Bazei
de Tanger com o Joel em direcção a qualquer lado. Ia acampar pela primeira vez
nesta viagem, e guardava algum entusiasmo por isso, sendo que tenho em mente
fazê-lo umas cem vezes. O continente africano não é exactamente como o asiático
no que toca a preços, pelo que acampar se torna uma opção bastante porreira.
Além disso, quero que esta viagem seja esta viagem. Quero que seja diferente, e
quero entregar-me ainda mais aos sítios. Dormir cá fora parece-me uma boa
maneira de o fazer.
Como
a nossa viagem do dia anterior tinha sido um pouco custosa para mim, estava com
receio que fosse atrasar o Joel. Mas, na verdade, seguimos tranquilamente, e
andando em plano até curto ir um bocado mais rápido do que o meu amigo.
Mal
saímos da grande área de Tanger, Marrocos começou a dar uns ares diferentes da
sua graça. Chegámos à praia rapidamente, e com uma suavidade incrível pedalámos
sempre. O sol na mente e a bicicleta no futuro. Parávamos de vez em quando para
tirar fotografias ou comprar algumas cenas para comer. Como em Assilah, onde
comprámos uns vegetais e uns biscoitos perto de um castelo português.
Tínhamos
feito 68 quilómetros quando o Joel abrandou e sugeriu entrarmos mato adentro
por ali. Caminhámos com as bicicletas ao lado p’rai vinte minutos e lá assentámos
arraiais. Posto isto cozinhámos. Ora uma grande cena que me faltava era um
fogão. Queria comprar um de vários tipos de combustível, porque para cenas tipo
camping gás não é muito fácil arranjar recarga por África. E como tinha de ser
todo estriquinaine, acabei por não trazer nada. Ainda tentei em Espanha, mas
nada. Pois o Joel também não! O que ele tem é uma lata de cerveja! P’rai dois
centímetros do fundo de uma lata de cerveja, e mais o topo da mesma. No topo
faz uns vértices para dentro. Põe em cima do fundo, mete álcool etílico e temos
um fogão! Adorei aquilo! Se conseguir arranjar garrafas de álcool (nem que
tenha de comprar sete de cada vez) África fora esta é a melhor cena de sempre!
O
Joel cozinhou a massa enquanto eu cortava uns tomates e um abacate. Comemos
bués e estava fixe. Antes disto ainda tínhamos tentado fazer uma fogueira, mas
hora e meia depois o fogo ainda não queria nada connosco, pelo que desistimos.
Estava a gostar do Joel. Tínhamo-nos conhecido às três pancadas e, se por um
lado não andávamos já aos abraços como quando recém-amigos apanham a primeira
bebedeira juntos, por outro ‘tava-se bem, não havia grandes cenas. Éramos
educados um com o outro, mas genuinamente. “Por mim posso ir p’ráli ou p’ráli,
que achas?”, perguntava um. “P’ráli”, respondia outro. E lá íamos.
Metemo-nos
a caminho no dia seguinte, e fomos desaparecendo da costa. Na verdade, correcta
ou erradamente, tinha a nítida sensação de que já tínhamos subido bastante,
pela geografia dos locais, mas não o estava a sentir. Andávamos bem, ao nosso
ritmo, e parámos ainda faltava uma hora e tal para o sol se pôr. O Joel curte
(ou curtia, sendo que esta noite, por exemplo, estamos bastante à vista)
acampar em sítios onde ninguém veja. A mim não me faz diferença. Pensando que o
meu amigo o preferia por uma questão de segurança, lembrei-me de sugerir
simplesmente pedirmos a alguém para acamparmos no campo deles. Depois de termos
jogado uma futebolada de dez minutos com uns putos, andámos uns quilómetros, e
parámos na primeira casa com alguém cá fora. Tentei começar em francês com
aquele homem p’rai de trinta e tal anos e os dois adolescentes, mas vi logo que
não ia dar, pelo que, ao que me parecia bastante bem executado, expliquei que
queríamos dormir com a nossa tenda ali, no campo deles. Os gajos eram só
sorrisos e ‘tá-se bem, pelo que lá nos afastámos, quando começava a ficar
desconfortável estar ali em silêncio a sorrir e olhar uns para os outros, e
comecei a tirar as cenas. Eis que aparece uma senhora de bandolete e pijama
cor-de-rosa e vem dizer que não tinham quartos. Iá, foi o que os outros ménes
tinham percebido – que estávamos à procura de um quarto! Expliquei a nossa
cena, e a mulher pede-nos a identidade. Pediu desculpa, que há pessoas de bem e
de mal e não sei quê, eu disse-lhe para não se preocupar, enquanto lhe estendia
o meu cartão do cidadão. Ora como a senhora não tinha ali nenhum scanner para
ver em quantos países éramos procurados, não percebi muito bem a necessidade daquilo. Talvez ela quisesse estudar a nossa
reacção quando nos pedisse a identificação – se hesitássemos, era porque éramos
procurados por termos queimado doze igrejas em Bratislava! No final de tudo
apercebi-me de que tinha tido uma conversa em francês sem problema nenhum. Ter
jeito para línguas é demais!
