domingo, 25 de maio de 2014

Entrada na Guiné-Conacri


Lá fora há relâmpagos e trovões a saldo. Está na hora da chuva. E eu estou aqui dentro, no quarto do Mohamed, a ouvir Lisa Ekdahl, com o computador ao colo, enquanto ele foi rezar. Estou, definitivamente, numa nova etapa desta viagem. E estou a adorar! O Senegal, ah Senegal, foi muito bom, mas agora percebo que foi fácil, muito fácil. África a sério? Sim. Mas não tanto, talvez. Se bem que, que sei, eu que estou ainda na Guiné-Conacri?
                
Ontem, aquele grande dia que, tanto me faz sentir inveja como pena do meu eu dessa jornada, parti de Saltinho com a ideia de mudar de país. Estava a quarenta ou cinquenta quilómetros da fronteira, e depois tinha Boke a setenta e poucos quilómetros daí. Daria para fazer tudo no mesmo dia? Daria. Se estivesse em Marrocos, na Mauritânia, Senegal... Mas aqui a estória é outra, aprenderia.
                
De manhã sentia-me um bocado em baixo, meio tristonho. Não estava a curtir muito a dificuldade de encontrar água ou o que comer, e questionava-me se seria assim daí em diante. Havia algo mais, mas não sei bem que era. Chuviscava, e pensava também no que faria quando começasse a chover à grande. Havia ainda algo mais, mas não sei... talvez aquela tristeza que aparece sem grande razão. Topei-a logo quando me senti irritável logo de manhã com algo que um gajo fez, já nem me lembro, o que quer dizer que não foi nada de especial.              

O alcatrão deixou-me a uns vinte ou trinta quilómetros antes da fronteira, quando dei o meu passaporte para o pessoal carimbar do lado da Guiné-Bissau. E depois também me deixou a estrada, pouco antes de chegar à Guiné.
- A fronteira é para ali, não é? – perguntei a uns militares que bebiam chá, apontando para a continuação da estrada de terra batida.
- Não, é para ali! – responderam, apontando para umas casas de telhado cónico de palha. Meio confuso, segui, e realmente vi um caminho, mas não podia ser aquilo.
- A fronteira é por aqui?
- Sim, é – responderam. Aquilo era um trilho pelo meio da floresta. Tão espetacular quanto incómodo. Mas que se lixe, vamos! Lá fui pelo rego até que vi uma bandeira parecida com a da França e assumi ser a fronteira. Olhei à volta e vi um militar, depois outro, numa casita sem janelas. Aliás, era um muro a toda a volta, um telhado de palha, uma cama e uma secretária. Entreguei o meu passaporte ao homem que, confuso não sabia bem que fazer. Ia aparecendo um ou outro para dar o seu bitaite e o gajo às tantas começou a escrever no passaporte. Fiquei um bocado de pé atrás com aquilo, até que ele lá desencantou um carimbo de dentro de uma gaveta da secretária. Coisas com carimbo são sempre mais credíveis.
                
Enquanto tudo isto se ia passando eu comia o meu almoço, uma baguete com uma lata de sardinhas e uma garrafa de água de litro e meio que um guarda me tinha oferecido. A fome apertava, e quando perguntei, do lado de Bissau, se havia restaurantes do outro lado da fronteira, um guarda disse-me “Sim há muitos, há muitos!”. Pois ele se calhar pensou que eu estava a perguntar do outro lado da fronteira tipo no país inteiro. No país inteiro realmente há bastantes. Não há muitos, mas há bastantes. Do outro lado da fronteira mesmo, é que não havia nenhum!
                
Despedi-me dos simpáticos senhores e pedalei um bocadinho vila dentro, até que encontrei uma senhora que vendia umas cenas tipo umas bolas de berlim sem açucar ou creme. Não era lasanha, mas achei que provavelmente não ia encontrar muito mais até fosse onde fosse que eu ia. Comprei dez, a pensar que ia ser isso o meu jantar. Continuei mato adentro, embasbacado com o cenário e com aquela estrada. “Então por isso é que a estrada era apresentada a tracejado no lonely planet”, pensei. Ainda encontrei uma senhora que vendia bolachas, mas só tinha francos da Guiné suficientes para um, que trouxe.
                
Estava com vários sentimentos ambivalentes dentro de mim. A tristeza da manhã permanecia, talvez exacerbada pela dificuldade em pedalar por aqueles lados. Ao mesmo tempo, essa mesma surpresa com todo o meu ambiente, também me deixava tão admirado, que não tinha como não traduzir isso por vezes num sorriso. Esse sorriso entrava dentro de mim e lá me amenizava. A estrada alaranjada estava a custar bastante. Subia e descia constantemente, e tinha de pedalar com cuidado entre calhaus e pedritas. Ao mesmo tempo, eu estava no meio da floresta. Mesmo no meio da floresta. Estava com alguma fome, tanto no estômago, como na mente, pensando que não sabia como me ia safar. Mas ao mesmo tempo sabia que algo haveria de acontecer.
                 
