terça-feira, 11 de março de 2014

Sevilha, Arcos e Jemenas

Como a Graciete vinha de carro, e isso implicava várias esperas, ficou com a família Bergano, em Barrancos, a almoçar, e eu fiz-me ao caminho, já com a capinha de gel para o selim que o Luís, simpaticamente, me oferecera. Deixei Barrancos e Portugal pela última vez neste ano, passei Ensinasola, e tinha andado p’rai 20km quando o Kidus apareceu.

A minha ideia era ir até Santa Olalla, mas acabei por ficar em Cala. Mais uma vez tive de me meter serra adentro, o que não foi fácil mas, tendo chegado lá cima, foi uma corrida muito porreira durante uma hora ou duas. Curto quando vai subindo e descendo mas sem nenhuma destas ser muito acentuada. Uma cena que não curto e que experienciei durante uma boa meia hora foi, antes de chegar à serra, uma ventania tremenda, contra mim, que me fazia sentir completamente inútil no pedal, sendo que caminhando era quase tão rápido.

Tinha pedido à Graciete para ir à frente a ver se arranjava um sítio para ficarmos. A miúda tinha ido até Cala, tinha já escurecido, e pelos vistos não havia onde ficar. Tinha enviado mensagem e estava a ficar preocupada. Tanto que quando vejo o seu renault clio e me aproximo, vejo ali umas lágrimas a coroar aquela face da tristeza que ia aparecendo de mão dada com a constatação da minha partida. Custava-me vê-la assim, e sentia que estávamos a perder alguns dos bons momentos que podíamos ter nestes últimos dias quando havia aquela nuvem cinzenta a pairar.

- Vamos fazer um reset, Kidus? – pedia eu, na esperança de que ela se pudesse animar mais um bocado. Mas não é assim que as cenas funcionam, e talvez estivesse a ser um bocado insensível à frustração e tristeza de quem fica, vendo alguém com quem se quer estar metendo-se por outro continente adentro. A verdade é que nesses momentos sentia-me eu próprio um pouco frustrado por, mais uma vez, haver um clima pesado quando podia haver a alegria para que cada desses últimos segundo fossem algo para recordar com sorrisos.

- Sinto que estou chateada contigo! Não estou, mas sinto como se estivesse... – disse-me, mais tarde, no hotel onde ficámos. Estávamos sentados na cama a fazer qualquer coisa, depois de jantarmos. Eu percebia mais ou menos o que a Graciete queria dizer com aquilo. Sentia-se como se estivesse chateada comigo sem estar. Sem estar porque não lhe tinha feito nada de mal, mas estando porque me ia embora. Deixei cair os ombros um bocado e aí senti-me um bocado distante, a deslizar um bocado para aquele sítio onde eu próprio começaria a ficar chateado com estarmos outra vez naquilo. “Para méne”, pensei, “Não vás p’raí porque não tens direito a isso! Tens aqui a melhor miúda que existe no mundo todo e que gosta mais de ti do que alguém alguma vez vai gostar. E está triste”. E tentava dar um bocado a volta à situação e confortá-la. Sentia-me um pouco artificial ao fazê-lo, porque o meu instinto era outro, talvez, mas que interessa para onde o nosso instinto nos manda se a nossa razão se demonstra rainha em determinado momento?

Apesar de tudo, bebemos uns copos e comemos uma sanduíche e o panorama mudou. Foi como se, realmente, tivessemos feito um reset, pois voltámos àquela onda tão nossa e a luz voltou a habitar o Kidus.

- Olha, eu vou contigo até onde der! – disse a Graciete, com um sorriso, no dia seguinte. Tinha ficado para trás um pedaço e eu tinha seguido, e dizia-me isto na primeira vez que nos encontrámos depois de eu ter partido. Sorri abertamente com a possibilidade de ainda não termos de nos despedir, e fui assim a voar até Sevilha, numa etapa quase sempre plana, que me permitiu chegar à minha cidade preferida espanhola bem cedo. Tinha perguntado ao Ivo, que lá tinha vivido, se sabia de alguém que me pudesse albergar. Deu-me o contacto do Alfonso, com quem falei e que disse estar ocupado. Foi um mal entendido qualquer, pois afinal podia albergar-me e fá-lo-ia nas duas noites seguintes. Mas nessa noite fui para um hostel.

