Por
vezes, ser eu, é uma maldição. Sempre fui um bocado cabeça no ar, nunca sei
onde ponho nada. Mas nesta viagem está a ser a loucura. Já deixei a mochila
para trás duas ou três vezes, outras tantas em que me lembrei mesmo no último
minuto. A mochila que tem o passaporte, iá... Já perdi que tempos à procura dos
meus elásticos em Coimbra, já perdi os meus calções de banho e as minhas luvas
para pedalar.
E
na Quinta, dia vinte e seis, não sabia dos meus raios. Tinha ido dar uma vista
de olhos à roda da bicicleta, e descoberto que mais um raio, o terceiro, tinha
rebentado! Tinha trazido dez de Espanha, tinha rebentado três e perdido outro.
Bem, naquele momento tinha perdido todos. Lá desfiz a tenda e encontrei os
coitados debaixo da mesma. Com algum custo substituí o raio, mas tinha de fazer
algo. Arranjei um saco de plástico e uns elásticos e improvisei um alforge à
frente com algumas cenas mais pesadas. Não voltei a ter raios partidos! Boa,
Pedro! Ainda assim preciso de uns alforges em condições para a frente... mas
uma coisa de cada vez.
Nesse
dia a nossa ideia era ir até Casablanca. Tínhamos enviado alguns pedidos
através do couchsurfing e até então, nada. Apetecia-me uma cama. Estou a
habituar-me cada vez mais a isto de estar sempre fora, que no fundo é o que
significa acampar, mas é fixe ter uma cama e um duche. O que mais me custa é
não me sentir muito limpo. Ter de usar a mesma roupa quatro ou cinco dias
seguidos é algo a que se custa habituar. Curtia arranjar uns calções de banho
daqueles tipo boxers para poder lavar na boa, vestir e siga!
Agora
escrevo de Safi, e depois de amanhã devo chegar a Essaouira, onde vou descansar
uns dias. Tal como já comecei a fazer com as fotografias e a escrita, conto aí
arranjar um sistema que me permita andar mais limpo. Um deles passa por pedir a
alguém para me escrever num papel, em Árabe algo como “Sou de Portugal e estou
numa viagem de bicicleta até à África do Sul. Por um preço justo agradecia se
me pudesse lavar a roupa e pô-la a secar, e venho cá buscá-la amanhã.” Acho que
era fixe. Aliás, pensei em vários cartões a dizer também “Posso acampar no seu
terreno? Deixarei tudo limpo, não tem nada com que se preocupar” ou “Pode
dar-me um preço justo e fazer negócio, ou dar-me um preço para turistas e não
fazer negócio nenhum”.
É
fixe ter começado em Marrocos porque isto é África para principiantes, e dá
para um gajo se ir habituando às cenas. Aliás, Marrocos é super, super
tranquilo! Estou muito impressionado com este país. Tão perto aí da Lusitânia e
tão diferente! Quase todas as pessoas, em quase qualquer país, têm, a tendência
a ser mais simpáticas para estrangeiros. Mas aqui é uma loucura. Toda a gente
sempre a dizer “bem-vindos”, apesar de estar longe de qualquer aeroporto e já
termos andado quase setecentos quilómetros para Sul. Aliás, no início eu
levantava o braço e dizia sempre olá aos milhares de pessoas que o fazem à
medida que vamos passando. Depois passou para um aceno e agora limito-me a
simpaticamente sorrir e levantar a cabeça. Marrocos é também daqueles sítios
onde, se perguntamos as direcções a alguém e essa pessoa não sabe, aparece
sempre alguém que quer ajudar. Às vezes é demasiado, porque às vezes um gajo
não precisa de ajuda nenhuma e acabamos por perder tempo, mas ‘tá-se bem.
Quanto
ao trafego, o meu irmão, que vem a Casablanca com frequência, tinha-me
advertido, dizendo que conduziam como malucos por estes lados. Pois, tirando
alguns autocarros a ultrapassar como se fossem carros, acho o trânsito aqui
super tranquilo. Seja no campo ou nas cidades, em que por vezes temos uma
rotunda com bastantes carros e não se ouve uma única buzina ou um único
protesto. Marrocos é tão tranquilo, tão África para principantes, que me está a
preparar mal, talvez. Ainda há pouco fui ao super-mercado em Safi e tinha que
me concentrar para deixar as minhas cenas debaixo de olho. Isto é, não sentia o
instinto de olhar pelas minhas cenas, tinha de decidir conscientemente fazê-lo.
