segunda-feira, 12 de maio de 2014

até Tarfaya

Acho que estou a encontrar o meu lugar enquanto ciclo-turista. Ainda não o encontrei exactamente, porque o simples facto de, agora mesmo, ter insinuado que sou um ciclo-turista deixa-me meio embaraçado. Imaginem um bairro onde toda a gente gosta de futebol. Conhecem os jogadores, tácticas, o nome dos recintos e jogam à bola uns com os outros. Depois imaginem o puto novo que chega ao bairro e quer integrar-se e então aparece no Domingo de manhã para jogar com os outros. Realmente trás uma uma t-shirt de Futebol do Porto, mas trás também uns calções de basket dos Toronto Raptors e uns sapatos de vela. O pessoal olha tipo “Que é que este gajo quer?”, e o miudito, meio a medo, lá vai dar uns pontapezitos na bola.

Pois comigo, apesar de não se ter passado o mesmo com os amantes do cicloturismo, sendo que o pessoal foi sempre excelente em dar-me dicas e conselhos, a verdade é que sinto que mergulhei num mundo completamente desconhecido, e só conhecendo um pouco é que me apercebo do quão desconhecido era. Quando saí de Vale de Cambra era tipo “Iá, é andar de bicicleta... para a frente”. E, iá, é muito isso, mas também é muito mais, seja em termos de logística ou de realmente saber como é que, para nós, vai ser fixe.

Pois o meu lugar enquanto ciclo-turista... Para já, é meio borderline, porque tenho um dia mau e apetece-me derreter a bicicleta e fazer uma sanita com o metal, e tenho um dia bom e apetece-me fazer um altar ao Lord Bike, o inventor do meio de transporte. Anteontem foi um dia mau, em que quase me senti incapaz, ontem foi um dia misto, hoje foi um dia espectacular.

Ontem saí de Guelmim e não demorei muito a perceber que tinha cometido um erro crasso. Parecia que a próxima povoação era só Tan Tan, que estava a 130km de distância e tudo o que eu tinha era um pão e dois triângulos de queijo. Tinha de ir até Tan Tan, não havia hipótese de acampar pelo meio. Na verdade havia outra povoação, mas eu não sabia isto na altura. Fui andando, entrei no deserto, e estava tudo bem, até que senti outro furo. O quê? Outro, depois do primeiro ter sido no dia anterior? Sim, parecia que sim... “Bem, lá terei de me estrear a remendar um furo”, pensei. No início, como o barulho vinha do sítio do furo anterior, achei que o homem não sabia o que fazia, e estava a tentar arrancar o remendo dele quando me apercebi que afinal o furo era ao lado. Mesmo ao lado do outro! Lá remendei a cena. Demorei p’rai uma hora, mas lá remendei a cena. Estranhei ser mesmo, mesmo ao lado do furo do dia anterior, mas tudo bem. Andei mais oito quilómetros e tumba, outro furo, que também apareceu de fininho, com o pneu a esvaziar lentamente. Dessa feita, reparei-o em vinte e cinco minutos. Mas não interessou nada, porque passado um pedaço já tinha outro. Havia algo que eu não estava a fazer bem, certamente, pelo que decidi voltar para trás.




Pedi ao primeiro carro que passou para parar, e parou. Era uma carrinha, já com três pessoas à frente, mas por estes lado isso não é problema. Quando, mais tarde, passámos por uma operação stop, reparei que nem lhes passou pela cabeça ser um problema termos quatro pessoas à frente. E agora nem sei bem se aquilo era para duas ou três pessoas! Tirei as cenas da bicicleta, meti-as na frente, e o homem meteu-a em cima do pneu suplente e amarrou-a com uma corda. Só estava a ver a bicicleta a cair e partir-se toda. Ou então finalmente haver uma justificação para ter uma bicicleta de aço – para poder cair de um jipe em andamento e não partir!

Estava um bocado naquela em relação a pagar ou não ao senhor. Não sabia muito bem se ele era um táxi ou não, porque o méne que vinha à frente a falar comigo disse que ele era familiar dele. O que me confundiu quando ele próprio lhe deu algum dinheiro. Talvez tenha havido um problema de comunicação. Certo é que não me pediu nada, e lá fui à mesma loja do dia anterior. Estava lá outro homem todo janota sentado com o filho que disse que o mecânico estava fora. Disse para eu trazer a bicicleta e de repente estava a reparar o pneu. Perguntou se tinha outra câmara de ar e lá lha dei. No final disse que era um euro, e eu entreguei-lho, meio desconfiado que o gajo simplesmente estava lá sentado a descansar e aproveitou para fazer um biscate. Não que interesse...

