quarta-feira, 6 de abril de 2011

Iraque - Irão (Texto 1 de 3 publicados a 6 de Abril)


O Brian tinha decidido ir comigo até Sulaimainia. Queria ir para Soran, resolver um assunto urgente que tinha do foro privado que não vale a pena revelar, mas a sua motivação sofria diferentes perturbações, e acabou por decidir vir comigo. Não tinha enviado pedido nenhum no CS, mas a cena correria bem, como (quase) sempre corre. Despedimo-nos do Andy e metemo-nos à boleia. Brinquei um bocado com o destino aí, porque não acordei cedo, confiante de que, como era perto, não era preciso acordar muito cedo.
               
Apanhámos uma boleia, mas o méne, que até queria ajudar, passou o corte onde queríamos ficar e levou-nos tão para a frente que ficámos à mesma distância. Fixe. Depois fomos caminhando, e eu via que o Brian não era feito p’ráquilo. Não que seja preciso ser feito de uma matéria muito especial, mas ele trabalha, ganha muito bem, não precisa mesmo de andar à boleia. Mas paciência, eu não o tinha convencido. Depois começou a chover e tal, para adoçar a sua experiência. Caminhámos um pedaço, uma boleiita. Um velho que andou connosco um bocadito e depois nos deixou. E a chiva a cair. Eu tinha o meu papelito, mas confesso que não lhe depositava muita confiança. O gajo que o escrevera demorava muito tempo a ler o meu inglês e transformá-lo em curdo, e fiquei a imaginar se não estaria escrito “preciso de maçãs e sou de Portugal”.
               
O velho lá nos deixou e continuámos. O Brian ia dizendo “vamos mas é sair da cidade”. Coisa que eu queria, mas se fosse um carro a nos levar, melhor ainda. Eventualmente um méne parou. Fez a mesma cena que o primeiro. Levou-nos demasiado. Mas ainda assim ficámos mais pertito um bocado. Para dizer a verdade, acho que ficámos exactamente onde devíamos ficar. Por ter aparecido quem apareceu a seguir. O materializar da “fixeza”. Caminhámos um pedaço e alguém nos disse “olá”. Eu não vi, e o Brian disse “olha vai ali àqueles gajos, que nos cumprimentaram”. Eles esperavam pelo verde, no semáforo. Aproximei-me, mostrei o meu papelito, os gajos levaram o seu tempo a ler, apesar das buzinadelas lá de trás, estacionaram mais à frente e o condutor saiu do carro. Falou em táxi, eu disse que não tinha dinheiro. Pois ele faz o sinal de dinheiro, esfregando o indicador e o polegar, aponta para ele próprio, e depois para mim. Será que ele estava a dizer que eu pensava? Parou um táxi, e entregou-lhe algumas notas, enquanto dizia algo. Depois entregou-lhe uma nota de 5000 dinars (5 dólares) em separado. Agradeci com um abraço e um sorriso e entrámos no táxi. Só que ele ia para todo o lado menos seguindo as placas que diziam Sulaimainia. Confesso que comecei a ficar meio desconfiado. “Tu queres ver que ele vai ficar com o guito todo e deixar-nos num sítio qualquer?”. Nada disso. Levou-nos à central de táxis, deu os 35000 dinares ao taxista e bazou. Quer dizer que o outro senhor nos deu 40 dólares. E não nos conhecia de lado nenhum. Cenas.
               
Chegámos a Sulaimainia sem saber onde ficar. Um sentimento já nada desconhecido. A prioridade era procurar internet e, também, ver se havia algum edifício abandonado porreiro onde pudessemos passar a noite. O Brian estava preocupado em arranjar cervejas o algo assim.
               
Fomos caminhando e encontrámos net. Mandei mails em massa para as únicas 13 pessoas de Sulaimainia no couchsurfing, na esperança de receber uma chamada de um deles. Aconteceu. O Lucas ligou, e disse que aparecia passados quinze minutos. Altamente! Demos uma olhada ao perfil do gajo, mas não dava para ver grande coisa acerca de quem ele era. O Brian estava preocupadíssimo com o facto do Lucas beber ou não, e mandou o bitaite de “e se bazássemos?”, enquanto esperávamos lá fora. Quando eu disse que “um gajo não faz isso, dizer que espera e bazar”, ele disse que estava a brincar.
               
O Lucas apareceu. Falava bem inglês mas pausado, pensado, precisava de mais prática para a fluência, mas entendia-nos perfeitamente e expressava-se bem. Perguntou se estávamos com fome e levou-nos a jantar a um restaurante no topo de um hotel onde trabalhavam duas raparigas ucranianas de excelente aparência. Quando eu lhe perguntei, subrepticiamente, se tinham algo por seis dólares, ele disse para não me preocupar com o preço. Para dizer a verdade, o Lucas pagou tudo, os dias todos. Desde que entrara no Curdistão não tinha ainda gasto dinheiro, porque o Andy se tinha oferecido para pagar algumas cenas, o Brian outras, e porque me coibi de consumir noutras situações. Com o Lucas foi mesmo por insistência sua. No dia seguinte o Brian pagou, sem o Lucas se aperceber, uma rodada de cervejas, e o méne, não ficou ofendido, mas meio agastado.
               