Talvez
estivéssemos à espera que nos viessem oferecer um chá ou algo assim, mas nada
feito. Na verdade, e apesar de já ter estado em Marrocos, estava a curtir este
povo. Guardo simpatia pelos povos muçulmanos. Como já viajei um bocado, sinto-me
no direito de tirar ilações das minhas experiências, e a verdade é que sinto o
povo muçulmano mais simpático e hospitaleiro do que os restantes. Mas pode ser
que isto advenha de, também na generalidade, serem países menos desenvolvidos.
E posso estar então a confundir conceitos, numa falácia de lógica. A simpatia a
ser uma característica comum aos países menos desenvolvidos também é algo que
faria sentido. Porque no Ocidente nós cultivamos o individualismo de uma
maneira desenfreada. Regamos todos os dias a planta do nosso ego, e acabamos
por achar que somos especiais, incríveis, intocáveis. Achamo-nos tão
importantes que acabamos por achar que, por isso mesmo, há muita gente dedicada
a nos lixar a VIDA. Somos tão importantes que acabamos por nos proteger de uma
maneira que prejudica quem precisa de ajuda. Como quando ando à boleia. O
pessoal quer proteger-se tanto da minúscula possibilidade de eu lhe fazer mal,
que acabam por não me ajudar. Apenas um pequeno exemplo que, infelizmente,
creio ilustrar, de certa forma, o comportamento geral.
Na
noite anterior, a primeira de campismo, tinha rapado um frio tremendo. Nessa
noite, a da senhora da interpol, apesar de não ter tido tanto frio, acordei ao
som da chuva. Que lindo! Nada disso! Ainda por cima tinha deixado as minhas
botas lá fora! Isto porque o cheiro a rosas que emanava era demasiado intenso.
Saí,
cumprimentei o céu chuvoso e as gotas na cara, olhei para o lado e reparei que
se metesse um peixe nas minhas botas o gajo conseguia viver, bastava inclinar-se
um bocadito. Lá desmontei a tenda, toda molhada, calcei as botas, a fazer
chéque chéque, e arrancámos, debaixo de chuva. Estávamos p’rai a cem
quilómetros de Rabat, a capital, e na noite anterior tinha enviado mensagem ao
Vangelis a pedir-lhe para enviar uns pedidos de sofá em meu nome para esta
cidade. Se tivéssemos sofá, ia até Rabat custasse o que custasse. Estava
encharcado, queria tomar banho e relaxar um bocado. Se não tivéssemos sofá,
íamos até onde desse. Além destas desvantagens, o Vento também não estava a
ajudar, e por tudo isto eu estava em modo-missão. Não estava a curtir, queria
era chegar ao destino.
Até
que o dia fio passando, e a paisagem foi mudando. Chegámos a Kenitra, comemos
qualquer coisa e desapareceram duas horas. Foi incrível. Chegámos às duas e
pico, comemos, andámos um pedaço e de repente eram quatro e tal. Saímos de
Kenitra e o céu começou a abrir. Fomos seguindo sempre e vimos uma estrada que
dava para a direita e talvez para... sim, a praia! Já tinha saudade. Afinal de
contas tinham passado quase dois dias...
Pedalámos,
tentámos meter-nos mato adentro mas não dava. Continuámos e chegámos à vila.
Era uma vila constituída por alguns quarteirões e uma marginal com alguns
restaurantes e tascozitos onde o pessoal se encontrava e fumava uns valentes
canhões. Aliás, este é um factor marroquino. Apesar de já ter noção que era
assim, não estava à espera que fosse tanto assim. Aqui fuma-se ganza como quem
bebe um fino em Portugal. Um fino talvez não. Fuma-se ganza como quem bebe uma
bebida branca em Portugal, em termos de prevalência.
Acampámos
numa duna. O mar estava ali, a dançar sozinho, e nós a curtir os segundos que
passavam da existência de quem está em Marrocos e tem toda uma VIDA para
curtir. Fomos dar uma volta pela vila, comendo uma cena aqui, uma cena ali, e
regressámos à base passado hora e tal. Descontraímos, comemos uma sanduíche, e
depois sentámo-nos cá fora à volta do fogão e debaixo das estrelas a conversar,
cozinhar, e eventualmente comer. Na noite anterior tínhamos ficado na minha
tenda umas duas horas no paleio. Nesta noite foi a vez da tenda do Joel.
Hoje
acordámos às nove e tal. Como ontem, ao chegar, me apercebi que tinha partido
um raio, virei a bicicleta ao contrário e comecei a empreitada de o arranjar. A
primeira meleita da Bicicleta, que já fez p’rai 1500 quilómetros e ainda não
teve um pneu furado! A cena é que carrego todo o meu peso nos alforges
traseiros, e isso acaba por ser excessivo. Tenho de arranjar uns alforges para
a frente.