Voltei ao mesmo hotel da noite anterior, e depois de tomar banho fui dar uma volta pela cidade. Estava no meu elemento. É a cena que não posso ter a acampar. Quando fico num hotel deixo as cenas no quarto e depois vou dar uma volta. Curto ver a agitação nocturna, a malta na rua a comer e a beber chá. Apesar de recolherem cedo, os marroquinos saem muito à rua.

Devo ter perguntado a umas doze farmácias por álcool para usar como combustível para cozinhar. Só tinham de 70%, até que encontrei uma que tinha a 96%! A onze euros o litro. Disse “Não, obrigado”, e fui comer qualquer cena. Ia pensar nas proporções e no preço que já tinha pago e se valesse a pena voltava no dia seguinte. Sentei-me para comer na cadeira na rua no estabelecimento de um jovem que fazia umas sandes de espetada. Fui interpelado por um senhor muito simpático que, pareceu-me, exigiu ao rapaz que me fizesse o preço justo. Digo isto não só por mo ter parecido quando perguntei quanto era e o homem ter dito algo ao outro com cara feia depois de um preço qualquer em árabe, mas também pelo preço em si. Comi três sandes altamente de espetada e bebi um copo de leite de camelo por um 1,2€. E Estava jantado. Passei pelo Café Bagdade e bebi lá uma meia de leite enquanto fazia umas cenas na net e via o Barcelona. Estou a adorar meias de leite... e leite em geral! Não sei se, por alguma razão, o corpo pede mais, mas os meus últimos luxos têm sido comprar três pacotes de bolachas de seis bolachas cada e comê-las a beber meio litro de leite. Demais! Ah, os simples prazeres...

No dia seguinte voltei à farmácia que tinha o álcool. Estava lá um rapaz e nesse dia o mesmo álcool já era 12 euros! Quando lhe disse para que o queria ele disse que aquilo não era inflamável. “Facilmente inflamável”, dizia, de lado, em espanhol.
- Mas esta é a garrafa original?
- É. Mas este álcool não é inflamável. Se queres álcool para isso tens ali na drogaria – respondeu.
- Mas vamos lá experimentar... – pedi.
- Eu tenho a certeza!
- Só experimentar – voltei a pedir. Pois virámos um bocadito num cartão e quase pegávamos fogo à farmácia.
- Mas o outro é mais! – disse o méne, logo. Okay, vamos lá à drogaria.
Efectivamente, apesar de apenas a 90%, era fixe porque era mais barato. Comprei duas garrafas de 25cl por 1,5€.

Pus-me depois a caminho e mal saí da cidade pedi a um casal francês para me levar na sua auto-caravana até ao quilómetro onde tinha ficado no dia anterior. Quando cheguei pedalei, pedalei, e curti bués! Tinha Vento pelas costas, o asfalto era fixe. Quando vi que faltavam 28km para Tan Tan, surpreendi-me a mim mesmo quando reparei que pensei que se faltasse mais não havia problema! Todavia, cinco quilómetros depois disto o pneu furou. Desta vez foi à homem. Fez mesmo pfiiiiiu! Parei, reparei-o, e segui até Tan Tan sem voltar a acontecer nada, o que, em si, foi uma vitória!

Parei num hotel de três euros mas acabei por ficar num de quatro e meio com internet. Tomei banho e quando saí do quarto estava a dar o Porto no bar do café, um bar com luzes dos anos oitenta cheio de gajos a fumar xixa. Vi a vitória de um zero do Porto sobre o Nápoles e depois fui dar uma volta pela cidade. Cheia de malta! Enfiei-me pelas ruas que me pareciam mais agitadas e parei para jantar uma sopa e umas sandes de peixe por menos de um euro.

Quando voltei ao meu passeio fui interpelado por um marroquino que falava espanhol. O gajo era simpático e estava numa loja de reparação de televisões onde estava  adar... o Benfica! Lá fiquei q ver a vitória dos mouros sobre o Totenhana À conversa com este rapaz que, com a mulher, trabalha meio ano seguido em Maiorca e depois está meio ano de férias.

