sábado, 15 de março de 2014

De Algeciras a Tânger



Saí de Jemenas com a ideia de ir até Gibraltar. Tinha ideia de ter visto que lá havia uns hosteis quaisquer a dez ou quinze euros, e estava disposto a essa loucura. Apesar de ter pedido diracções p’rai dez vezes, cheguei ao rochedo bem. Contudo, uma vez lá, estava um bocado à nora. Precisava de internet, para procurar hosteis ou couchsurfing. Mas precisava de deixar a bicicleta em algum lado na rua e ao mesmo tempo ter o olho na miúda. A cena é que não podia ficar em nenhuma esplanada porque estava sem bateria no computador, que tinha deixado a carregar numa tomada que não funcionava.

Quando finalmente encontrei um café de onde poderia ver a bicicleta cá para fora, percebi que as tomadas eram inglesas! Frustração. Lá me sentei noutra esplanada e tentei com o telemóvel. Percebi que o único hostel que aparecia no hostelworld custava vinte e cinco euros. Pensei um bocado e, que se lixe, bota para Algeciras. No fundo tinha ido a Gibraltar dar uma volta de uma hora.
                 
Não curti a viagem para Algeciras. Também tive de perguntar várias vezes o caminho, e tive de ir um bocado por uma auto-estrada. Pelos vistos era a única alternativa, e não era ilegal, mas é sempre um stresse maior.
                 
Cheguei a Algeciras e quando finalmente consegui ter internet no telemóvel vi que o hostel mais barato também não era assim tão barato. Lá fui para o hostel Lisboa pagar dezoito euros. Podia ter acampado, como estou a fazer hoje, mas já era de noite, e estava mesmo numa de tomar um banho e deitar-me numa cama. Estava um bocado abatido e meio tristonho, e é incrível como, quando um gajo está assim, vê tudo com uma luz completamente diferente! Quando ia na bicicleta, de Gibraltar para Algeciras sem saber onde ficar, de repente a viagem até à África do Sul parecia incrivelmente difícil. De repente tinha tudo para correr mal! Felizmente, sei que assim funciona a mente, e sabendo disso estou um passo à frente para não me deixar levar por essa espiral depressiva.

Estava tão a fim daquela noite numa cama na tranquilidade que nem saí mais do quarto. O meu jantar foi um pacote de bolachas e uma fatia de queijo entre duas fatias de pão.
               
Acordei no dia seguinte a sentir-me melhor. O sol raiava e fui dar uma volta por Algeciras, aproveitando para comprar um cartão que desse para gravar em alta definição na minha câmara. Ainda procurei por um fogão, mas quando percebi que não ia aparecer, fui buscar a bicicleta e fui ter a uma oficina onde tinha estado horas antes. Comprei uns raios e uma ferramenta para os mudar, uma campaínha mais prática e lancei-me para o porto.

Aí, um gajo com pinta de arrumador fez logo por me levar a uma data de lojas que vendiam bilhetes para Marrocos. A maior parte rejeitava-nos, não percebi bem porquê. Ele disse que elas não tiravam bilhetes para bicicletas. E depois disse-me para ir a uma ao fundo e bazou. Pois os gajos tiraram-me o bilhete de vinte euros na boa, e não percebi que é que o outro méne ganhou em andar comigo...

Tinham-me dito para entrar pela entrada dos carros. Cheguei ao porto, confirmaram-me isso, fui para lá, apenas para me mandarem para trás outra vez. “Se não queres pagar pela bicicleta tens de a levar à mão, como se fosse equipamento”, disse-me o velho. Lá fui para trás outra vez. Voltei a entrar no edifício onde me tinham mandado para a entrada dos carros, subi as escadas, e eis que vi uma bicicleta toda equipada.

Sem grande escolha, fui atraído a sentar-me ao lado da mesma, tentando descortinar quem era o seu dono.

Pois não se avistava ninguém, e lá me quedei. Até que, vindo do quarto-de-banho, aparece um rapaz pouco mais baixo que eu, magrito, olhos azuis vivos, barba e pera já de dois meses e um sorriso simpático. “Oh, nice”, diz, com o seu sotaque canadiano. Pegámos no paleio de imediato.

O Joel, de vinte e oito anos, é um aficcionado da bicicleta. Do tipo de malta que vai de bicicleta todos os dias para o trabalho, e que já andou um ano pelos Estados Unidos e México do mesmo modo. Tinha voado para Barcelona, tocando a Europa pela primeira vez, e tinha chegado até Algeciras descendo sempre pela costa, com o objectivo de pedalar até ao Saara Ocidental, onde trabalharia como voluntário num centro de meditação todo estriquiestriquil. Arranjou a cena num daqueles sites onde quem precisa de trabalhadores anuncia, e quem quer trabalhar vai lá e candidata-se. Correndo bem a cena, são aceites, trabalham quatro horas por dia e têm comida e dormida garantida.

- Então se quiseres, podemos pedalar juntos uns dias – sugeri, não tinham passado cinco minutos – Porque eu também vou para Sul. Mas se quiseres ir sozinho ‘tá-se bem, eu compreendo perfeitamente.

