Saí
de Jemenas com a ideia de ir até Gibraltar. Tinha ideia de ter visto que lá
havia uns hosteis quaisquer a dez ou quinze euros, e estava disposto a essa
loucura. Apesar de ter pedido diracções p’rai dez vezes, cheguei ao rochedo
bem. Contudo, uma vez lá, estava um bocado à nora. Precisava de internet, para
procurar hosteis ou couchsurfing. Mas precisava de deixar a bicicleta em algum
lado na rua e ao mesmo tempo ter o olho na miúda. A cena é que não podia ficar
em nenhuma esplanada porque estava sem bateria no computador, que tinha deixado
a carregar numa tomada que não funcionava.
Quando
finalmente encontrei um café de onde poderia ver a bicicleta cá para fora,
percebi que as tomadas eram inglesas! Frustração. Lá me sentei noutra esplanada
e tentei com o telemóvel. Percebi que o único hostel que aparecia no
hostelworld custava vinte e cinco euros. Pensei um bocado e, que se lixe, bota
para Algeciras. No fundo tinha ido a Gibraltar dar uma volta de uma hora.
Não
curti a viagem para Algeciras. Também tive de perguntar várias vezes o caminho,
e tive de ir um bocado por uma auto-estrada. Pelos vistos era a única
alternativa, e não era ilegal, mas é sempre um stresse maior.
Cheguei
a Algeciras e quando finalmente consegui ter internet no telemóvel vi que o hostel
mais barato também não era assim tão barato. Lá fui para o hostel Lisboa pagar
dezoito euros. Podia ter acampado, como estou a fazer hoje, mas já era de
noite, e estava mesmo numa de tomar um banho e deitar-me numa cama. Estava um
bocado abatido e meio tristonho, e é incrível como, quando um gajo está assim,
vê tudo com uma luz completamente diferente! Quando ia na bicicleta, de
Gibraltar para Algeciras sem saber onde ficar, de repente a viagem até à África
do Sul parecia incrivelmente difícil. De repente tinha tudo para correr mal!
Felizmente, sei que assim funciona a mente, e sabendo disso estou um passo à
frente para não me deixar levar por essa espiral depressiva.
Estava
tão a fim daquela noite numa cama na tranquilidade que nem saí mais do quarto.
O meu jantar foi um pacote de bolachas e uma fatia de queijo entre duas fatias
de pão.
Acordei
no dia seguinte a sentir-me melhor. O sol raiava e fui dar uma volta por
Algeciras, aproveitando para comprar um cartão que desse para gravar em alta
definição na minha câmara. Ainda procurei por um fogão, mas quando percebi que
não ia aparecer, fui buscar a bicicleta e fui ter a uma oficina onde tinha
estado horas antes. Comprei uns raios e uma ferramenta para os mudar, uma
campaínha mais prática e lancei-me para o porto.
Aí,
um gajo com pinta de arrumador fez logo por me levar a uma data de lojas que
vendiam bilhetes para Marrocos. A maior parte rejeitava-nos, não percebi bem
porquê. Ele disse que elas não tiravam bilhetes para bicicletas. E depois
disse-me para ir a uma ao fundo e bazou. Pois os gajos tiraram-me o bilhete de
vinte euros na boa, e não percebi que é que o outro méne ganhou em andar
comigo...
Tinham-me
dito para entrar pela entrada dos carros. Cheguei ao porto, confirmaram-me
isso, fui para lá, apenas para me mandarem para trás outra vez. “Se não queres
pagar pela bicicleta tens de a levar à mão, como se fosse equipamento”,
disse-me o velho. Lá fui para trás outra vez. Voltei a entrar no edifício onde
me tinham mandado para a entrada dos carros, subi as escadas, e eis que vi uma
bicicleta toda equipada.
Sem
grande escolha, fui atraído a sentar-me ao lado da mesma, tentando descortinar
quem era o seu dono.
Pois
não se avistava ninguém, e lá me quedei. Até que, vindo do quarto-de-banho,
aparece um rapaz pouco mais baixo que eu, magrito, olhos azuis vivos, barba e
pera já de dois meses e um sorriso simpático. “Oh, nice”, diz, com o seu
sotaque canadiano. Pegámos no paleio de imediato.
O
Joel, de vinte e oito anos, é um aficcionado da bicicleta. Do tipo de malta que
vai de bicicleta todos os dias para o trabalho, e que já andou um ano pelos
Estados Unidos e México do mesmo modo. Tinha voado para Barcelona, tocando a
Europa pela primeira vez, e tinha chegado até Algeciras descendo sempre pela
costa, com o objectivo de pedalar até ao Saara Ocidental, onde trabalharia como
voluntário num centro de meditação todo estriquiestriquil. Arranjou a cena num
daqueles sites onde quem precisa de trabalhadores anuncia, e quem quer
trabalhar vai lá e candidata-se. Correndo bem a cena, são aceites, trabalham
quatro horas por dia e têm comida e dormida garantida.
-
Então se quiseres, podemos pedalar juntos uns dias – sugeri, não tinham
passado cinco minutos – Porque eu também vou para Sul. Mas se quiseres ir sozinho
‘tá-se bem, eu compreendo perfeitamente.
