Hoje foi um dia intenso, daqueles que se sente cá dentro. Visto de
fora, como se um filme fosse, não parecia haver nada de especial. Mas é por
detrás dos olhos que tudo se passa.
Quando acordei tinha uma mensagem de um rapaz no couchsurfing a dizer
que me podia albergar em Tighmert, um oásis a quinze quilómetros de Guelmim.
Isso implicaria um desvio de trinta ou quarenta quilómetros, mas até estava a
fim. Troquei algumas mensagens com ele e, a dada altura, fiquei meio confuso,
porque ele dizia para telefonar ao amigo dele porque era ele que me podia
albergar. Apontei o número dos dois e, depois de arranjar as malas, lavar a
louça e me despedir do Hassan e do Ibrahim, pus-me a caminho.
A viagem começou tranquilamente, e parei logo ao quilómetro vinte cerca
de uma hora, para ir ver a praia de Legzaira, com as suas interessantes
formações rochosas. Daí passei por Sidi Ifni e foi ao sair desta cidade que
começou o penar. A estrada levou-me para cima, fez-me atravessar alguns montes
e presenteou-me com belas vistas. Mas dava por mim em subidas de quase uma hora
para fazer seis ou sete quilómetros, depois descia a sessenta ou setenta à hora
um chisco, andava uns metros em plano, e lá voltava a subir. Ao início ia-se
fazendo mais ou menos bem. Mas começava a ficar cansado. Acho que, sem querer,
estabeleci a regra de não fazer menos de oitenta quilómetros a menos que o
destino seja mais perto do que isso. Passava o quilómetro sessenta. A vinte dos
oitenta mas a trinta e cinco de Guelmim. Tinha planeado mal as coisas...
perdão... como não tinha planeado as coisas, não tinha comida, por isso ia ter
mesmo de ir até Guelmim. E quanto ao oásis em Tirghmet, zero.
Ainda não estava no quilómetro setenta quando comecei, mais uma vez, a
questionar a minha capacidade. Tenho de me transportar para aquele momento,
pois agora, aqui na cama, tudo parece muito mais fácil. Mas, a verdade é que
naqueles momentos em que tenho mesmo que dar o melhor de mim, é quando não sei
se tenho estofo para isto. Sempre me considerei um gajo muito forte
mentalmente. Acho que tenho um bom controlo da minha mente e das minhas
capacidades, e tanto uma quanto as outras já foram postas à prova algumas vezes
e tudo correu bem. Mas a verdade é que não sei se consigo ir até lá abaixo
sempre de bicicleta. Foda-se, que cena estranha! Bem, se por um lado digo que
tenho controlo da mente, por outro tenho de dizer que ela anda um pouco por
todo o lado ao desgoverno. É que, ao escrever a frase anterior tentava
transportar-me para aqueles momentos em que realmente sentia a dor e o
sofrimento e questionava o meu sucesso. Mas dei por mim agora a não acreditar
no que eu próprio escrevia. Porque agora, neste preciso momento, acho que sim,
que sou capaz! Que, se depender de mim, consigo! Pouco a pouco, consigo. Ah,
não me entendo...
Quando andei pela Ásia, lembro-me de comparar a boleia a ir correr. A
ideia disso custa um bocado, o durante também custa, seja nas pernas ou nas
horas de seca, mas o depois, quando tudo correu bem, é altamente! Ou tomamos um
bom duche e depois temos aquele cansaço fixe, ou então chegamos ao nosso
destino sem gastar um cêntimo e achamo-nos os maiores! Parece que viajar de
bicicleta é um bocado isso... Nem sempre a ideia disso custa, pois há dias
fixes em que só nos apetece pedalar, e nem sempre o durante custa. Atravessar
montes verdejantes com cabras ao fundo e casas e pessoas de outra cultura,
deslizando por um liso alcatrão que não faz por subir muito é altamente! Tal como
o durante na boleia nem sempre custa, quando realmente apanhamos a boleia...