- Não, não, companhia é sempre fixe, ‘bora! – respondeu. E fiz assim o meu primeiro amigo/companheiro de viagem. Às tantas metemos conversa com um casal australiano muito porreiro de vinte e vinte e um anos que ia também para Marrocos, e fomos os quatro à conversa no barco.
               
Chegámos a África! Sentia o entusiasmo que esperava em sentir e que tardava em aparecer. Finalmente não estava “com os meus”. Finalmente não estava na casa gigante que é a Europa, onde o nosso Portugalinho até é bastante diferente, mas continua a não destoar assim tanto dos demais países, quando comparámos, por exemplo, com um vizinho tão próximo quanto o marroquino. O Joel que, no espaço de uma semana, tocava, pela primeira vez, num segundo continente, partilhava do meu entusiasmo, e de vez em quando, entre pedaladas, íamos dizendo um ao outro o quanto estávamos felizes e o quanto éramos, e somos, previligiados. Iá, curti logo o chavalo de vinte e oito anos. Boa onda.

Tinha visto no google maps, e o percurso de Tanger-Med, onde desembarcáramos, até Tanger, para onde seguíamos, era sempre pela costa. Pois pensava eu que, por assim ser, era plano. Qual quê! Foram só quarenta e poucos quilómetros até Tanger, mas sofri como um boi. E para mais estava com outra pessoa, e não me sentia tão à vontade para parar como costumava. “Méne,”, disse, “Tu tens mais estaleca que eu para estas subidas, por isso se quiseres ir indo, encontrámo-nos lá”. “Não, eu não tenho pressa, é na boa!”, respondeu o camarada. E lá seguímos, direitinhos à Praça de França, onde encontraríamos o nosso anfitrião. É que apesar de eu já ter conhecido um méne na net que me deixava acampar no campo dele, por vezes é mais fixe ficar debaixo de tecto. E por isso mesmo o Joel tinha pedido ao Sirhan, seu anfitrião, se me podia albergar. E podia. Altamente! Arranjei de repente companheiro de viagem e guarida também!

O Sirhan, estilista, veio ter connosco e fomos para sua casa. E que casa! Eu não vivia lá, porque eu sou eu, e não o Sirhan. É que nunca vi uma casa tão personalizada quanto aquela! O hall de entrada ou me lembrava a Alice no País das Maravilhas, ou o interior de um bolo! Depois o resto das divisões representavam os diferentes elementos. Como me mostraria mais tarde nessa noite, já com alguns copos, o Sirhan, o seu quarto era a água, todo azul, com umas redes nos armários todas janotas e alguns peixes feitos de garrafas de plástico recicladas muito fixes. O quarto-de-banho era a terra, beje e cheio de figuras humanas e animais de brincar, representando os seus habitantes, a cozinha o fogo, vermelho e amarelo, o seu estúdio o ar, acizentado e onde parecia, realmente, que tinha passado um vendaval e levantado tudo. E a sala de espera, para quem lá ia pedir um vestido ou cenas do género, e onde eu e o Joel dormiríamos, era ele próprio, com quadros das suas primeiras coleções.
               
Tomar banho soube como sempre sabe depois de um dia de bicicleta.

Banho tomado, eu e o Joel fomos todos lampeiros comprar cervejas, a pensar que era barato, e arrotámos logo cinco euros cada um para dez cervejas. E depois mais dez para pagar a galinha, salada e outras cenitas que o Sirhan pedira para os três. Tínhamos falado de orçamentos e essas cenas, e estávamos na mesma onda, pelo que esses dez euros foram mais do que o planeado, mas tudo tranquilo. Ainda faltavam os cinco euros que pagaríamos para ir a um bar todo alternativo com o nosso anfitrião. Mas, de certa forma, valeu a pena, pois vimos um lado de Tanger que, ao que me pareceu, só ali! Era um bar-discoteca subterrâneo onde alguns dos seus amigos, artistas de teatro, encenadores, coreógrafos e malta dessas artes, fazia uma festa. Música tribal-psicadélica, pinturas nas faces, malta a comer vegetais, três galinhas numa jaula num canto e um tipo de jaula com canas de bambu no meio da pista onde o pessoal ia dançar. Uma cena meio surreal.

Eu e o Joel estávamos um bocado na nossa, todos partidos e a conversar, mas um bocado conitas, vendo esporadicamente o nosso excêntrico anfitrão a dançar. Mas lá demos as voltas às canetas e, aos poucos, integrámo-nos com aquela excelente malta.

À uma acabou tudo, apanhámos um táxi e acabámos a noite os três na cozinha do Sirhan a bebr uma cerveja cada um e a comer uma sanduíche. Rimo-nos, conversámos, partilhámos ideias e teorias. Curti o Sirhan, apesar de ser completamente diferente de mim ou de todos os meus amigos. Uma pessoa que me parece meter mais do seu coração nas cenas do que os restantes mortais.

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