domingo, 16 de março de 2014

Problemas Com a Bicicleta e a Hospitalidade Marroquina



Bazei de Tanger com o Joel em direcção a qualquer lado. Ia acampar pela primeira vez nesta viagem, e guardava algum entusiasmo por isso, sendo que tenho em mente fazê-lo umas cem vezes. O continente africano não é exactamente como o asiático no que toca a preços, pelo que acampar se torna uma opção bastante porreira. Além disso, quero que esta viagem seja esta viagem. Quero que seja diferente, e quero entregar-me ainda mais aos sítios. Dormir cá fora parece-me uma boa maneira de o fazer.

Como a nossa viagem do dia anterior tinha sido um pouco custosa para mim, estava com receio que fosse atrasar o Joel. Mas, na verdade, seguimos tranquilamente, e andando em plano até curto ir um bocado mais rápido do que o meu amigo.
                
Mal saímos da grande área de Tanger, Marrocos começou a dar uns ares diferentes da sua graça. Chegámos à praia rapidamente, e com uma suavidade incrível pedalámos sempre. O sol na mente e a bicicleta no futuro. Parávamos de vez em quando para tirar fotografias ou comprar algumas cenas para comer. Como em Assilah, onde comprámos uns vegetais e uns biscoitos perto de um castelo português.
                 

Tínhamos feito 68 quilómetros quando o Joel abrandou e sugeriu entrarmos mato adentro por ali. Caminhámos com as bicicletas ao lado p’rai vinte minutos e lá assentámos arraiais. Posto isto cozinhámos. Ora uma grande cena que me faltava era um fogão. Queria comprar um de vários tipos de combustível, porque para cenas tipo camping gás não é muito fácil arranjar recarga por África. E como tinha de ser todo estriquinaine, acabei por não trazer nada. Ainda tentei em Espanha, mas nada. Pois o Joel também não! O que ele tem é uma lata de cerveja! P’rai dois centímetros do fundo de uma lata de cerveja, e mais o topo da mesma. No topo faz uns vértices para dentro. Põe em cima do fundo, mete álcool etílico e temos um fogão! Adorei aquilo! Se conseguir arranjar garrafas de álcool (nem que tenha de comprar sete de cada vez) África fora esta é a melhor cena de sempre!
                 
O Joel cozinhou a massa enquanto eu cortava uns tomates e um abacate. Comemos bués e estava fixe. Antes disto ainda tínhamos tentado fazer uma fogueira, mas hora e meia depois o fogo ainda não queria nada connosco, pelo que desistimos. Estava a gostar do Joel. Tínhamo-nos conhecido às três pancadas e, se por um lado não andávamos já aos abraços como quando recém-amigos apanham a primeira bebedeira juntos, por outro ‘tava-se bem, não havia grandes cenas. Éramos educados um com o outro, mas genuinamente. “Por mim posso ir p’ráli ou p’ráli, que achas?”, perguntava um. “P’ráli”, respondia outro. E lá íamos.

Metemo-nos a caminho no dia seguinte, e fomos desaparecendo da costa. Na verdade, correcta ou erradamente, tinha a nítida sensação de que já tínhamos subido bastante, pela geografia dos locais, mas não o estava a sentir. Andávamos bem, ao nosso ritmo, e parámos ainda faltava uma hora e tal para o sol se pôr. O Joel curte (ou curtia, sendo que esta noite, por exemplo, estamos bastante à vista) acampar em sítios onde ninguém veja. A mim não me faz diferença. Pensando que o meu amigo o preferia por uma questão de segurança, lembrei-me de sugerir simplesmente pedirmos a alguém para acamparmos no campo deles. Depois de termos jogado uma futebolada de dez minutos com uns putos, andámos uns quilómetros, e parámos na primeira casa com alguém cá fora. Tentei começar em francês com aquele homem p’rai de trinta e tal anos e os dois adolescentes, mas vi logo que não ia dar, pelo que, ao que me parecia bastante bem executado, expliquei que queríamos dormir com a nossa tenda ali, no campo deles. Os gajos eram só sorrisos e ‘tá-se bem, pelo que lá nos afastámos, quando começava a ficar desconfortável estar ali em silêncio a sorrir e olhar uns para os outros, e comecei a tirar as cenas. Eis que aparece uma senhora de bandolete e pijama cor-de-rosa e vem dizer que não tinham quartos. Iá, foi o que os outros ménes tinham percebido – que estávamos à procura de um quarto! Expliquei a nossa cena, e a mulher pede-nos a identidade. Pediu desculpa, que há pessoas de bem e de mal e não sei quê, eu disse-lhe para não se preocupar, enquanto lhe estendia o meu cartão do cidadão. Ora como a senhora não tinha ali nenhum scanner para ver em quantos países éramos procurados, não percebi muito bem a necessidade daquilo. Talvez ela quisesse estudar a nossa reacção quando nos pedisse a identificação – se hesitássemos, era porque éramos procurados por termos queimado doze igrejas em Bratislava! No final de tudo apercebi-me de que tinha tido uma conversa em francês sem problema nenhum. Ter jeito para línguas é demais!
                 