Há algumas diferenças, mas o depois parece ser a fase mais parecida
entre estes exemplos todos.
Então, quando penava para subir aquilo tudo, pensava que este é um tipo
de viagem que não tem nada a ver com a viagem da boleia. É cedo para dizer se
gosto mais, ou menos, e acho que nunca o vou dizer, por ser tão diferente. Há
mais tranquilidade e eficácia de deslocação à boleia. Txi, já estava p’ra no
Senegal! Mas de bicicleta sentimos os quilómetros que passam a sair-nos do
coração. É bom saber que saí de minha casa, em Vale de Cambra e que, tirando o
barco em Algeciras, vim sempre, sempre até aqui com o meu próprio esforço. É
gratificante. Além disso também sentimos um bocado mais de bicicleta. Um bocado
mais de tudo por onde passamos. Pasamos nas vilas e temos tempo para reparar
nos detalhes e cumprimentar os milhares de pessoas que nos cumprimentam. Uma
desvantagem é a bicicleta propriamente dita. Temos de estar de olho na miúda
sempre, o que é uma seca. À boleia, só com a mochila há uma certa liberdade de
que sinto falta.
Tenho de ter cuidado com isto tudo, no fundo. Tenho de ter cuidado e
perceber se chega a um ponto em que estou a continuar de bicicleta porque disse
que o faria. Se o fizer, é uma fortaleza mental que acaba por ser uma
fraqueza... Pois a mais ténue das linhas é aquele que separa a resiliência,
espírito de sacrifício e vontade do puro orgulho. Pois se chegar a um ponto em
que realmente me desagrada a ideia de pedalar, tenho de sentar-me à mesa comigo
mesmo, e dizer-me que não tenho de fazer nada de nada. Não há nada pior que ser
refém de nós próprios, e eu tenho tantas certezas e tanta desinibição cmo
certas afirmações que corro o risco de me aprisionar, por vezes.
Esta minha atitude de agora, em que já acho que vou conseguir,
contrastando com quando subia aquelas montanhas, começou ao quilómetro setenta
e um desta viagem. Sei porque vi uma grande descida e lembrei-me de reparar
quantos quilómetros seguidos ia descer. Desci bués. Aliás, desde aí até chegar,
ao quilómetro noventa e seis, devo ter vindo a uma média de vinte e tal,
comparando com a média de quinze até então. Iá, dá um certo gozo apanhar um
terreno porreiro e dar-lhe. O que não dá tanto gozo é olharmos para o pneu de
trás e vê-lo a chorar. Parei, escassos quilómetros antes de Guelmim, enchi-o,
enganando-me a mim próprio, e segui. Parei para tentar ligar aos gajos do
couchsurfing, não consegui. Jantei por dois euros, peixe! Pela primeira vez
desde que saí de Vale de Cambra, peixe! Paguei, parei num café para um chá e
quando ia pegar na bicicleta... vazio. Ah, pá! “Vou enchê-lo outra vez e deve
dar para sair da cidade e acampar aí num sítio qualquer”, pensei. Mas não dava.
Quanto metia para dentro, quanto saía.
Uns rapazes, vendo-me no meu esforço, ofereceram-se para ajudar, e
indicaram-me uma loja de bicicletas. Já era de noite, estava numa cidade, podia
adiar mais dois mil quilómetros a minha estreia na mudança de pneus. O homem lá
o mudou e vim procurar um hotel, onde agora me encontro. O primeiro era cinco
euros, bazei. Estou agora a pagar três euros por um quarto, num hotel que é
quase tão mau quanto um onde fiquei na Síria aqui há uns anos. Mas... ‘tá-se
bem.
22h21, 3ª, 11-3-14
Hotel Merdoso, Guelmim
:) um texto introspectivo... como outros tantos que já escreveste. Mas neste texto noto uma maior dificuldade em relatar minuciosanente os momentos maus. Tudo passa. E aqui mostras o quão voláteis são os momentos, os sentimentos, mesmo aqueles que são maus, ou menos bons. :)
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