-
Não, não, companhia é sempre fixe, ‘bora! – respondeu. E fiz assim o meu
primeiro amigo/companheiro de viagem. Às tantas metemos conversa com um casal
australiano muito porreiro de vinte e vinte e um anos que ia também para
Marrocos, e fomos os quatro à conversa no barco.
Chegámos
a África! Sentia o entusiasmo que esperava em sentir e que tardava em aparecer.
Finalmente não estava “com os meus”. Finalmente não estava na casa gigante que
é a Europa, onde o nosso Portugalinho até é bastante diferente, mas continua a
não destoar assim tanto dos demais países, quando comparámos, por exemplo, com
um vizinho tão próximo quanto o marroquino. O Joel que, no espaço de uma
semana, tocava, pela primeira vez, num segundo continente, partilhava do meu
entusiasmo, e de vez em quando, entre pedaladas, íamos dizendo um ao outro o
quanto estávamos felizes e o quanto éramos, e somos, previligiados. Iá, curti
logo o chavalo de vinte e oito anos. Boa onda.
Tinha
visto no google maps, e o percurso de Tanger-Med, onde desembarcáramos, até
Tanger, para onde seguíamos, era sempre pela costa. Pois pensava eu que, por
assim ser, era plano. Qual quê! Foram só quarenta e poucos quilómetros até
Tanger, mas sofri como um boi. E para mais estava com outra pessoa, e não me
sentia tão à vontade para parar como costumava. “Méne,”, disse, “Tu tens mais
estaleca que eu para estas subidas, por isso se quiseres ir indo,
encontrámo-nos lá”. “Não, eu não tenho pressa, é na boa!”, respondeu o camarada.
E lá seguímos, direitinhos à Praça de França, onde encontraríamos o nosso
anfitrião. É que apesar de eu já ter conhecido um méne na net que me deixava
acampar no campo dele, por vezes é mais fixe ficar debaixo de tecto. E por isso
mesmo o Joel tinha pedido ao Sirhan, seu anfitrião, se me podia albergar. E
podia. Altamente! Arranjei de repente companheiro de viagem e guarida também!
O
Sirhan, estilista, veio ter connosco e fomos para sua casa. E que casa! Eu não
vivia lá, porque eu sou eu, e não o Sirhan. É que nunca vi uma casa tão
personalizada quanto aquela! O hall de entrada ou me lembrava a Alice no País
das Maravilhas, ou o interior de um bolo! Depois o resto das divisões
representavam os diferentes elementos. Como me mostraria mais tarde nessa noite,
já com alguns copos, o Sirhan, o seu quarto era a água, todo azul, com umas
redes nos armários todas janotas e alguns peixes feitos de garrafas de plástico
recicladas muito fixes. O quarto-de-banho era a terra, beje e cheio de figuras
humanas e animais de brincar, representando os seus habitantes, a cozinha o
fogo, vermelho e amarelo, o seu estúdio o ar, acizentado e onde parecia,
realmente, que tinha passado um vendaval e levantado tudo. E a sala de espera,
para quem lá ia pedir um vestido ou cenas do género, e onde eu e o Joel
dormiríamos, era ele próprio, com quadros das suas primeiras coleções.
Tomar
banho soube como sempre sabe depois de um dia de bicicleta.
Banho
tomado, eu e o Joel fomos todos lampeiros comprar cervejas, a pensar que era
barato, e arrotámos logo cinco euros cada um para dez cervejas. E depois mais
dez para pagar a galinha, salada e outras cenitas que o Sirhan pedira para os
três. Tínhamos falado de orçamentos e essas cenas, e estávamos na mesma onda,
pelo que esses dez euros foram mais do que o planeado, mas tudo tranquilo.
Ainda faltavam os cinco euros que pagaríamos para ir a um bar todo alternativo
com o nosso anfitrião. Mas, de certa forma, valeu a pena, pois vimos um lado de
Tanger que, ao que me pareceu, só ali! Era um bar-discoteca subterrâneo onde
alguns dos seus amigos, artistas de teatro, encenadores, coreógrafos e malta
dessas artes, fazia uma festa. Música tribal-psicadélica, pinturas nas faces,
malta a comer vegetais, três galinhas numa jaula num canto e um tipo de jaula
com canas de bambu no meio da pista onde o pessoal ia dançar. Uma cena meio
surreal.
Eu
e o Joel estávamos um bocado na nossa, todos partidos e a conversar, mas um
bocado conitas, vendo esporadicamente o nosso excêntrico anfitrão a dançar. Mas
lá demos as voltas às canetas e, aos poucos, integrámo-nos com aquela excelente
malta.
À
uma acabou tudo, apanhámos um táxi e acabámos a noite os três na cozinha do
Sirhan a bebr uma cerveja cada um e a comer uma sanduíche. Rimo-nos,
conversámos, partilhámos ideias e teorias. Curti o Sirhan, apesar de ser
completamente diferente de mim ou de todos os meus amigos. Uma pessoa que me
parece meter mais do seu coração nas cenas do que os restantes mortais.
Sem comentários:
Enviar um comentário