quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Huei


No dia 27 de Julho apanhei o autocarro para Huei. A viagem fez-se bem, e passou-se algo que me deixou a pensar...

Mal entrámos, tinha ouvido um inglês a contar certo episódio. Achei que não tinha percebido muito bem, mas não fiz caso. Ele não estava a falar comigo. Quis o destino que, umas horas depois quando parámos para fazer a pausa, eu e o gajo tenhamos encetado uma conversa. A dada altura o gajo diz que tinha uma mota que comprara por duzentos dolares, e que fizera uns arranjos e uma pintura por mais não sei quanto. Tinha-a deixado em Hoi An.

- Por quanto a vendeste? – perguntei.
- Pá a cena é que é o primeiro veículo de que já fui dono, por isso não a consegui vender... levei-a até ao fundo da vila, à beira-rio, andei mais um pedaço até uma zona onde ninguém vai, arranquei o motor de arranque [destruiu-o, não sei se isso se faz por arrancar ou cortar uma cena qualquer] e cortei os fios e deixei-a lá – respondeu. Assim, sem mais nem menos.
Ter estado na Finlândia foi uma experiência que me tornou um gajo mais aberto do que era na altura. Vim com a filosofia do “é a cena dele” que, basicamente, tem a ver com não julgar os outros, porque em primeiro lugar muitas vezes julgamos comportamentos ou atitudes que no fundo não fazem mal a ninguém, e em segundo lugar, nem sempre sabemos exactamente o que é que se passa verdadeiramente e as razões para determinada acção. Acho um bom princípio, mas acho que já o usei em demasia, por vezes. E este é um caso desses. Porque se calhar há uns anos dizia “é a cena dele”, mas hoje percebo que às vezes, há cenas que são mesmo estúpidas. E isto é estúpido porque este gajo podia dar a mota a um vietnamita qualquer que tivesse achado simpático, ou até a um com quem nunca tivesse falado de todo. Este vietnamita ou a usava como um veículo que melhoraria a sua qualidade de VIDA substancialmente ou, mais provável, vendia-a e fazia, assim de repente, mais dinheiro do que faz em três meses. E é por isso que estas merdas, por mais românticas que possam parecer, são estúpidas. Ok, o gajo tinha p’rai 22 anos. Isso pode ajudar a perceber o comportamento, mas não o desculpa.
E isto vai cair directamente naquela casa onde tenho vindo a morar nos últimos pares de anos. É a casa da reflexão acerca das posses. Nessa moradia quedo-me muito a pensar no valor que damos a objectos. Este gajo é o rei, porque ele foi capaz de dar um valor ridículo nem sequer ao objecto, mas à ideia do mesmo, sendo que ele já não o tem.

Depois entrámos outra vez no autocarro e seguimos para Huei.

Tinha o contacto da Kirsten, que me albergaria em Huei. A Kirsten é uma rapariga (de 38 anos) que a Rebecka (que me albergou em Saigão) conheceu numa formação qualquer da empresa onde trabalhava. Ela tinha-me dito que tinha uma amiga fixe em Huei que me poderia albergar. Mas depois essa amiga afinal estava na Alemanha. Mas ok, havia ainda a Kirsten, que estava disponível.
               
Quando cheguei fiz um bocado de tempo na internet num café enquanto esperava por ela, que estava numa cena qualquer. Quando me voltou a ligar, pus-me a caminho e fui ter com ela. “Queres alugar uma bicicleta”, tinha-me perguntado, ao telefone. Disse que sim, porque achei que era mais conveniente para ela do que para mim (para não ter de caminhar ao meu lado) mas fiquei um bocado naquela porque estou escaldado, ainda que levemente apenas, de acordar em comprar cenas sem saber o preço. Mas foi uma boa decisão. É a melhor maneira de ver a cidade, e ficou-me por um euro por dois dias. Além disto, ela vivia a uns vinte minutos (de bicicleta) do centro.
               
Trocámos aquelas palavras iniciais, fomos buscar a bicicleta, e fui-a seguindo até casa. Curti a viagenzinha. Huei não é muito grande, mas é uma cidade em todos os sentidos. Ainda assim, apenas a alguns quilómetros do centro, parecia que estava numa vila bastante isolada. Quando chegámos passamos duas horitas na sala à conversa.
               
