Estou no autocarro de Kerman para Zahedan, a última cidade antes do Paquistão. Esperam-me oito (eventualmente) longas horas. Vim hoje de Sirjan, cidade que onde nunca planeei estar, muito menos dormir, e vim ontem de Shiraz.
Shiraz é uma cidade muito fixe. Vale a pena visitar. Cheguei lá no dia 31, quinta-feira passada. Estava ainda a pensar em ir a Yazd mas, mais tarde, olhando para o mapa, decidi não ir e seguir de Shiraz para este. Acho que foi a melhor opção. Estava a pensar nisso ontem... acho que o melhor indicador de esta viagem estar a ser tudo o que eu esperava e mais é o facto de achar que saí exactamente no dia certo de Portugal. E, de cada vez que vou de cidade para cidade, também me parece que é o momento exacto em que o deveria fazer, por curtir sempre o que acaba por acontecer. Claro que, imagino, se tivesse saído noutros dias diferentes, diria o mesmo. O que quero dizer é que não dei por mim a encolher os ombros e pensar: “que cena, isto foi mal pensado”. Ainda que possa ter, de vez em quando, uma ou outra situação menos agradável. Assim de repente não me lembro de nenhuma. Ainda que hoje talvez tenha de dormir no terminal de autocarros, mas já chego aí.
Quando cheguei a Shiraz apanhei um autocarro para o centro da cidade, e uma vez aí, liguei ao Ali, o meu anfitrião, amigo do rapaz que me albergou em Teerão. Os pais desse mesmo rapaz são, também, os donos da casa onde o Ali vive, não pagando renda. O Ali apareceu com o seu primo, também Ali, e dirigimo-nos para sua casa. Não era exactamente luxuosa, mas isso não é algo que me tenha apoquentado alguma vez. Ao que me parece, as casas iranianas não têm nada a ver com as nossas portuguesas, onde é mobília por todo o lado – mesas, cadeiras, secretárias, mesinhas de cabeçeira, sofás, poltronas e cadeirões, mostruários de joalharia, entre tantos outros exemplos. O pessoal tira sempre os sapatos ao entrar, e a casa tem carpetes por todo o lado. Não é raro o pessoal dormir no chão, usando um edredão como colchão (quando têm uma cama, o colchão é tão duro como se fosse no chão) e as refeições são sempre, sempre, no chão, numa toalha pequenina, com o pessoal sentado ao redor. Não digo isto com criticismo, pois provavelmente apenas tem que ver com uma questão de hábito, mas prefiro o nosso estilo. Quando como com eles no chão estou sempre às voltas, não estou habituado a estar sentado à chinês. E prefiro os nossos colchões, bem como o nosso eventual exagero de mobília que dá, a meu ver, um ar mais aconchegante.
Mas a razão pela qual a casa do Ali era tão austera – uma cozinha, duas divisões vazias com uma carpete a cobrir a totalidade das mesmas e o seu quarto – era porque tinha alugado a parte de cima da casa. Essa parte esteve sempre alugada durante o Neurós, treze dias, a cerca de 50 dólares por dia.
Tendo deixado a minha mala no quarto, sentei-me lá fora com os Ali’s. Parecia que só eu é que estava a falar, e que o gajo, ou não se sentia bem (estava sempre a esfregar a cara daquela maneira de quem tem sono ou algo semelhante) ou não estava muito para conversas, apesar de ter sido ele a dizer “vamos sentar-nos ali”. Quando vi que ele não estava a fazer esforço nenhum na tradicional conversa de chacha que muitas vezes inicia outras, decidi ir dar uma volta. E assim fui, ainda que me quesitonando se teria sido rude, da minha parte, bazar meia hora depois de ter chegado. Fui ver a cidade, que curti bastante. Tem um castelo fixe no meio, e um bazar meio diferente dos restantes. Evitei o bazar, mas sem querer dava por mim em entradas para o mesmo, em ruas com cafés cheios de paz e charme. Andei assim meio perdido p’rai duas ou três horas, e depois voltei. Mais uma vez, o gajo não estava muito para conversas. Abriu-me a porta, eu sentei-me lá no quarto com ele e o outro Ali, mas o Ali anfitrião estava debaixo das cobertas. “Ok, no problem”, pensei, encaminhando-me para o “meu” quarto. Acabou por não ter nada a ver com que o antecipara, mas pelo que estava a perceber resignei-me a ficar ali no quarto e ver um ou dois filmes.