Talvez estivéssemos à espera que nos viessem oferecer um chá ou algo assim, mas nada feito. Na verdade, e apesar de já ter estado em Marrocos, estava a curtir este povo. Guardo simpatia pelos povos muçulmanos. Como já viajei um bocado, sinto-me no direito de tirar ilações das minhas experiências, e a verdade é que sinto o povo muçulmano mais simpático e hospitaleiro do que os restantes. Mas pode ser que isto advenha de, também na generalidade, serem países menos desenvolvidos. E posso estar então a confundir conceitos, numa falácia de lógica. A simpatia a ser uma característica comum aos países menos desenvolvidos também é algo que faria sentido. Porque no Ocidente nós cultivamos o individualismo de uma maneira desenfreada. Regamos todos os dias a planta do nosso ego, e acabamos por achar que somos especiais, incríveis, intocáveis. Achamo-nos tão importantes que acabamos por achar que, por isso mesmo, há muita gente dedicada a nos lixar a VIDA. Somos tão importantes que acabamos por nos proteger de uma maneira que prejudica quem precisa de ajuda. Como quando ando à boleia. O pessoal quer proteger-se tanto da minúscula possibilidade de eu lhe fazer mal, que acabam por não me ajudar. Apenas um pequeno exemplo que, infelizmente, creio ilustrar, de certa forma, o comportamento geral.
               
Na noite anterior, a primeira de campismo, tinha rapado um frio tremendo. Nessa noite, a da senhora da interpol, apesar de não ter tido tanto frio, acordei ao som da chuva. Que lindo! Nada disso! Ainda por cima tinha deixado as minhas botas lá fora! Isto porque o cheiro a rosas que emanava era demasiado intenso.
                 
Saí, cumprimentei o céu chuvoso e as gotas na cara, olhei para o lado e reparei que se metesse um peixe nas minhas botas o gajo conseguia viver, bastava inclinar-se um bocadito. Lá desmontei a tenda, toda molhada, calcei as botas, a fazer chéque chéque, e arrancámos, debaixo de chuva. Estávamos p’rai a cem quilómetros de Rabat, a capital, e na noite anterior tinha enviado mensagem ao Vangelis a pedir-lhe para enviar uns pedidos de sofá em meu nome para esta cidade. Se tivéssemos sofá, ia até Rabat custasse o que custasse. Estava encharcado, queria tomar banho e relaxar um bocado. Se não tivéssemos sofá, íamos até onde desse. Além destas desvantagens, o Vento também não estava a ajudar, e por tudo isto eu estava em modo-missão. Não estava a curtir, queria era chegar ao destino.
                 
Até que o dia fio passando, e a paisagem foi mudando. Chegámos a Kenitra, comemos qualquer coisa e desapareceram duas horas. Foi incrível. Chegámos às duas e pico, comemos, andámos um pedaço e de repente eram quatro e tal. Saímos de Kenitra e o céu começou a abrir. Fomos seguindo sempre e vimos uma estrada que dava para a direita e talvez para... sim, a praia! Já tinha saudade. Afinal de contas tinham passado quase dois dias...
                 
Pedalámos, tentámos meter-nos mato adentro mas não dava. Continuámos e chegámos à vila. Era uma vila constituída por alguns quarteirões e uma marginal com alguns restaurantes e tascozitos onde o pessoal se encontrava e fumava uns valentes canhões. Aliás, este é um factor marroquino. Apesar de já ter noção que era assim, não estava à espera que fosse tanto assim. Aqui fuma-se ganza como quem bebe um fino em Portugal. Um fino talvez não. Fuma-se ganza como quem bebe uma bebida branca em Portugal, em termos de prevalência.
                
Acampámos numa duna. O mar estava ali, a dançar sozinho, e nós a curtir os segundos que passavam da existência de quem está em Marrocos e tem toda uma VIDA para curtir. Fomos dar uma volta pela vila, comendo uma cena aqui, uma cena ali, e regressámos à base passado hora e tal. Descontraímos, comemos uma sanduíche, e depois sentámo-nos cá fora à volta do fogão e debaixo das estrelas a conversar, cozinhar, e eventualmente comer. Na noite anterior tínhamos ficado na minha tenda umas duas horas no paleio. Nesta noite foi a vez da tenda do Joel.

Hoje acordámos às nove e tal. Como ontem, ao chegar, me apercebi que tinha partido um raio, virei a bicicleta ao contrário e comecei a empreitada de o arranjar. A primeira meleita da Bicicleta, que já fez p’rai 1500 quilómetros e ainda não teve um pneu furado! A cena é que carrego todo o meu peso nos alforges traseiros, e isso acaba por ser excessivo. Tenho de arranjar uns alforges para a frente.
                 
