sábado, 22 de março de 2014

até Casablanca



Por vezes, ser eu, é uma maldição. Sempre fui um bocado cabeça no ar, nunca sei onde ponho nada. Mas nesta viagem está a ser a loucura. Já deixei a mochila para trás duas ou três vezes, outras tantas em que me lembrei mesmo no último minuto. A mochila que tem o passaporte, iá... Já perdi que tempos à procura dos meus elásticos em Coimbra, já perdi os meus calções de banho e as minhas luvas para pedalar.

E na Quinta, dia vinte e seis, não sabia dos meus raios. Tinha ido dar uma vista de olhos à roda da bicicleta, e descoberto que mais um raio, o terceiro, tinha rebentado! Tinha trazido dez de Espanha, tinha rebentado três e perdido outro. Bem, naquele momento tinha perdido todos. Lá desfiz a tenda e encontrei os coitados debaixo da mesma. Com algum custo substituí o raio, mas tinha de fazer algo. Arranjei um saco de plástico e uns elásticos e improvisei um alforge à frente com algumas cenas mais pesadas. Não voltei a ter raios partidos! Boa, Pedro! Ainda assim preciso de uns alforges em condições para a frente... mas uma coisa de cada vez.

Nesse dia a nossa ideia era ir até Casablanca. Tínhamos enviado alguns pedidos através do couchsurfing e até então, nada. Apetecia-me uma cama. Estou a habituar-me cada vez mais a isto de estar sempre fora, que no fundo é o que significa acampar, mas é fixe ter uma cama e um duche. O que mais me custa é não me sentir muito limpo. Ter de usar a mesma roupa quatro ou cinco dias seguidos é algo a que se custa habituar. Curtia arranjar uns calções de banho daqueles tipo boxers para poder lavar na boa, vestir e siga!

Agora escrevo de Safi, e depois de amanhã devo chegar a Essaouira, onde vou descansar uns dias. Tal como já comecei a fazer com as fotografias e a escrita, conto aí arranjar um sistema que me permita andar mais limpo. Um deles passa por pedir a alguém para me escrever num papel, em Árabe algo como “Sou de Portugal e estou numa viagem de bicicleta até à África do Sul. Por um preço justo agradecia se me pudesse lavar a roupa e pô-la a secar, e venho cá buscá-la amanhã.” Acho que era fixe. Aliás, pensei em vários cartões a dizer também “Posso acampar no seu terreno? Deixarei tudo limpo, não tem nada com que se preocupar” ou “Pode dar-me um preço justo e fazer negócio, ou dar-me um preço para turistas e não fazer negócio nenhum”.

É fixe ter começado em Marrocos porque isto é África para principiantes, e dá para um gajo se ir habituando às cenas. Aliás, Marrocos é super, super tranquilo! Estou muito impressionado com este país. Tão perto aí da Lusitânia e tão diferente! Quase todas as pessoas, em quase qualquer país, têm, a tendência a ser mais simpáticas para estrangeiros. Mas aqui é uma loucura. Toda a gente sempre a dizer “bem-vindos”, apesar de estar longe de qualquer aeroporto e já termos andado quase setecentos quilómetros para Sul. Aliás, no início eu levantava o braço e dizia sempre olá aos milhares de pessoas que o fazem à medida que vamos passando. Depois passou para um aceno e agora limito-me a simpaticamente sorrir e levantar a cabeça. Marrocos é também daqueles sítios onde, se perguntamos as direcções a alguém e essa pessoa não sabe, aparece sempre alguém que quer ajudar. Às vezes é demasiado, porque às vezes um gajo não precisa de ajuda nenhuma e acabamos por perder tempo, mas ‘tá-se bem.

Quanto ao trafego, o meu irmão, que vem a Casablanca com frequência, tinha-me advertido, dizendo que conduziam como malucos por estes lados. Pois, tirando alguns autocarros a ultrapassar como se fossem carros, acho o trânsito aqui super tranquilo. Seja no campo ou nas cidades, em que por vezes temos uma rotunda com bastantes carros e não se ouve uma única buzina ou um único protesto. Marrocos é tão tranquilo, tão África para principantes, que me está a preparar mal, talvez. Ainda há pouco fui ao super-mercado em Safi e tinha que me concentrar para deixar as minhas cenas debaixo de olho. Isto é, não sentia o instinto de olhar pelas minhas cenas, tinha de decidir conscientemente fazê-lo. A única cena em que os Marroquinos falham, por vezes, é nos preços que nos dão, parece-me.

