente prometido água corrente, e não nos estava a cobrar nenhuma fortuna. Apesar de não ter sido nada de mais, foi um olhar que acho que não costuma vir de mim, e senti-me, mais tarde, meio culpado por isso.

Fui ver a cidade e estava um bocado confuso. Onde andava a Essaouira de que me tinham falado? Dei uma volta, caminhei sempre em frente, passei no super-mercado para um sumo de manga, continuei a caminhar. Iá, tinha alguns aspectos interessantes, mas nada que qualquer outra cidade marroquina não tivesse. Perguntei a uns ménes pela Medina, e lá me encaminharam. Fui andando, parei para uma sopa, depois para um café e um par de horas na internet, e segui. Avistei ao fundo uma espécie de castelo. “Deve ser aquilo a Medina”, pensei. Cá fora tirei uma fotografia e comprei um pacote de pipocas e entrei. E de repente estava na Essaouira de que me tinham falado! De repente tudo à minha volta era de outro mundo. Como em muitas outras Medinas, aquilo estava pejado de lojas, grande parte delas com as suas vistas apontadas aos turistas que por lá deambulavam. Ainda assim era impossível não curtir bués aquilo! As ruas estreitas, os cafezitos janotas, as mini-pastelarias, as esculturas de madeira cá fora, as pessoas sempre de um lado para o outro, as lojas de azeitonas, e a música ocasional. Deixei-me perder completamente, indo por vezes parar a sítios todos rebentados com pequenos túneis e malta com ar meio suspeito, e curti bués aquelas horas em que por lá andei. Eventualmente fui dar à fortaleza, com uma pequena torre e vários canhões. À saída tropecei na única loja de álcool desde há algum tempo. Não comprei nada.

Estacionei num café e o Joel apareceu por acaso. Ficámos lá um pedaço e fomos para o “hotel”. Tínhamos pensado em ir ver o que se passava em termos de cortiré, mas aquela terra não era conhecida por isso, e estávamos na época baixa. Aliás, na Medina, nessa tarde, foi a primeira vez em Marrocos em que vi uma concentração de estrangeiros. Claro está que não fui a Marraquexe.

               

1 comentário:

  1. Já tomaste banho? ;) :)))))
    Se estivesses por cá aproveitavas a chuva ;)

    Grande abraço.

    Tudo de bom.

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