Quando vi o rio delirei. Tinha feito uns quinze quilómetros em p’rai hora e meia. Vi o rio ao longe mas nem me passou pela cabeça não ter ponte, e perguntei a um  guarda por quem tinha passado se se podia nadar. Ele, não entendendo a minha pergunta, até porque “nadar”, em francês, não deve ser “nadê”, disse que eu chamava o rapaz da piroga e ele vinha-me buscar. Aproximei-me então e lá vi o rapaz, lá ao fundo. Tinha à minha frente um belo cenário. A estrada descia com alguma agressividade e acabava no rio que, calmamente, seguia para a esquerda. Mesmo à minha frente uma piroga boiava, ao longe via um camião no meio da água, que mais tarde percebi estar abandonado sob um transporte. Do outro do rio casitas com telhado de palha.
                
Foi aqui que o dia começou realmente a virar. Foi quando estava naquela piroga, que o rapaz de t-shirt que já foi branca há muita terra atrás comandava, e olhava à minha volta, piscava o olho à Mónica a ver se não ia mesmo cair ao rio, e tocava ao de leve na água com as mãos, que comecei a apreciar a loucura daquilo tudo. Eu estava ali! Eu estava ali! No meio da floresta, com aldeias de dez ou vinte pessoas de vez em quando, de pessoas que vivem indo apanhar fruta! Eu estava ali! Saí da piroga, os putos acenavam, um ou outro choravam por ver um branco. Encostei a bicicleta, tirei as botas, as meias, os calções e a t-shirt e entrei! Livre! Se aquele rio me tinha começado a carregar as baterias quando o avistei, naquele momento, dentro dele, todo eu era outro. Apercebi-me, mais que nunca, que vivia um momento único.
               
Com a minha nova VIDA, deixei a aldeia. Não andei muito até que começou a chover. A primeira  chuva africana. “Tenho de parar no próximo sítio”, pensei. Virei à esquerda, e eis que dou com, sei-o hoje, Kissomayo, uma pequena aldeia. Abriguei-me debaixo de um coberto de palha, e a canalha rodeou-me logo, também o fazendo um senhor com cara de simpático, a quem perguntei se podia meter a minha tenda ali. Iam chegando mais putos com mangas, que me entregavam. O homem disse que ali não era bom, e levou-me para outro, que não só não tinha uma fenda no meio, como também tinha um plástico por dentro e tudo! Era o sitio perfeito! Apareceu outro a dizer que eu devia ficar à beira da polícia que estava ali ao fundo, mas disse que não havia problema.
                
Como que a fazer de parede tinha, só de um lado, uma mesa de lado. Com a bicicleta já abrigada, pousei os cotovelos na beira da mesa e fiquei a apreciar. Outros cobertos de palha estavam a ser feitos, ou estavam já destruídos. Árvores por todo o lado, e uma estrada que vinha da direita e me tinha visto chegar. Outra, mais abaixo, que vinha de Bissau, vim a saber. Putos. Quinze ou vinte putos a brincar. Chuviscava e eu percebi, neste instante, que estava numa nova fase desta viagem. E estava a adorar. Tinha começado o dia meio cocó, tinha tido uma ou outra mudança, um ou outro baque, e eis que estava a adorar cada segundo não obstante os pés molhados ou não ter perspectiva de jantar nem pequeno-almoço. “É por isto que eu viajo”, pensei. Pelo improviso, pela malta a ser porreira connosco. Até a chuva na testa me agradava, parecia difente. Sim, é água, simplesmente mas, para mim, a chuva em África, por mais igual que seja à da Europa, é diferente, sei-o agora.
                
Olhei para trás e, vendo as seis ou sete mangas num canto dos meus aposentos, lembrei-me do Dizzy, um vegano irritante que conheceram em Phuket, na Tailândia, três anos antes. “Espero que ele tenha razão e um gajo possa mesmo viver só de fruta”, pensei, achando que isso, as bolas de berlim e o pacote de bolachas seriam o meu sustento.
                
Montei a tenda e fui dar uma volta. Desci, segui uns metros pela estrada e um senhor chamou-me. Era o Youssouf, o chefe da polícia. Levou-me para o seu escritório, uma casita de barro também sem janelas, e sentámo-nos para ele apontar os meus dados. Chegou entretanto o Cond, o adjunto, um homem magro, com aperto de mão forte, e daqueles que entra a matar e depois acaba por ser um gajo simpático.
                