Mas iá, mais uma vez desconfirmo as ideias que o pessoal tem. Se o tinha reparado noutros países muçulmanos, aqui em Marrocos, fazendo uma viagem destas, em que não me limito a viajar para Marraquexe, ir à Medina e andar de camelo, fazendo uma viagem que me permite atravessar centenas de povoações e ir interagindo com a malta, sinto como injusta a ideia que me parece que temos em Portugal sobre esta gente. Trafulhas dos tapetes, mais ou menos. Falei com pessoal muito na boa que me dizem que têm um irmão ou um tio na Itália, ou em Portugal, ou seja onde for, e penso se o irmão dessa pessoa será das pessoas que nesses países são olhadas com alguma desconfiança porque andam nas marginais das praias a vender chapéus luminosos. Aliás, acho que desrespeitamos este pessoal para caramba em Portugal. Iá, às vezes são chatos. Mas muitas vezes estão lá na deles, perguntam se queremos alguma cena e levam com trombas. Habituamo-nos a ver as pessoas como vindas todas no mesmo molde. Se somos abordados a primeira vez por um marroquino, dizemos que não educadamente. À segunda menos, à terceira menos ainda, e por aí fora. E à décima vez reagimos com arrogância, por ser a décima vez em não sei quantos dias que somos abordados por um marroquino, como se fossem todos a mesma pessoa! Pá, e estou a falar de marroquinos porque estou aqui. O mesmo vale para os africanos sub-sarianos, muitos deles que arriscaram a VIDA para poder vir para a mágica terra de oportunidade que é Portugal para andarem a vender cenas na rua para enviar dinheiro para a malta em África.

Agora o que é estúpido é o pessoal não se aperceber que isto é uma cadeia incrível... porque já ouvi comentários depreciativos de alguns marroquinos sobre outros povos, por exemplo. E, como disse, já ouvi comentários tugas sobre os de Marrocos. E sei que já comentários depreciativos sobre os tugas noutros países para onde estes emigram. E quando sabemos disso podemos sentirmo-nos agastados, sem sequer perceber que fazemos o mesmo! Ah, é ridículo! Toda a gente, seja em termos individuais ou em características comuns a nações, raças, deficiências, seja o que for, tem algo que se possa apontar. E se não queremos que peguem nessas nossas cenas, porque pegamos nós nas outras? Porque é que temos de ser tão falíveis e julgar, e separar e, de certa forma, odiar?

Cenas.

Estou aqui com algumas dificuldades na linha do tempo. Acho que estou a perder um dia algures ou então a confundir os dias da semana, mas não me apetece ir ler para trás.

Quando chegámos a Casablanca arranjámos um cafézito para ver se tínhamos tido alguma sorte com o couchsurfing. E tínhamos! O Abdul podia albergar-nos. Ainda deixei uma mensagem no grupo de Casablanca do couchsurfing a ver se podia usar a máquina de lavar de alguém, mas quando me responderam já tinha bazado...

Fomos dar uma volta pela movimentada cidade de Casablanca, comprando um biscoito aqui e ali, enquanto caminhávamos lentamente a caminho do nosso ponto de encontro com o Abdul. Quando este apareceu, era logo todo boa onda e boa pinta. Primeiro fingiu ser alguém que simplesmente nos queria cumprimentar. Depois lá disse que era ele mas mesmo assim estava sempre na brincadeira.