De Tan Tan a Tarfaya era duzentos e tal quilómetros. Não querendo exigir demais de mim mesmo, pensei em chegar lá em três dias. Mas a verdade é que estava um Vento altamente, e decidi aproveitar. Parei aos vinte e pouco quilómetros para comer meio quilo de laranjas e depois segui até Khnifir, uma povoação cento e quinze quilómetros depois de onde tinha partido nessa manhã. Aquela terra era uma estrada de duzentos metros e restaurantes de peixe e hotéis à volta, nada mais. Fiquei num hotel de quarto euros e no dia seguinte parti para Tarfaya, onde estou agora, sendo que este texto está a ser escrito em vários locais.

O problema com os furos continua. Tinha publicado no facebook as minhas meleitas, e houve pessoal que disse para eu limpar bem antes e depois de reparar o furo. Nem me atrevi a contar que não só sabia desta óbvia necessidade, como também, a dada altura, meti uma pedra em cima do remendo para aquilo colar melhor, deixando toda a área cheia de poeiras. Contudo, quando saí de Khnifir, limpei bem o pneu, a parte de dentro da roda e a câmara, e tive na mesma um furo. Além disso, um dos furos foi depois do homem da loja ter reparado a câmara, e eu acho que ele se ia lembrar disso. Não sei mesmo que fazer... Ontem foi a mesma coisa. Não sei se devia fazer isto, mas ia enchendo e depois pedalava p’rai dez quilómetros até ser preciso encher outra vez. Até que não deu mais e tive de o reparar. Demorei bués porque os remendos que tinha comprado em Tan Tan eram muito grandes e descolavam mais facilmente. Cortei um ao meio, e dava melhor, mas quando eu enchia a câmara ainda saía ar! Como não estava a dar mesmo segui na mesma, e a verdade é que, apesar de tudo, só precisei de encher uma vez, passado p’rai vinte quilómetros, contrariamente ao que estava a acontecer até então. Tenho de tirar uma hora para limpar a bicicleta, que está cheia de areia. Iá, é outro problema, a areia deste deserto parece farinha, mete-se em todo o lado! Ontem, quando virei a bicla ao contrário para a reparar, ficou cheia de areia num dos travões. Pfff....

Fui presenteado por um pôr-do-sol sob os pequenos edifícios desta terra, quando cheguei. Dei umas voltas e encontrei o hotel mais barato, por três euros, onde fiquei. Conheci lá um belga que tinha conhecido os turcos de quem tinha ouvido falar, e que andavam de bicicleta. Pelos vistos tinham conhecido o casal franco-canadiano de quem também tinha ouvido falar por outras pessoas com quem se tinham cruzado, e estavam a pedalar juntos. Pedi ao belga o contacto, e estava a pensar em mandar mensagem e arrancar para Laayoune hoje, a ver se pedalava um bocado com eles. Mas, além de cinco pessoas talvez já ser bués, também não sei se já não partiram, e não me apetece andar atrás deles. Se calhasse, calhava. Assim, fico cá hoje de descanso e amanhã vou para Laayoune, onde também devo parar um dia, se conseguir ficar em casa de um couchsurfer que parece ser fixe.

Tive oito ou nove dias com o Joel, e depois disso tem sido uma viagem solitária. A minha mãe perguntou-me ontem acerca de diversão... a verdade é que diversão não é bem o termo para este tipo de viagem, parece-me. Pelo menos não por Marrocos. Do mesmo modo, se alguém me perguntasse se estava a adorar, não podia dizer que sim. Acho que é como se nos sentássemos à mesa e fôssemos obrigados a comer de tudo o que punham à nossa frente, em pequenos pratos, para caber mais variedade. Para podermos comer o leitão a seguir, primeiro tínhamos de comer um prato de farinha com sal. Depois do leitão, se queríamos comer o arroz de marisco, tínhamos de beber um copo de sumo de urtigas. E assim sucessivamente. No final, se nos perguntasse se adorámos o jantar, íamos dizer que tinha sido uma experiência única, coisa coisas altamente, mas com outras menos boas. Pelo menos para já é o que sinto. O pedalar, em si, não tem sido tão mau, mas quando comparo com a boleia percebo estas diferenças. A boleia ganha pela imprevisibilidade e fáicl deslocação de lugar fixe em lugar fixe, ao passo que a bicicleta ganha pelo esforço conseguido de cada quilómetro ser nosso e por, quer queiramos, quer não, conhecermos ainda mais a fundo um país.

Estou agora deitado numa daquelas peças de três pernas enormes que se usam para fazer um paredão. Conto passar o dia no café, sendo que aqui não me parece haver nada para ver, e conto tirar uma hora, como disse, para olhar pela bicicleta, apesar de não me apetecer nada...


12h02, d, 16-3-14 

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