A única cena em que os Marroquinos falham, por vezes, é nos preços que nos dão,
parece-me.
Mas
iá, mais uma vez desconfirmo as ideias que o pessoal tem. Se o tinha reparado
noutros países muçulmanos, aqui em Marrocos, fazendo uma viagem destas, em que
não me limito a viajar para Marraquexe, ir à Medina e andar de camelo, fazendo
uma viagem que me permite atravessar centenas de povoações e ir interagindo com
a malta, sinto como injusta a ideia que me parece que temos em Portugal sobre
esta gente. Trafulhas dos tapetes, mais ou menos. Falei com pessoal muito na boa
que me dizem que têm um irmão ou um tio na Itália, ou em Portugal, ou seja onde
for, e penso se o irmão dessa pessoa será das pessoas que nesses países são
olhadas com alguma desconfiança porque andam nas marginais das praias a vender
chapéus luminosos. Aliás, acho que desrespeitamos este pessoal para caramba em
Portugal. Iá, às vezes são chatos. Mas muitas vezes estão lá na deles,
perguntam se queremos alguma cena e levam com trombas. Habituamo-nos a ver as
pessoas como vindas todas no mesmo molde. Se somos abordados a primeira vez por
um marroquino, dizemos que não educadamente. À segunda menos, à terceira menos
ainda, e por aí fora. E à décima vez reagimos com arrogância, por ser a décima
vez em não sei quantos dias que somos abordados por um marroquino, como se
fossem todos a mesma pessoa! Pá, e estou a falar de marroquinos porque estou
aqui. O mesmo vale para os africanos sub-sarianos, muitos deles que arriscaram
a VIDA para poder vir para a mágica terra de oportunidade que é Portugal para
andarem a vender cenas na rua para enviar dinheiro para a malta em África.
Agora
o que é estúpido é o pessoal não se aperceber que isto é uma cadeia incrível...
porque já ouvi comentários depreciativos de alguns marroquinos sobre outros
povos, por exemplo. E, como disse, já ouvi comentários tugas sobre os de
Marrocos. E sei que já comentários depreciativos sobre os tugas noutros países
para onde estes emigram. E quando sabemos disso podemos sentirmo-nos agastados,
sem sequer perceber que fazemos o mesmo! Ah, é ridículo! Toda a gente, seja em
termos individuais ou em características comuns a nações, raças, deficiências,
seja o que for, tem algo que se possa apontar. E se não queremos que peguem
nessas nossas cenas, porque pegamos nós nas outras? Porque é que temos de ser
tão falíveis e julgar, e separar e, de certa forma, odiar?
Cenas.
Estou aqui com algumas dificuldades na linha
do tempo. Acho que estou a perder um dia algures ou então a confundir os dias
da semana, mas não me apetece ir ler para trás.
Quando
chegámos a Casablanca arranjámos um cafézito para ver se tínhamos tido alguma
sorte com o couchsurfing. E tínhamos! O Abdul podia albergar-nos. Ainda deixei
uma mensagem no grupo de Casablanca do couchsurfing a ver se podia usar a
máquina de lavar de alguém, mas quando me responderam já tinha bazado...
Fomos
dar uma volta pela movimentada cidade de Casablanca, comprando um biscoito aqui
e ali, enquanto caminhávamos lentamente a caminho do nosso ponto de encontro
com o Abdul. Quando este apareceu, era logo todo boa onda e boa pinta. Primeiro
fingiu ser alguém que simplesmente nos queria cumprimentar. Depois lá disse que
era ele mas mesmo assim estava sempre na brincadeira.
