Como queria ir ao Mónaco, arranjei sofá em Antibes, ali pertinho. De Génova cheguei a Antibes sem problemas, mas acabei por não ir ao Mónaco...
O Marco deixou-me numa estação de serviço que era também o sítio aconselhado no hitchwiki. Estive aí uma horita, apanhei uma boleia, que me deixou a uns cinquenta quilómetros. Não se passava muito nessa, mas não demorei mais de meia hora a arranjar boleia até perto da fronteira. Aí, mal cheguei, a polícia que lá estava a lanchar ou a passar tempo, vendo-me, perguntou-me se eu estava à boleia.
- Sim, mas não vou para a estrada, porque sei que é ilegal, não se preocupem – respondi. Mas pelos vistos aquilo que eu pensava ser tranquilo era aquilo que eles não queriam que eu fizesse, que era falar com o pessoal.
- É que se falas com as pessoas elas depois chamam a polícia – disseram-me, aconselhando-me a ir para a saída com um sinal. Eu fingi que tinha percebido e que aquilo não era uma estupidez e fui para lá. Até, claro, que eles bazaram, e voltei para o mesmo sítio. Eu estava na zona de restauração. Estava um bom dia, solarengo, estava a correr-me bem a boleia e não estava muito longe. Tanto que tinha pensado ir até ao Mónaco, dar uma vista de olhos naquele país de dois quilómetros quadrados, e boleiar posteriormente para Antibes.
Nisto apareceram dois rapazes em fato de treino que iam comer qualquer coisa. Interpelei-os, disseram que à partida não havia problema, e eu lá fiquei à espera. Quando voltaram, disseram que o carro era da empresa e não sei quê, que só me podiam levar até ali não muito longe. O gajo era português, tinha ido viver para a França com quatro anos. Eu disse “‘Tá tudo” e seguimos.
Demorámos menos que pouco a avançar da conversazita de circunstância para os problemas que afectam verdadeiramente a VIDA do Filipe. é que o rapaz de trinta e três anos viu no facto de eu ser psicólogo uma oportunidade de ouro de desabafar tudo que p´ra lá ia.
- Pá... tenho agora uma cena pá... Andava com uma gaja, e não é que a gaja me fez um filho?... – começou por dizer, com o seu sotaque francês. O Filipe encontrava-se num ponto sensível na sua VIDA. A nível profissional tudo lhe corria bem – tinha já trabalhado alguns anos a poupar mais de três mil euros por mês, e naquela altura tinha começado há pouco a sua empresa de importação de carros, que ia no bom caminho. Mas a nível emocional, estava ali uma torrente que o deixava completamente abananado. Tinha tido uma relação com uma francesa que era frígida mas que lho escondeu durante anos.
- Eu sentia que ela reagia ao sexo de uma forma completamente diferente das outras raparigas, mas não sabia do que era... e pensava se era um problema meu. A verdade é que ela não tinha prazer nenhum no sexo... – dizia-me. Contou-me que essa rapariga tinha tido relações com o seu tio quando esta era ainda uma criança e que isso teria de estar na base de tudo – Mas agora eu não a quero ver mais... pá ela fez-me muito mal... Mas agora temos uma criança juntos, tenho um filho... – lamentava-se. Gostei do gajo, e gostei da sua frontalidade e honestidade, dizendo-me, por exemplo, que estava com um problema de líbido, não a conseguindo levantar... O que é uma cena que muitos pseudo-machos que andam p´raí nunca admitiriam.
Tinha-lhe dito que queria ir para o Monaco. Ele esqueceu-se, mas o que é certo é que não havia uma saída onde desse para eu ficar. Por isso fomos quase hora e meia à conversa. Não lhe dei propriamente conselhos ou algo do género. Até porque ele parecia saber exactamente o que precisava de fazer, acho que só precisava de alguém que o ouvisse e que lhe dissesse que o que ele sentia e precisava fazia perfeito sentido.
Com um abraço despedimo-nos, e ele deixou-me ali pertíssimo de Antibes. Muito mais perto do que eu pensava. é que ainda tentei boleiar, só para perceber, uma horita depois, que estava a cerca de uma hora a pé. Comi qualquer coisa, fui à net num McDonalds que encontrei ali e mandei umas mensagens ao Hassan, que me receberia nessa noite.
O gajo pareceu-me boa onda pelas mensagens, e confirmou-se. Encontramo-nos no centro daquela pacata e agradável vila, e fomos para o seu apartamento. Ora eu estava a pensar ficar lá uma noite e no dia a seguir acordar de manhã, boleiar para o Monaco, quarenta e quatro quilómetros para Este, e daí para Montpellier, a trezentos e cinquenta quilómetros do principado. Mas o Hassan estava convencidíssimo que eu ia ficar duas noites, e estava a explicar-me o que tinha de fazer no dia seguinte, por exemplo, quando ele não tivesse em casa, como abrir a porta e não sei quê, que eu não tive coragem de lhe dizer que vinha só mesmo passar a noite, e acabei por ficar duas noites.