Com a bicicleta virada do avesso, apercebi-me que afinal tinha partido dois raios. Tirei a roda, e como estava a sentir-me um bocado Tóino pedi ajuda ao Joel. O rapaz também não sabia o que fazer. Parecia ser preciso retirar o carreto, e isso só numa oficina. Pensámos em ir até Rabat e arranjá-la lá, mas vendo o mapa parecíamos estar mesmo ao lado de Kenitra, novamente, pois para ir para a praia tínhamos andado um bocado para trás. Seguimos pelo mar e fomos dar aos subúrbios desta cidade. Perguntámos ao pessoal e lá fomos ter à loja. O Joel foi procurar comida e internet para enviar uns pedidos de sofá para Casablanca e eu fiquei lá à espera. Quando acabaram de arranjar uma das várias motorizadas que iam aparecendo com problemazitos, os rapazes cheios de óleo na cara dedicaram-se à minha roda. Ia aparecendo malta. Uns que falavam comigo em francês, outro que falava inglês, e um senhor mais velho com cara de simpático que falava comigo em italiano.
                
Tinha aceitado o preço de dois euros pelo reparo. Não sei se foi esticado por não ser de cá. E como não sei, prefiro achar que foi justo. Entretanto o Joel apareceu com comida, e quando me sentei lá no chão encostado à parede a comer apressaram-se a trazer-me um disco de esponja para me sentar e um jarro com água. E não ia ficar por aqui. Quando a bicicleta estava pronta, estendi-lhe cem dirham e o rapaz fez um gesto tipo “daqui a um bocado”. Na verdade, tinham-me perguntado se eu queria chá. E claro, tinha dito que sim. Pois na próxima meia hora o homem dedicou-se ao chá. Desde ir buscar mesa e cadeiras à loja do lado, a fazê-lo e esperar que maturasse. Se por um lado queria fazer-me à estrada, porque já tínhamos perdido algum tempo, por outro ‘tava-se bem ali, e não tínhamos perdido tempo nenhum porque estávamos a viver Marrocos.
                 
Nesse dia quase atropelei uma senhora. Ia atravessar a estrada, tinha olhado para os dois lados mas, por alguma razão, não me viu. A razante foi tão forte que lhe bati nos garrafões que trazia vazios. Tento tirar lições destas cenas. Tipo quando um homem abriu a porta do camião e eu quase levei com ela – agora tento inclinar-me sempre para o outro lado. No caso da mulher, agora uso sempre a minha campaínha.
               
Passámos Rabat, que pareceu ser porreiro, e seguimos sempre pela costa com tranquilidade. Quando o sol amaeaçava pôr-se virámos à direita para um campo antes da praia e pensámos em acampar lá. Perguntei a um senhor, em francês, se dava, mas ele disse que não. Vim a perceber que não me tinha compreendido. Ele tinha apontado “p’ráli”, e para lá fomos. Montei a tenda com alguma dificuldade. Isto porque ainda não a enrolo com perfeição, e no final não há espaço para as varetas. Pelo que tive de as levar em separado. E claro, a meio do caminho só as ouvi a cair no chão. Um rapaz apressou-se a juntá-las, e foi com algum desagrado que percebi que a uma das duas tinha-se partido o elástico, e as peças estavam todas soltas. Pois quando estava a montar a tenda, meti as varetas todas umas nas outras e estava a fazer aquele semi-círculo normal, quando uma ponta deslizou, e isso fez com que elas disparassem em todas as direcções. Perdi assim um e fiquei com a tenda toda torta.

Tínhamos já montado a tenda quando vemos um par de focos a aproximar-se. Um deles era o senhor que nos tinha dito que não podíamos lá acampar, o outro era, o que me pareceu, o seu patrão. Todo simpático começou logo por dizer para irmos acampar para a frente de casa dele. Dissemos que não era necessário, sendo que já tínhamos montado as tendas e o homem logo “sem problema, sem problema!”. Perguntou se tínhamos fome e dissemos que íamos cozinhar daí a pouco. Disse que jantava connosco, que éramos bem-vindos, e quando se foi embora ficámos sem perceber bem se nos oferecia o jantar ou se vinha jantar connosco o nosso jantar. O que era na boa, claro. Não passou mais de meia hora até aparecer o seu empregado/pastor e um puto com um tabuleiro com aquele chá marroquino maravilhoso e duas malgas com umas papas altamente! Faltava um toque destes à hospitalidade marroquina.

Ainda pedalei até a um café, de onde escrevi a primeira parte deste texto, e de onde procurei um sofá para o dia seguinte em Casablanca. Ao pedalar para esse café, sem alforges, apercebi-me que acho que vou continuar a pedalar quando voltar a Portugal. Sem alforges a bicicleta voava!

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