-
Invejo-vos, pá! As pessoas dizem que me invejam por causa do meu trabalho, mas
eu invejo-vos a vocês! – dizia o nosso anfitrião com o seu sorriso que me
pareceu de imediato ser-lhe característico. Era um rapaz bem parecido, cabelo
penteadinho para o lado e trabalhava numa empresa estrangeira, gerindo uma
equipa de engenheiros. Entrámos no seu apartamento e estavam lá dois rapazes a
enrolar um charro. O apartamento era simples. Tinha uns sofás na sala, uma
televisão, e alguns elementos marroquinos, como uma abóbada e umas colunas com
uns azulejos castanhos. Sentámo-nos e estivémos à conversa, maioritariamente
com um dos seus amigos, que só falava espanhol, e que nos perguntou que fé
tínhamos. Eu disse que não acreditava em nada e ele fez em esgar do tipo “iá,
estes ocidentais e o seu ateísmo”, mas sem ser má onda. Eu disse que até
gostava de crer, pois a minha VIDA seria mais fácil e teria mais sentido,
dizendo ele que sim com a cabeça. O Abdul também era crente, apesar de não
praticante, tal como o seu amigo de trinta anos. Surpreendeu-me um bocado o
facto do nosso anfitrião ser crente, porque não tinha pinta disso, se é que há
uma pinta disso.
Eu
tenho muito a dizer sobre religião, mas quando conheço alguém que é crente num
contexto destes não me vou por a dizer que acho tudo uma parvoíce, que um livro
tenha vindo dos céus e cenas do género. É sempre preciso um gajo perceber o
contexto e saber como dizer as cenas. Não devemos nunca ir contra aquilo em que
acreditamos, mas podemos dizê-lo de várias maneiras. Na verdade, a maneira como
o amigo do Abdul e o próprio Abdul eram religiosos, ou como me pareceu, não me
faz confusão nenhuma, porque cada um tem a sua cena. Porém, as imposições e
restrições sem sentido a que a religião obriga é das cenas que para mim não
tem sentido. “O Corão tem tudo! É um mapa para como ser”, dizia o amigo do
Abdul. Ora eu sei que o Corão, tal como a Bíblia, tem passagens muito brutais.
Cenas más, mesmo. Contudo, nunca li realmente este livro, apesar de ser essa a
minha vontade, para poder argumentar com conhecimento de causa, pelo que não
fui por aí. Também tem cenas fixes, como alguns dos mandamentos da bíblia, por
exemplo...
A
dada altura o Abdul dizia que, de acordo com o Islão, não nos devemos zangar
com nada, porque isso faz parte do plano de deus. Eu sou todo a favor de não
nos zangarmos com nada, porque a tranquilidade deve imperar sempre. Faz-me
sentir melhor. E a todos, acho, apesar de muita gente não saber como o fazer.
Contudo, depois, quando falávamos de céu e inferno, eu questionei o facto de,
se tudo faz parte do plano de deus, como é quer algumas pessoas vão para o céu
e outras para o inferno? Pois se eu tivesse nascido noutro ambiente, talvez
acabasse por ser uma pessoa terrível... e se deus me pôs lá, a responsabilidade
não devia ser dele? Não estou aqui a dizer que quem faz cenas más não deve ser
responsabilizado. Mas quando falamos do plano de deus, há peças que não
encaixam.
-
Eu também tenho questões como tu... – dizia o Abdul – Tipo... Já pensei que, se
eu nascesse nos Estados Unidos, por exemplo, será que era muçulmano?
-
Não eras – disse.
-
Pois, não sei... Mas ainda assim, há uma fé cá dentro, que não tem explicação!
– e é aí que os crentes me perdem. A cena da fé! O conceito de fé para mim
também não tem sentido nenhum. Porque ter fé é acreditar em algo sem provas, e
ainda que tudo leve a crer o contrário. É como um jogo de putos em que alguém
diz “É assim porque eu disse que é assim!”.
Quando
perguntei ao Abdul acerca dos seus sonhos, falou-me em ir para os Estados
Unidos. E já não era a primeira vez que mo diziam. Parece que por estes lados
há um bocado de febre americana. “Engraçado”, comentava, mais tarde, com o
Joel, “Há Ocidentais que se apaixonam por estes modos simples de VIDA e querem
algo mais assim... e o pessoal aqui quer algo mais como o que lá está”. Como se
andássemos sempre atrás daquilo que está do lado de lá.
Fomos
comer qualquer coisa, que o Abdul simpaticamente pagou, e acabámos o serão na
descontra a comer umas sanduíches e a ver uns episódios.
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