Com
a bicicleta virada do avesso, apercebi-me que afinal tinha partido dois raios.
Tirei a roda, e como estava a sentir-me um bocado Tóino pedi ajuda ao Joel. O
rapaz também não sabia o que fazer. Parecia ser preciso retirar o carreto, e
isso só numa oficina. Pensámos em ir até Rabat e arranjá-la lá, mas vendo o
mapa parecíamos estar mesmo ao lado de Kenitra, novamente, pois para ir para a
praia tínhamos andado um bocado para trás. Seguimos pelo mar e fomos dar aos
subúrbios desta cidade. Perguntámos ao pessoal e lá fomos ter à loja. O Joel
foi procurar comida e internet para enviar uns pedidos de sofá para Casablanca e
eu fiquei lá à espera. Quando acabaram de arranjar uma das várias motorizadas
que iam aparecendo com problemazitos, os rapazes cheios de óleo na cara dedicaram-se
à minha roda. Ia aparecendo malta. Uns que falavam comigo em francês, outro que
falava inglês, e um senhor mais velho com cara de simpático que falava comigo
em italiano.
Tinha
aceitado o preço de dois euros pelo reparo. Não sei se foi esticado por não ser
de cá. E como não sei, prefiro achar que foi justo. Entretanto o Joel apareceu
com comida, e quando me sentei lá no chão encostado à parede a comer
apressaram-se a trazer-me um disco de esponja para me sentar e um jarro com
água. E não ia ficar por aqui. Quando a bicicleta estava pronta, estendi-lhe
cem dirham e o rapaz fez um gesto tipo “daqui a um bocado”. Na verdade,
tinham-me perguntado se eu queria chá. E claro, tinha dito que sim. Pois na
próxima meia hora o homem dedicou-se ao chá. Desde ir buscar mesa e cadeiras à
loja do lado, a fazê-lo e esperar que maturasse. Se por um lado queria fazer-me
à estrada, porque já tínhamos perdido algum tempo, por outro ‘tava-se bem ali,
e não tínhamos perdido tempo nenhum porque estávamos a viver Marrocos.
Nesse
dia quase atropelei uma senhora. Ia atravessar a estrada, tinha olhado para os
dois lados mas, por alguma razão, não me viu. A razante foi tão forte que lhe
bati nos garrafões que trazia vazios. Tento tirar lições destas cenas. Tipo
quando um homem abriu a porta do camião e eu quase levei com ela – agora tento
inclinar-me sempre para o outro lado. No caso da mulher, agora uso sempre a
minha campaínha.
Passámos
Rabat, que pareceu ser porreiro, e seguimos sempre pela costa com
tranquilidade. Quando o sol amaeaçava pôr-se virámos à direita para um campo
antes da praia e pensámos em acampar lá. Perguntei a um senhor, em francês, se
dava, mas ele disse que não. Vim a perceber que não me tinha compreendido. Ele
tinha apontado “p’ráli”, e para lá fomos. Montei a tenda com alguma
dificuldade. Isto porque ainda não a enrolo com perfeição, e no final não há
espaço para as varetas. Pelo que tive de as levar em separado. E claro, a meio
do caminho só as ouvi a cair no chão. Um rapaz apressou-se a juntá-las, e foi com
algum desagrado que percebi que a uma das duas tinha-se partido o elástico, e
as peças estavam todas soltas. Pois quando estava a montar a tenda, meti as
varetas todas umas nas outras e estava a fazer aquele semi-círculo normal,
quando uma ponta deslizou, e isso fez com que elas disparassem em todas as
direcções. Perdi assim um e fiquei com a tenda toda torta.
Tínhamos
já montado a tenda quando vemos um par de focos a aproximar-se. Um deles era o
senhor que nos tinha dito que não podíamos lá acampar, o outro era, o que me
pareceu, o seu patrão. Todo simpático começou logo por dizer para irmos acampar
para a frente de casa dele. Dissemos que não era necessário, sendo que já
tínhamos montado as tendas e o homem logo “sem problema, sem problema!”.
Perguntou se tínhamos fome e dissemos que íamos cozinhar daí a pouco. Disse que
jantava connosco, que éramos bem-vindos, e quando se foi embora ficámos sem
perceber bem se nos oferecia o jantar ou se vinha jantar connosco o nosso
jantar. O que era na boa, claro. Não passou mais de meia hora até aparecer o
seu empregado/pastor e um puto com um tabuleiro com aquele chá marroquino
maravilhoso e duas malgas com umas papas altamente! Faltava um toque destes à
hospitalidade marroquina.
Ainda
pedalei até a um café, de onde escrevi a primeira parte deste texto, e de onde
procurei um sofá para o dia seguinte em Casablanca. Ao pedalar para esse café,
sem alforges, apercebi-me que acho que vou continuar a pedalar quando voltar a
Portugal. Sem alforges a bicicleta voava!
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