Uma cena que estranhei logo no início foi quando a Kirsten sugeriu comprarmos um par de cervejas, e disse, assim como nota de rodapé, que tinha de ter cuidado onde as comprava porque afinal de contas ia trabalhar ali dois anos e não sei quê, e os vietnamitas cochicham. Achei aquilo um bocado paranóico. E isso depois enquandrou-se um bocado mais no quadro global quando voltou a dizer cenas tipo “estamos a ser observados sempre” ou que eles tinham insistido que ela tivesse uma empregada, para que esta pudesse reportar para os seus chefes (ou fosse quem fosse) o que se passava e não passava. A cena é que ela não me pareceu uma pessoa paranóica, e por isso mesmo estas cenazinhas pareceram um bocado assim fora de carácter. O que até pode querer dizer que é verdade...     

A Kirsten até falava e tudo mais, mas confesso que a achei um bocado aborrecida. Não sei bem porquê, mas não demos o clique. Pareceu ser uma daquelas pessoas que leva o seu tempo a deixar o resto do pessoal entrar no seu círculo. Isto é estranho e difícil de explicar, mas às vezes uma pessoa pode ser o mais simpática possível, e até falar bastante, e ainda assim nós sentimos que estamos do lado de fora.
               
Chegou ao Vietname só há dois meses e trabalha como conselheira numa ONG alemã que trabalha para desenvolver os cuidados com crianças com deficiências.Um emprego daqueles que efectivamente torna o mundo um lugar melhor. Antes disto passou dois anos no Peru a fazer voluntariado e dois anos no Tajiquistão num trabalho “à séria”. Quando chegámos a sua casa, primeiro disse “uau”, e depois perguntei-lhe com quantas pessoas vivia. “Sou só eu”, respondeu, não necessariamente para o meu espanto. O espanto apareceu foi quando, no dia seguinte, me disse que pagava 400 dolares (280€) por aquela casa de três quartos, jardim e dois andares. E acho que está aí um bom exemplo do que referi no parágrafo anterior. Geralmente pergunto ao pessoal quanto paga de renda, porque acho interessante ver as diferenças de país para país. Com a Kirsten não tive o à-vontade para o fazer, foi ela que acabou por o dizer. Disse-me isto, no dia seguinte, quando falava de uma conversa que tinha tido com a sua empregada. Esta tinha-lhe perguntado quanto era a renda, e quando a Kirsten respondeu, a empregada perguntou se [esses 400$] eram para meio ano, ou para um ano... Pode ser que, como a Kirsten também referiu, a empregada dela nunca tenha arrendado uma casa e isso não seja comum com os vietnamitas, e daí não faz ideia dos preços do mercado. Mas também pode ser que esse preço que para nós europeus já é ridículo, seja ainda mais ridículo quando é um vietnamita a pagar.
               
Falou-me do Tajisquistão e mostrou-me fotografias esplendorosas que me deixaram com vontade de visitar o país. E isso foi uma opção na minha mente durante algumas horas, não realmente como uma opção tomada de bom grado, mas como uma possibilidade. É que não posso tirar o visto russo fora de Portugal, a menos que seja um visto de trânsito. Então neste momento estou indeciso entre enviar o meu passaporte pela DHL para Portugal, com a devida ficha preenchida, pedir a alguém para ir tratar da cena e mo enviar de volta, ou pedir um visto de trânsito em Xangai. A primeira opção é melhor, porque posso depois ir nas calmas, mais ou menos, e boleiar na Rússia. Só que o passaporte tem de fazer duas viagens entre a China e Portugal, e pode perder-se pelo caminho... e isso matava ali logo a minha viagem. A segunda opção é mais segura, mas para ter o visto de trânsito tenho de apresentar os bilhetes todos que me vão levar de onde quer que eu entre no país (Mongólia) até onde quer que saia (Ucrânia). Estou ainda em deliberação.
               
A dada altura ocorreu-me que, se eu a achava uma pessoa um bocado aborrecida, ela também me podia achar. Foi estranho pensar nisto. Isto porque me considero um gajo porreiro e interessante, e nem me passa pela cabeça que alguém me ache aborrecido. Estou a ser sincero, não curto falsas-modéstias. Mas a verdade é que, da mesma maneira como eu não senti um clique, ela também, concerteza, também não o sentiu. Este pensamento que se aventurou a ganhar forma na minha mente trouxe um bocado mais de humildade ao resto do ser.