Isto não são empréstimos. Mas de certa forma, acho que o mais importante é não nos armarmos em “ai não posso” quando chega a nossa vez de contribuir. Não digo com pagar tudo a toda a gente, por exemplo, mas começa com cenas tão simples como mostrar-se disponível, seja a dar uma boleia, a pagar aquele bilhete de autocarro a alguém que precisa mesmo, ou a sorrir a quem sorrisos quer ver.

O Lucas tem trinta anos e é advogado. Manda a sua pinta, tem um sorriso cativante e charmoso. Foi muçulmano praticante até aos 23 anos. Nessa altura começou a aperceber-se da estupidez à volta deste tipo de devoção, entregou-se a si mesmo, em vez de se entregar a alguém que não vê. “As pessoas privam-se de coisas para ir para o céu. E se viverem a VIDA como querem viver, vão para o inferno. Se é assim, eu prefiro ir para o inferno. Porque não sei se ele existe ou não. Mas sei que a VIDA existe, e prefiro que o meu céu seja enquanto ‘tou a viver”, disse-me. Eu próprio não o diria melhor. Foi mais ou menos neste momento que eu vi que este gajo era fixe. É que crescer num ambiente religioso e ter a coragem de pensar por si mesmo e decidir ir contra a maré é algo, a meu ver, admirável. Especialmente em ambientes que vivem as coisas de uma forma mais extremada, ainda que tudo menos extremista, que a nossa, em Portugal.

Houve um momento daqueles. Daqueles momentos em que eu olho à volta e penso “eu ‘tou mesmo aqui méne...”. Acabámos de jantar. A conversa andou muito à volta de assuntos do foro da Afrodite. O Brian está no Iraque há algum tempo e às vezes por mais engodo que um gajo tenha o peixe não morde. Assim sendo, e tendo o Lucas referido um certo bar de meninas chinesas, o Brian não se fez rogado e ‘bota caminho. Pois esse momento foi eu estar a baber uma cerveja no Iraque (não pensei que o álcool fosse legal), num bar de meninas chinesas, com música curda aos berros e três ou quatro homens a dançar como se tivessem com um ataque epiléptico. Um deles veio fazer-me uma surpresa... veio dançando, discretamente, deu a volta à nossa mesa e quando dou por ela o gajo abraça-me docemente por trás e dá-me um longo beijo na bochecha. Eu não reajo agressivamente nem nada, pois sei que deve ser uma cena local, quiçá exagerada pelos doces de baco. O Lucas explicou ao gajo que eu era da Europa e o méne desfez-se em desculpas, pois pensava que eu era iraniano. “Hum, ok, não há crise amigo, a sério, não te preocupes.”

Esse bar foi interessante. Sou quase capaz de jurar que a “chinesa chefe”, umas entre as outras de meia idade, nem por isso atraentes mas simpáticas, disse, logo no início, que “esta senhora está no menu”. Tendo lá ido outra vez no dia seguinte, parece que não se coaduna muito com o estilo. Mas naquele momento estava cem por cento convencido que foi isso que ela disse. Elas gostavam tanto do Lucas porque ele, sendo advogado, tinha-as ajudado imensamente no processo de obter permissão de residência no país. Tudo legal, claro. Mas elas precisam de um advogado com elas. E num país surpreendentemente caro como me pareceu ser, um advogado para uma chinesa recém-chegada é algo que não se encontra debaixo de uma pedra.
               
Passámos uns dias agradáveis lá. Numa noite fizemos uma fogueira (uma entre tantas, sendo que é a tradição). O último dia foi muito fixe. Era para ir na quarta mas deixei-me ficar até quinta. O Brian entretanto foi embora, tendo nós passado o dia eu, o Lucas e o seu amigo, que não falava muito inglês mas até entendia, e era um gajo porreiro. Fomos para as montanhas. Comprámos três garrafitas de Efe e ficámos lá, ao lado do rio, a conversar e a ver o pessoal a festejar e dançar as danças tradicionais  do curdistão. Muito fixe, grande cenário. Ainda mais fixe foi, já um bocadito entrado entrar no carro, pensar que íamos para casa e de repente vejo um lago muita fixe, com o pessoal a dançar e a curtir. Foi muito porreiro, das melhores paisagens que vi na viagem até agora. O elemento surpresa também ajudou.
               
Quando voltámos fomos ao restaurante do hotel como na primeira noite, beber um copo e comer qualquer coisa. Não gostei de como um grupo de homens de meia idade, provavelmente ricos, que lá jantava, tratava a ucraniana. Além do típico aperto de mão que não descola havia as tiradas “és tão boa”. Quando ela passou pela nossa mesa disse para ela não levar a peito, que eles estavam bêbedos e não sabiam mais do que aquilo. Disse isto a ela, claro, e discretamente, sem armar estrilho. A gaja já deve estar mais do que habituada, pareceu-me.

A seguir ao jantar tivemos um grande momento curdo, para mim. Fomos a outro restaurante, entramos e fomos ter à sala dos fundos. Lá, a porta escancarou-se para outro mundo. Os amigos dele, sentados à volta da mesa a beber e tocar instrumentos musicais da região, por mais de duas horas, muito fixe. A dada altura, que riso, disse que também podia cantar algo português, eles calaram-se atentos e cantei “ó rama, ó que linda rama”, ahah! Aplauso, aplauso!
               
No dia seguinte acordei, bota Irão!

10h75-2ª-28-3-11
Teerão, Irão

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