- Mas porque é que tu viajas, qual é o teu propósito? Queres fazer o quê? Passas aqui, e vais à tua VIDA!
- Sim, é verdade... eu viajo para conhecer... novos países, novas culturas... também para quebrar barreiras e estereótipos... por exemplo, muita gente pensa que África é muito perigoso. Eu gosto de ir aos sítios, apreender a minha própria realidade, e depois partilhá-la.
- África é perigoso?! O Ocidente é que é perigoso! – e continuou um pedaço sobre o facto de um gajo poder andar em África na boa e no Ocidente é sempre preciso papéis a toda a hora e cenas do género – Tu, por exemplo, estás aqui a falar comigo, mas no teu país estavas-te a marimbar para mim – aqui tive de travá-lo.
- Hei! Tu não me conheces! Não me conheces de lado nenhum! Eu não sou assim. Tu tens uma ideia das pessoas do Ocidente, que não é necessariamente verdade, e pensas que toda a gente é assim. Mas, para mim, uma pessoa é uma pessoa, seja aqui, no Ocidente, ou na China – e senti que aqui o homem aligeirou. Quase parecia que me estava a testar.
- Há algum sítio onde se possa jantar aqui? – perguntei ao Youssouf.
- Tens ali aquele restaurante – respondeu, apontando para o outro lado da pequena rua.
- Que é que eles têm?
- Ovos e café.
- Ah... pois eu queria algo que eu pudesse comer e fazer “aaahhh” – disse, com a mão no estômago. O homem achou piada a isto e disse que comeria com eles, o que para mim foi como se me tivessem dado oito quilos de ouro. Estava safo!

O Cond levantou-se, disse para lhe ir mostrar o meu hotel, e quando chegámos ele disse “Ah, estás bem”, como se eu estivesse realmente no Sheraton, e disse para eu descansar que depois me vinha chamar para comer. “Mas que pessoal é este?”, pensei.

Dormitei um pouco, enquanto uns putos do lado de fora ia chamando “porto, porto!”, aparentemente como se diz “branco” em Peul, e fugiam a sete pés quando eu simulava abrir a tenda, até que o Cond lá me veio buscar. Fora de uma casinha, uma senhora cozinhava com três grandes tachos à frenet, sentada num banquinho. À minha frente tinha uma travessa de arroz com um molho vermelho que dava para três pessoas comerem bem, e dois sacos de água potável. Comi tudo. Quando, no final, perguntei se tinha de pagar alguma coisa, o Youssouf disse “Não, ‘tás em África, isto é hospitalidade!”, enquanto, ao mesmo tempo, a cozinheira gritara um “Eh!”, como se eu tivesse perguntado se os tachos eram feitos de esferovite.

De barriga cheia deitei-me nessa noite, deliciado com o meu caro ser-humano.

Hoje acordei, desmontei a tenda, e fui ter com o Youssouf para trocarmos contactos. Fui ao “restaurante” e tinha acabado de dar a primeira trinca na minha sandes de omolete quando o chefe da polícia passou e disse “Pedro, vamos comer!”.

Tinha setenta e tal quilómetros até Boké, que seriam feitos à justa tendo em conta a estrada que abracei. Apesar do sobe e desce constante, e das inúmeras poças de água, fez-se melhor do que no dia anterior. Só que caí duas vezes! A primeira foi uma semi-queda. Um mero deslize do pneu de trás e fui ao chão, sem me aleijar em lado nenhum. Já na segunda, ia a mais de vinte à hora, falhou-me ali um milímetro na beira de uma poça de água, a roda da frente deslizou e fui de zorro. Rasguei os calções e a minha anca direita ganhou uma nova cor. Cor carne-viva. Mas tudo tranquilo. O mais importante é que a bicicleta continuava impecável. Muito me admirava a Mónica, portando-se como uma campeã apesar de pedalar sobre pedras bicudas e com tanta trepidação que poderia fazer qualquer parafuso saltar.

Estava nas últimas quando cheguei ao alcatrão de Boké. Já andava com um ouvido entupido e já bocejava, os sinais da canseira, que às vezes leva à Matadeira. Fui a um hotel perguntar o preço e o rapaz disse-me que era barato, vinte euros. “Não, obrigado”. Fui até ao centro, e procurava um sítio com internet quando falei com o Mohammed, que dizia não haver um. Perguntei-lhe onde podia comprar um cartão sim e ele levou-me a uma loja. Perguntei onde havia hotéis e ele disse que era lá ao fundo. Perguntei se podia meter a minha tenda em casa dele e ele disse que sim. Assim, sem mais nem quê.

Viemos para casa dele, deixei as cenas no seu pequeno quarto e fomos ao rio para eu tomar banho enquanto ele, por sua iniciativa, lavava a minha roupa. Um muçulmano de trinta e cinco anos que reza cinco vezes ao dia e que, ao que parece, realmente pratica a sua religião.


22h03-3ª-20-5-14

Boké, Guiné-Conacri

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