Tomei banho e fui jantar com a Graciete. Efectivamente, nessa noite, já a sentia diferente. Como se nas últimas três ou quatro noites tivesse sofrido o adeus e agora estivesse disposta a sentir mais o estar do que o não-estar. Nem tem a ver com tristeza, exactamente, porque isso há sempre. É mais o tipo de tristeza e como esta se manifesta. Há tipos de tristeza, ou outros sentimentos em geral, que tornam a pessoa que a sente numa pessoa um bocadinho diferente. Ou, bem, completamente diferente. Mas há também a tristeza, ou outros sentimentos em geral, que por maior que seja a onda com que venham, deixam a pessoa que os sente intacta em termos de identidade, parece-me. E nessa última noite sentia a Graciete como inteiramente ela de uma forma que não tinha sentido algumas vezes nos dias anteriores.
                 
Comemos umas tapas e bebi duas cervejas numa espalanada e fomos para o parque subterrâneo, onde estava o carro da miúda e onde nos despedimos. Saindo, voltei à ponte, que atravessei lentamente meio deslocado de mim mesmo. Sentia-me triste, melancólico, egoísta, orgulhoso da pessoa que tinha como minha parte maior. Dei umas voltas pelo rio, comi uma sanduíche, fui até ao hostel, sem saber bem que fazer.
                 
Liguei o computador e vi uma mensagem do Alfonso, a dizer que ia haver em encontro de cerveja e tapas. Bota. Fui ter ao bar onde era suposto aparecerem às onze horas, mas estava fechada. “Nada feito”, pensei. Contudo, à medida que ia descendo essa rua, vi um grupo onde alguém falava inglês e lembrei-me de perguntar se eram do couchsurfing. Eram. Lá fiquei com a malta um pedaço, até que bazaram quase todos e fiquei só eu e o Said, um cipriota que estava um mês e meio em Sevilha em investigação. Fomos beber mais uns finos, o Said bazou, e eu fui perguntar a um grupo se me podia jantar a eles. Era o grupo do João, um português com quem tinha trocado duas palavras anteriormente, de muito boa onda e cem por cento lisboeta, desta feita no melhor dos sentidos. Foi uma noite porreira, mas às quatro estava no hostel.
                 
Fiquei mais duas noites nesta cidade, em casa do Alfonso e da Ana, sua mulher, e do Alfonso e da Ana, seus filhos de oito e dez anos de uma ternura simpática. Aproveitei para escrever um bocado, relaxar, e comprar algumas cenas, como câmaras de ar e um pneu suplente.
                 
Daí parti para Arcos de la Frontera, onde tinha uma anfitriã. A viagem foi fácil e bati nesse dia o meu recorde de quilómetros, tendo feito 118. Tive a melhor visão da viagem até agora. Se bem que estou em Marrocos, e já vi coisas mais fixes, mas mais fixes por estar em Marrocos. Se retirarmos os elementos psicológicos, ter visto aquele monte em Arcos, com duas igrejas no meio e casas brancas a toda a volta e um grande arco-íris a circundar tudo foi demais.
                 
Fiquei com a Silvia, uma espanhola de Granada que era educadora de infância em Arcos, e que vivia numa casa no meio de lado nenhum. Passámos um serão descontraído, comendo algumas sanduíches e no paleio.
                 
De Arcos bazei para San Martin de Tesorillo. Pelo menos era essa a minha ideia. A cena é que havia a hipótese de San Martin de Tesorillo, a 85km daí segundo o google, ou Jemenas de la Frontera, a quarenta e tal. Pelo sim pelo não arranjei estadia em cada um dos sítios. Quando dei por mim a atravessar mais uma serra, ao quilómetro trinta pensei “Bem, mais dez ou quinze quilómetros e fico em Jemenas, porque já estou todo partido!”. E estava todo rebentado. Caminhei que nem um ateu por lá cima, porque aquilo eram seis à hora na bicicleta ou quatro a caminhar, mais valia caminhar!
                
Eis que finalmente cheguei ao Porto de Galiz, parei para tomar café e percebi que ainda faltavam mais de trinta quilómetros para Jemenas! Felizmente, a partir daí foi muito fixe. Subia um pouquito, descia um pouquito, passava por rios, vales, uma viagem que nos deixa a sentir bem. Cheguei a Jemenas, encontrei net num café para contactar a Geraldine, e passado uma hora estava em sua casa, já de banho tomado, a beber uma cerveja enquanto a minha anfitriã francesa cozinhava. Jemenas era uma vila muito pequena, bastante acidentada e plena em casinhas brancas que davam um ar pitoresco e singelo ao local. E a minha anfitriã, que já correra o sudeste asiático, estava por lá a trabalhar num hotel, vivendo numa casa toda janota de dois quartos e um terraço onde só pagava 250 euros por mês!
                 
Jantámos e ficámos no paleio um pedaço, até que a miúda quis ir dormir. Eu já estava um bocadito lançado e fui beber um fino ao Marylin, o bar dos simpáticos bêbedos lá da zona.
                 
O dia seguinte seria o último no Velho Continente.

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