Estava a meio do “Religulous”, um documentário porreiro sobre religião, quando chegou o Peder, um dos dois noruegueses que estavam a ficar também em casa do Ali. Curti o gajo, bem como o Anders, que apareceu pouco depois. Estávamos à conversa quando apareceu o Ali a chamar-nos para irmos lá para fora. Lá fora, no pátio, jantámos à luz de uma fogueira improvisada. “Iá o gajo devia só ‘tar cansado e pronto”, pensei. Foi um serão agradável. Além de mim e dos noruegueses o Ali também estava a albergar um alemão que andava por aí de bicla. A dada altura o Ali foi com o alemão comprar umas cenas e eu fiquei com os noruegueses a falar, basicamente, de políticas e preconceitos. Tal como os caros tugas que lêem este blog, os amigos e família do Peder e do Anders estavam cheios de medo que eles visitassem o Médio Oriente. E o engraçado é que até o pessoal do Médio Oriente faz o mesmo, mais ou menos. Na Síria diziam que Numseionde é perigoso, no Curdistão disseram-me para ter cuidado com os iranianos que roubam e dizem o preço a estranjeiros cinco vezes mais do que o real. No Irão fazem o mesmo com o Paquistão, e o extremo oriental do seu próprio pais, para onde neste momento me dirijo.
No dia seguinte fui com o Ali mudar a antena parabólica da sua tia, mãe do outro Ali. O pessoal aqui usa o sistema de boleia paga consistentemente. Qualquer carro na rua é um potencial táxi, onde o pessoal entra, anda p’rai cinco minutos e depois sai, pagando 50 cêntimos de dólar ou menos. A caminho o Ali recebeu uma chamada relacionada com um potencial aluguer dos dois quartos do andar de baixo (já não eram necessários, sendo que os outros 3 couchsurfers tinham bazado e eu podia dormir no quarto dele). O Ali voltou para trás para lhes mostrar a casa e nós fomos para casa da tia. Para contar tudo num instante e evitar explicar o processo que levou a esta conclusão – o Ali, uma vez na casa, abriu o quarto do outro Ali, que estava fechado à chave. Enquanto ele mostrava os aposentos um dos ménes enfiou-se no quarto sem ele ver e adeus telemóvel do Pedro! Eu não tenho sorte nenhuma com telemóveis! Geralmente perco-os ou praticamente ponho-os na mão de assaltantes, mas desta feita foi algo mesmo fora do meu controlo. O Ali (anfitrião) andava todo aflito e tal, a assumir responsabilidade e não sei quê, mas eu disse-lhe para não se preocupar porque, primeiro, é só um telemóvel (por melhor que seja) e segundo, a responsabilidade é apenas de quem o roubou, mais ninguém.
Nesse dia não se passou nada de mais. Almoçamos lá em casa da tia dele, depois eu bati uma soneca enquanto ele montava a parabólica, e depois estive um bocado à seca enquanto ele apagava os canais onde se pudesse ver um ‘cadito de carne. Fui dar uma volta pela cidade nessa noite, comer um gelado de 50 cêntimos (os luxos a que um méne que tem de gerir o guito se dá) e depois jantámos umas sandes que o Ali preparou. Antes de dormir vi um filme qualquer.
No dia seguinte fui até Persepolis, a cerca de 60km. Era tipo a capital do império persa há 2500 anos atrás, se não estou em erro. Ainda não fui ler acerca disso, muito pelo meu acesso à net ser precário. Para lá apanhei três boleias e para cá outras três. Curti a cena. É um monte de ruínas como muitos outros, mas esses outros são fixes também por isso vale a pena. Toda a gente já teve a oportunidade de ver pessoas extremamentes belas (como os leitores deste blog que me conhecem, ahah), mas não é por isso que rejeitariam ver outra daqui a cinco minutos.