No dia seguinte acordei, peguei na bicicleta, e fui à cidadela. Fui ligeirinho, nas calmas a apreciar a brisa e as vistas. Fui primeiro tomar um café enquanto navegava na internet uma horita. Depois atravesei a ponte, entrei nas muralhas da cidade velha e dei a volta toda. Curti muito. Demorei quase uma hora sempre a andar, ainda que devagar. Apesar de ser dentro das muralhas, era uma autêntica vila, não era tipo daqueles sítios só com casas luxuosas e cafés a dois euros. Por isso mesmo fui passando pelos locais, pelas suas casas, pelos putos, e pelos velhos. Curti.
               
Posto isto entrei na cidade proibida. Tem cerca de 200 anos, e era onde moravam os imperadores. Está em reconstrução, pois teve muito que foi destruido recentemente. Mas tem palácios e jardins muito fixes. Só não curti tanto porque estava com um ouvido tapado. Parece estúpido, mas faz sentido. Como eu não estava bem, não posso dizer que tenha rejubilado com o sítio. Era como se tivesse o ouvido entupido. Não foi fixe, mas passou passado p’rai duas horas. Além disso estava um calor de todo o tamanho e eu estava um bocado cansado. Engraçado como situações externas, como uma dor física ou o clima (como aconteceu em comigo em Paris, da primeira vez que visitei) podem afectar a imagem que temos de determinado sítio.

Andei por aí um bom pedaço, e depois continuei com a bicicleta meio à sorte pela cidade do mesmo lado do rio. Curto a cena vietnamita de ocuparem os passeios com malta a beber chá ou cotas a jogar damas, o que até nem é exclusivo no sudeste asiático. Depois estive um bocado na net e voltei para casa, não sem antes jantar num barraco de rua.
               
Estava um bocado naquela, porque não me apetecia estar a fazer conversa com a Kirsten, e acho que até me demorei mais um pedaço na cidade por isso mesmo. Mas acabou por ser um serão porreiro. Quando cheguei ela não estava. Liguei-lhe, ela disse para ir ter com ela a um restaurante ali ao lado. Quando cheguei encontrei-a com a Lyn a comer numa barraquinho. Cabra à vietnamita – demais! Além disso outra cena que curti bué foi queijo de tofu! Já tinha ouvido falar de leite de soja, mas nunca tinha ouvido falar de queijo de tofu. Cheirava mal que tolhe mas isso, já se sabe, só quer dizer que o queijo é muita bom.
               
A Lyn é uma rapariga muito simpática que trabalha num hotel de 5 estrelas na cidade, e é professora de vietnamita da Kirsten. E são amigas também.
               
Daí fomos tomar café e ficámos lá um horita.
               
Quando voltámos a casa, sem sequer fazer por isso estive três quartos de hora à conversa com a Kirsten na cozinha e a minha opinião de si acabou por mudar. Continuo a achar que, eventualmente, tenhamos maneiras de ser e modos de estar diferentes, mas isso não quer dizer que ela não é uma gaja porreira. E, do mesmo modo, isso não é algo pejurativo, pois cada um é cada qual, ao passo que dizer que ela é aborrecida, é, bem, pejurativo. E foi uma anfitrião porreira, claro, tenho de dizer.

No dia seguinte quando desci ela estava no alpendre a ter lições de vietnamita com o seu outro professor, enquanto comiam fruta e bebiam chá. Ele perguntou se não me queria sentar, e bebi um chá com eles e comi daquela fruta maravilhosa cujo nome não recordo. Depois disto, peguei na bicicleta e fui dar uma volta. Na zona onde a Kirsten vive é onde estão os mausoléus dos imperadores, e foi a isto que me dediquei por um par de horas. E claro, como no dia anterior, a etapa final do ciclismo foi andar meio perdido entre os vietnamitas. Adorei passar por estradas de terra, pontes de onde se via a malta a trabalhar nos barcos, caminhos onde as senhoras, com os seus chapéus cónicas, se entregavam à actividade.

Depois voltei, despedimo-nos, e lancei-me. Autocarro para Hanoi.

20h45-4ª-3-8-11
                                           algures entre Hanoi e Vientiane

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