Apesar do chão cheio de pedras,
estava a dormir a minha primeira noite de campismo a solo com alguma
tranquilidade até que comecei a ser acordado com a parede da tenda a bater-me
na testa. Pouco a pouco, cada vez mais forte, até que já não dava para dormir,
eram sete e tal. Levantei-me, a Bicicleta ainda lá estava, lavei os dentes,
arranjei as cenas com tranquilidade e meti-me a caminho. O Vento estava a
dar-me pelas costas e estava com uma média de 25 quilómetros por hora!
Altamente! Vrrum, lá segui! Até que fui ter ao mar. Aí, em vez de seguir para
Oeste, comecei a seguir para Sul, e em vez do poderoso Vento me dar pelas
costas, dava-me de lado ou de frente. Deus, que frustração. Ora a ser mandado
estrada fora, ora a esforçar-me ao máximo para andar a oito ou nove quilómetros
por hora. Só me apetecia mandar tudo pelo caralho! Desfazer-me da Bicicleta e
apanhar a próxima boleia. Acho que cheguei a estar meio triste com aquilo tudo.
Ia-me convencendo que às vezes é assim, e que depois passa e essas cenas todas,
mas estava difícil.
Felizmente, só tinha de fazer
cerca de cinquenta quilómetros.
E assim, pesadas horas depois, lá
cheguei a Mirleft, que se avistava no topo de uma falésia. Contente por ter
acabado o suplício, perguntei a um senhor se havia campismo ou algo assim na
Vila e ele disse-me que não. Vim na mesma, dei uma volta, nada. Não se passava
nada. Até que fui interpelado por um rapaz que me queria alugar um quarto por
dez euros. Se eu encontrasse outra pessoa pagava o mesmo. Eu disse-lhe que
acreditava que era um bom preço, mas como ia estar a viajar um ano, não queria
estar a pagar tanto. Perguntei-lhe se dava para acampar em casa dele, que
estava disposto a pagar por isso, e apesar de inicialmente renitente, disse
depois que não ia dar. Lá disse que ia ligar a um amigo a ver que preço ele
fazia, e eu perguntei se havia algum campismo. “Há um ali ao fundo, é de um
francês”, respondeu o méne. “Então eu vou lá ver enquanto ligas ao teu amigo”.
O campismo tinha internet, tinha máquina de lavar roupa por 3€ e parecia dar
para cozinhar. Tinha de pagar 2,5€ para mim e outro tanto pela tenda. Pá, não
era péssimo. “Vou ficar aqui”, pensei. Mas, apesar de querer entrar e descansar
um bocado, tinha dito ao outro méne que voltava, por isso lá decidi voltar só
para lhe dizer que afinal ficaria no campismo. Acontece que o rapaz já não
estava lá, e quem estava era o Ibrahim e o Karim, que me disseram que tinham um
quarto por cinco euros. Ainda hoje não percebi se algum deles era o amigo a
quem o outro disse que ia ligar, ou se tinha coincidência. O que é certo é que
lá fui ver o sítio e era demais! Fiquei contente por, ao decidir fazer o
correcto e ir dizer ao outro que já não estava interessado, acabei por te
sorte. Nisto tudo aparece uma coreana a sair de um táxi que eles fisgaram de
imediato.
Lá seguimos os três. Era um
apartamento com três quartos enormes, cozinha com frigorífico e gás e
quarto-de-banho com água quente (assim-assim, e às vezes) e papel higiénico.
Tinha um champô e tudo! Deixei a miúda ficar com o quarto com a cama e eu
fiquei num daqueles que tem umas almofadas estilo sofá sem pernas a toda a
volta, e fomos ao terraço. Lá era o apartamento do Hassan, dono também daquele
onde ficaríamos, e onde estava o router da internet, que chegava na boa ao
nosso apartamento! A cereja no topo do bolo foi uma máquina de lavar roupa que
podíamos usar pela módica quantia de NADA! Era bastante simples, abrir, meter a
roupa e o Tide, meter água e carregar num botão que fazia aquilo girar, mas era
suficiente. E tudo por cinco euros! Estava contente.
Bebemos um chá e comemos uma
sanduíche no apartamento do Hassan e depois fui tomar banho e descontrair um
bocado no meu quarto. Quando me vi ao espelho reparei que tinha mares de sal
espalhados pela minha cara. Os esforços de um ciclo-turista.
Fui dar uma volta, indo parar a
uma praia porreira ao lado de uma mesquita. Ainda tentei ir à beira-mar, mas o
Vento metia-se nos olhos e espancava-me a cara.
O Ibrahim tinha dito que mais
logo podíamos jantar juntos, e assim o fizemos, quando ele nos veio chamar.
Comemos umas sanduíches enquanto ele preparava o jantar e íamos conversando. O
Ibrahim tinha vendido um terreno por quatro mil euros e tinha-se mandado para a
Europa meio ano. O irmão dele vivia em França, estando casado com uma francesa,
mandou-lhe o passaporte dele e o gajo andou com o passaporte do irmão até ser
apanhado. Meteram-no num avião de volta para Marrocos e agora está cá outra
vez. Um gajo muito porreiro e o primeiro, juntamente com o Hassan, que não praticava
o Islão. “Se és boa pessoa, já és muçulmano”, dizia o dono do apartamento.
Entretanto apareceu o Karim.
Pareceu-me que eram amigos recentes pelo Ibrahim não saber ao certo a idade
deste rapaz, e confirmei-o mais tarde, num momento muito interessante.
Falávamos do Ramadão, e o Karim contava um episódio que se passara quando
estivera três ou quatro meses em Friburgo, na Alemanha. “Além de não podermos
comer nem beber, também não podemos olhar para mulheres...”, dizia, “Pois uma
vez eu estava num parque, e passei por uma rapariga com uma gabardine. Ela
devia saber que era o ramadão, porque chamou-me, eu olhei, e ela abriu a
gabardine, e estava toda nua! Eu virei-me e desatei a correr para casa”. “O
Karim vai para o paraíso”, disse o Ibrahim, ironicamente. O momento
interessante foi quando o Karim disse que toda a gente vivia o ramadão e eu
disse que o Hassan e o Ibrahim, por exemplo, não o praticavam. Já tínhamos
falado disso.
- Claro que praticam! – disse,
cheio de certeza.
- Não, não pratico... – disse o
Ibrahim.
- Mas é muçulmano... tens de...
tens de praticá-lo – respondeu o Karim, nitidamenete confuso, e com dificuldade
em assimilar aquilo.
- Mas eu não sou muçulmano! –
rematou o Ibrahim. Pá, a reacção do Karim foi como se eles fossem todos polícias
e o Ibrahim acabasse de confessar que usava o dinheiro das multas para comprar
heroína. Assim uma traição total. Não a ponto do gajo se pôr a andar, mas
embasbacado que estava, disse que ia fingir que não tinha ouvido aquilo, como
que se negando a evidência o ajudasse a não ver o amigo sob uma luz menos
positiva. E é em cenas destas que entra a minha dificuldade em entender estas
cenas.
- Mas é a tua cultura, a tua
tradição!
- Mas, – disse eu – há pessoas
que escolhem ter a sua própria cultura, e fazer as cenas à sua própria
maneira... e isso não tem de ter mal nenhum, desde que sejam boa onda e se
respeitem uns aos outros...
O jantar foi sublime, bem como a
sobremesa que o Ibrahim preparara. Passei o serão com os rapazes, ora na
conversa, ora a ver um excerto de um filme qualquer. Foi uma boa noite.
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