sexta-feira, 18 de abril de 2014

Mirleft

Apesar do chão cheio de pedras, estava a dormir a minha primeira noite de campismo a solo com alguma tranquilidade até que comecei a ser acordado com a parede da tenda a bater-me na testa. Pouco a pouco, cada vez mais forte, até que já não dava para dormir, eram sete e tal. Levantei-me, a Bicicleta ainda lá estava, lavei os dentes, arranjei as cenas com tranquilidade e meti-me a caminho. O Vento estava a dar-me pelas costas e estava com uma média de 25 quilómetros por hora! Altamente! Vrrum, lá segui! Até que fui ter ao mar. Aí, em vez de seguir para Oeste, comecei a seguir para Sul, e em vez do poderoso Vento me dar pelas costas, dava-me de lado ou de frente. Deus, que frustração. Ora a ser mandado estrada fora, ora a esforçar-me ao máximo para andar a oito ou nove quilómetros por hora. Só me apetecia mandar tudo pelo caralho! Desfazer-me da Bicicleta e apanhar a próxima boleia. Acho que cheguei a estar meio triste com aquilo tudo. Ia-me convencendo que às vezes é assim, e que depois passa e essas cenas todas, mas estava difícil.
               
Felizmente, só tinha de fazer cerca de cinquenta quilómetros.
               
E assim, pesadas horas depois, lá cheguei a Mirleft, que se avistava no topo de uma falésia. Contente por ter acabado o suplício, perguntei a um senhor se havia campismo ou algo assim na Vila e ele disse-me que não. Vim na mesma, dei uma volta, nada. Não se passava nada. Até que fui interpelado por um rapaz que me queria alugar um quarto por dez euros. Se eu encontrasse outra pessoa pagava o mesmo. Eu disse-lhe que acreditava que era um bom preço, mas como ia estar a viajar um ano, não queria estar a pagar tanto. Perguntei-lhe se dava para acampar em casa dele, que estava disposto a pagar por isso, e apesar de inicialmente renitente, disse depois que não ia dar. Lá disse que ia ligar a um amigo a ver que preço ele fazia, e eu perguntei se havia algum campismo. “Há um ali ao fundo, é de um francês”, respondeu o méne. “Então eu vou lá ver enquanto ligas ao teu amigo”. O campismo tinha internet, tinha máquina de lavar roupa por 3€ e parecia dar para cozinhar. Tinha de pagar 2,5€ para mim e outro tanto pela tenda. Pá, não era péssimo. “Vou ficar aqui”, pensei. Mas, apesar de querer entrar e descansar um bocado, tinha dito ao outro méne que voltava, por isso lá decidi voltar só para lhe dizer que afinal ficaria no campismo. Acontece que o rapaz já não estava lá, e quem estava era o Ibrahim e o Karim, que me disseram que tinham um quarto por cinco euros. Ainda hoje não percebi se algum deles era o amigo a quem o outro disse que ia ligar, ou se tinha coincidência. O que é certo é que lá fui ver o sítio e era demais! Fiquei contente por, ao decidir fazer o correcto e ir dizer ao outro que já não estava interessado, acabei por te sorte. Nisto tudo aparece uma coreana a sair de um táxi que eles fisgaram de imediato.
               
Lá seguimos os três. Era um apartamento com três quartos enormes, cozinha com frigorífico e gás e quarto-de-banho com água quente (assim-assim, e às vezes) e papel higiénico. Tinha um champô e tudo! Deixei a miúda ficar com o quarto com a cama e eu fiquei num daqueles que tem umas almofadas estilo sofá sem pernas a toda a volta, e fomos ao terraço. Lá era o apartamento do Hassan, dono também daquele onde ficaríamos, e onde estava o router da internet, que chegava na boa ao nosso apartamento! A cereja no topo do bolo foi uma máquina de lavar roupa que podíamos usar pela módica quantia de NADA! Era bastante simples, abrir, meter a roupa e o Tide, meter água e carregar num botão que fazia aquilo girar, mas era suficiente. E tudo por cinco euros! Estava contente.
               
Bebemos um chá e comemos uma sanduíche no apartamento do Hassan e depois fui tomar banho e descontrair um bocado no meu quarto. Quando me vi ao espelho reparei que tinha mares de sal espalhados pela minha cara. Os esforços de um ciclo-turista.

               
Fui dar uma volta, indo parar a uma praia porreira ao lado de uma mesquita. Ainda tentei ir à beira-mar, mas o Vento metia-se nos olhos e espancava-me a cara.
               
O Ibrahim tinha dito que mais logo podíamos jantar juntos, e assim o fizemos, quando ele nos veio chamar. Comemos umas sanduíches enquanto ele preparava o jantar e íamos conversando. O Ibrahim tinha vendido um terreno por quatro mil euros e tinha-se mandado para a Europa meio ano. O irmão dele vivia em França, estando casado com uma francesa, mandou-lhe o passaporte dele e o gajo andou com o passaporte do irmão até ser apanhado. Meteram-no num avião de volta para Marrocos e agora está cá outra vez. Um gajo muito porreiro e o primeiro, juntamente com o Hassan, que não praticava o Islão. “Se és boa pessoa, já és muçulmano”, dizia o dono do apartamento.
               
Entretanto apareceu o Karim. Pareceu-me que eram amigos recentes pelo Ibrahim não saber ao certo a idade deste rapaz, e confirmei-o mais tarde, num momento muito interessante. Falávamos do Ramadão, e o Karim contava um episódio que se passara quando estivera três ou quatro meses em Friburgo, na Alemanha. “Além de não podermos comer nem beber, também não podemos olhar para mulheres...”, dizia, “Pois uma vez eu estava num parque, e passei por uma rapariga com uma gabardine. Ela devia saber que era o ramadão, porque chamou-me, eu olhei, e ela abriu a gabardine, e estava toda nua! Eu virei-me e desatei a correr para casa”. “O Karim vai para o paraíso”, disse o Ibrahim, ironicamente. O momento interessante foi quando o Karim disse que toda a gente vivia o ramadão e eu disse que o Hassan e o Ibrahim, por exemplo, não o praticavam. Já tínhamos falado disso.
               
- Claro que praticam! – disse, cheio de certeza.
- Não, não pratico... – disse o Ibrahim.
- Mas é muçulmano... tens de... tens de praticá-lo – respondeu o Karim, nitidamenete confuso, e com dificuldade em assimilar aquilo.
- Mas eu não sou muçulmano! – rematou o Ibrahim. Pá, a reacção do Karim foi como se eles fossem todos polícias e o Ibrahim acabasse de confessar que usava o dinheiro das multas para comprar heroína. Assim uma traição total. Não a ponto do gajo se pôr a andar, mas embasbacado que estava, disse que ia fingir que não tinha ouvido aquilo, como que se negando a evidência o ajudasse a não ver o amigo sob uma luz menos positiva. E é em cenas destas que entra a minha dificuldade em entender estas cenas.
- Mas é a tua cultura, a tua tradição!
- Mas, – disse eu – há pessoas que escolhem ter a sua própria cultura, e fazer as cenas à sua própria maneira... e isso não tem de ter mal nenhum, desde que sejam boa onda e se respeitem uns aos outros...


O jantar foi sublime, bem como a sobremesa que o Ibrahim preparara. Passei o serão com os rapazes, ora na conversa, ora a ver um excerto de um filme qualquer. Foi uma boa noite.

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