O Hassan é um marroquino que está na França há alguns anos. Não me lembro de quantos, mas os suficientes para ter um passaporte francês. Demo-nos bem de imediato. Perguntou-me que música queria ouvir, deixamos o som rolar, sentamo-nos com um copo na mão e fomos falando, enquanto não chegou o seu amigo. O Hassan tem das VIDAS amorosas mais complicadas que já conheci. “Namora” com uma polaca que tem um outro namorado. Está mais ou menos apaixonado por uma sueca que também namorava com um outro rapaz com quem entretanto acabou (sem o Hassan saber, porque não quer perguntar, se foi por causa dele), que o vinha visitar daí a dois dias. E acima de tudo, e principalmente, “tem” de se casar com uma marroquina.
- Como assim?
- Os meus pais exigem-no...
- Mas... é a tua VIDA, certo? – perguntei, meio a medo de medo de me estar a meter onde não era chamado.
- Pá eu tenho esta maneira de ver as coisas que acho que tudo o que eu tenho e sou o devo aos meus pais, e por isso é assim – respondeu, calmamente, sentindo eu que não era o Hassan que estava a falar, mas a sua cultura. Senti uma revolta dentro de mim a querer falar, mas ele na verdade não me tinha perguntado nada, eu tinha acabado de o conhecer, fiquei-me por ali... sem saber que mais tarde a conversa seria outra...
Entretanto apareceu o Youssef, seu amigo também marroquino e também agora francês. Ficámos à mesa um par de horas a falar de Marrocos, daquela cultura, e do sistema político que têm, até que fomos para um bar perto do mar onde ia tocar a banda preferida de covers do Hassan, The Bla Blas. Mal estive com ele lá dentro. íamos dançando, saltando, falando com este e aquele, dentro e fora do bar, foi uma noite de caos e loucura, mesmo como eu gosto.
O Yuoussef só ia ficar “só uma horita”, mas acabou por ficar até ao fim, e levou-nos a casa. Já não sei a que propósito, sentamo-nos à mesa, os dois de tronco nu e t-shirt na cabeça, e começamos a falar daquela imposição familiar acerca da pessoa com quem ele casaria. Apesar de não me lembrar muito bem, suspeito que tenha sido eu a puxar o assunto. Não estava nada à espera da sua reacção. é que o Hassan começou a chorar. Não aos berros nem a soluçar, mas contava-me a sua cena com um desespero e peso esmagador latente, com as lágrimas a escorrer pela sua cara. E eu senti aquele meu novo amigo como um menino de dez anos, que não sabe bem o que fazer, que sente que algo é correcto, mas que não consegue fazê-lo pelo medo da repreensão (imaginada) fatal do seu pai. Eu próprio senti, através das suas palavras, a potência das palavras do seu pai. Imaginei aquele tipo de relação em que o pai a abanar levemente a cabeça com cara de desilusão seja dez mil vezes pior do que uma coça.
Tentei ajudá-lo, não sei se da melhor forma, confesso, porque um gajo sabe lá como é que a cena é realmente. E é certo que o tentei ajudar com conselhos nada longe da minha própria maneira de ver as coisas...
- Se tu fizeres isso para agradar os teus pais, vais casar-te com alguém por quem não estás necessariamente apaixonado... tens esses sentimentos pela polaca, pela sueca, e que terás por outras pessoas que vais conhecendo, até que os terás de uma forma que fique, imagino... e depois vais querer ficar com essa pessoa, porque o sentes, e porque ela o sente da mesma forma, se tudo te correr bem. Mas e calares isso tudo e encontrares alguém com quem talvez passes o resto da tua VIDA, para agradar a um coração que não o teu nem o dela, vais sofrer com isso... e até ela vai sofrer com isso, porque às vezes quando o pessoal faz disto, gera-se um ressentimento que ocupa no coração o lugar que o amor devia de ocupar – disse-lhe com a mão no seu ombro, a ver as suas lágrimas deslizarem como se alguém lhe tivesse morrido. Não queria instaurar a confusão nem a discórdia, tampouco sou assim importante, mas também não consegui ficar impávido e sereno ouvindo alguém planear escapar dos seus sentimentos assim. Mas claro, não lhe disse nada de novo...
Na manhã seguinte acordei lá prás onze e tal. “Hei pá, tenho de ir ao Monaco”, pensei. Tomei banho, arranjei-me, e a muito custo caminhei mais de uma hora até um sítio que me parecesse bom para a boleia. Ainda tentei uns cinco minutos, mas senti que a qualquer momento ia morrer ali naquela valeta, e voltei para trás, para mais uma hora e tal de tormento caminhante. Ainda por cima, bem ao meu estilo, já não sabia qual era a casa dele, e andei perdido outra hora. Ao menos conheci aquela terra...
O Hassan chegou, passámos o serão a ver Curb Your Enthusiasm, comemos uma cena que parece uma pizza enrolada, e assim foi. Tudo tranquilo.
Na manhã seguinte despedimo-nos, e eu parti em direcção a Montpellier, onde tinha um sofá à minha espera.
terça, dezassete e cinquenta e nove, vinte e dois de novembro de dois mil e onze
Vale de Cambra, Portugal
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