- Invejo-vos, pá! As pessoas dizem que me invejam por causa do meu trabalho, mas eu invejo-vos a vocês! – dizia o nosso anfitrião com o seu sorriso que me pareceu de imediato ser-lhe característico. Era um rapaz bem parecido, cabelo penteadinho para o lado e trabalhava numa empresa estrangeira, gerindo uma equipa de engenheiros. Entrámos no seu apartamento e estavam lá dois rapazes a enrolar um charro. O apartamento era simples. Tinha uns sofás na sala, uma televisão, e alguns elementos marroquinos, como uma abóbada e umas colunas com uns azulejos castanhos. Sentámo-nos e estivémos à conversa, maioritariamente com um dos seus amigos, que só falava espanhol, e que nos perguntou que fé tínhamos. Eu disse que não acreditava em nada e ele fez em esgar do tipo “iá, estes ocidentais e o seu ateísmo”, mas sem ser má onda. Eu disse que até gostava de crer, pois a minha VIDA seria mais fácil e teria mais sentido, dizendo ele que sim com a cabeça. O Abdul também era crente, apesar de não praticante, tal como o seu amigo de trinta anos. Surpreendeu-me um bocado o facto do nosso anfitrião ser crente, porque não tinha pinta disso, se é que há uma pinta disso.

Eu tenho muito a dizer sobre religião, mas quando conheço alguém que é crente num contexto destes não me vou por a dizer que acho tudo uma parvoíce, que um livro tenha vindo dos céus e cenas do género. É sempre preciso um gajo perceber o contexto e saber como dizer as cenas. Não devemos nunca ir contra aquilo em que acreditamos, mas podemos dizê-lo de várias maneiras. Na verdade, a maneira como o amigo do Abdul e o próprio Abdul eram religiosos, ou como me pareceu, não me faz confusão nenhuma, porque cada um tem a sua cena. Porém, as imposições e restrições sem sentido a que a religião obriga é das cenas que para mim não tem sentido. “O Corão tem tudo! É um mapa para como ser”, dizia o amigo do Abdul. Ora eu sei que o Corão, tal como a Bíblia, tem passagens muito brutais. Cenas más, mesmo. Contudo, nunca li realmente este livro, apesar de ser essa a minha vontade, para poder argumentar com conhecimento de causa, pelo que não fui por aí. Também tem cenas fixes, como alguns dos mandamentos da bíblia, por exemplo...

A dada altura o Abdul dizia que, de acordo com o Islão, não nos devemos zangar com nada, porque isso faz parte do plano de deus. Eu sou todo a favor de não nos zangarmos com nada, porque a tranquilidade deve imperar sempre. Faz-me sentir melhor. E a todos, acho, apesar de muita gente não saber como o fazer. Contudo, depois, quando falávamos de céu e inferno, eu questionei o facto de, se tudo faz parte do plano de deus, como é quer algumas pessoas vão para o céu e outras para o inferno? Pois se eu tivesse nascido noutro ambiente, talvez acabasse por ser uma pessoa terrível... e se deus me pôs lá, a responsabilidade não devia ser dele? Não estou aqui a dizer que quem faz cenas más não deve ser responsabilizado. Mas quando falamos do plano de deus, há peças que não encaixam.

- Eu também tenho questões como tu... – dizia o Abdul – Tipo... Já pensei que, se eu nascesse nos Estados Unidos, por exemplo, será que era muçulmano?
- Não eras – disse.
- Pois, não sei... Mas ainda assim, há uma fé cá dentro, que não tem explicação! – e é aí que os crentes me perdem. A cena da fé! O conceito de fé para mim também não tem sentido nenhum. Porque ter fé é acreditar em algo sem provas, e ainda que tudo leve a crer o contrário. É como um jogo de putos em que alguém diz “É assim porque eu disse que é assim!”.

Quando perguntei ao Abdul acerca dos seus sonhos, falou-me em ir para os Estados Unidos. E já não era a primeira vez que mo diziam. Parece que por estes lados há um bocado de febre americana. “Engraçado”, comentava, mais tarde, com o Joel, “Há Ocidentais que se apaixonam por estes modos simples de VIDA e querem algo mais assim... e o pessoal aqui quer algo mais como o que lá está”. Como se andássemos sempre atrás daquilo que está do lado de lá.
               
Fomos comer qualquer coisa, que o Abdul simpaticamente pagou, e acabámos o serão na descontra a comer umas sanduíches e a ver uns episódios.

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