Quando cheguei andei mais uma vez perdido por Shiraz. Estava fixe, contente. A ouvir música (finalmente aprecio MGMT), a sorrir e caminhar sem destino, passando pelas milhentas lojas fechadas (último dia do Neurós, toda a gente vai para o campo, parques, ou algo relacionado com a natureza). Estava um senhor a fumar um cigarro, a quem pedi direcções. Pediu para me sentar com ele. Estivemos no paleio só cinco minutos, mas achei particularmente interessante quando ele disse “antes da revolução [de 1979] tínhamos whiskey, cerveja, mulheres... agora, nem whiskey, nem cerveja, nem mulheres...”.
Fui ainda ao castelo da cidade, razoavelmente interessante.
Quando voltei a casa o Ali ainda não estava, e pus-me a ver o Freakonomics, um documentário baseado num livro onde os autores tentam mostrar o lado escondido de diferentes fenómenos. O que achei mais interessante foi o facto de, na opinião consubstanciada dos autores, a diminuição de 50% do crime nos EUA nos anos noventa estar relacionada com o facto de, vinte anos antes, todos os estados americanos (exceptuando três, que tinham já passado a lei três anos antes) tornarem o aborto legal. Filhos indesejados – mau ambiente e más condições afectivas para as crianças – jovens marginais. Não me vou alongar mais, quem quiser realmente perceber que veja o documentário.
Jantámos, conversámos um bocado, e antes de dormir vi o Black Swan – fixe, mas esperava mais, as malditas expectativas.
O autocarro está parado na periferia de Kerman há mais de meia hora. Ó chefe quero ver se chego antes da meia noite!
Ontem foi um dia surreal!
Despedi-me lá do Ali e pus-me a caminho. Apanhei dois autocarros de dez cêntimos cada para a periferia da cidade. Caminhei, caminhei, caminhei, resistindo à tentação de apanhar um táxi mais p’rá frente. Mas a cada curva apresentava-se uma ganda recta, maior que a anterior. Eventualmente apanhei boleia de uma motorizada, com quem andei p’rai um quarto de hora. Lá, o pessoal dizia para eu ir falar com a polícia, quando mostrava o meu papelito. Era para ajudar, mas eu fico sempre meio renitente quando me falam na polícia. E no dia anterior tinha estado meia hora à espera de uma boleia que me iam arranjar para Persepolis – até que me escapuli e a arranjei eu sozinho. Assim, segui caminho. Caminhei um pedaçito e um táxi levou-me p’rai trezentos metros. Melhor que nada. E ainda me deu umas favas... ou melhor... a planta que dá as favas, mas crua – boa! E uns pistachos. Ali especado na estrada encontrei uma boleia em dez minutos. Segui mais de uma hora e o senhor deixou-me antes da estrada que virava para Kerman, para onde me dirijia. Apanhei boleia de outros rapazes simpáticos, com quem andei meia horita. Depois de outro rapaz que tinha dito que “não ia para lá” mas a quem eu pedi para me levar um bocadito de qualquer maneira. Ainda foi mais de 30km esse bocadito. Depois um camião, que me deixou mais à frente (parece óbvio, mas já apanhei boleia p’ra trás).
Pois eis que lá estava eu, naquela estrada no meio do deserto, e apareceu o Amir e o Amad. “Yes”, disseram, ao ler o meu papelito. Andámos um bocadito e parámos para comprar água. Depois seguimos e parámos passado meia hora para almoçarmos. Pagaram-me o almoço, uma pepsi e um hamburger. Os gajos quase não falavam uma palavra de inglês, mas demo-nos como irmãos. No carro iam passando pistachos e outras sementes e a dada altura disseram “numseiquê vodka”, com uma entoação que me pareceu de interrogação. Disse que sim, sem saber exactamente o que estavam a dizer, ou perguntar. Pois e não é que os ménes passado uma hora param, enchem um saco de plástico com um líquido transparente que retiraram de uma embalagem das que geralmente levam galosina, metem-no numa garrada de plástico, e siga vodka iraniano?!
E os gajos não brincavam. Bota penalti, e um deles a conduzir. Eu fui acompanhando, mas penalti não é o meu estilo, não com vodka, de qualquer maneira. De vez em quando espreitava o estilo do condutor, mas o gajo parecia saber o que estava a fazer, por isso não me preocupei. E correu tudo fixe.
Uma das palavras que eles sabiam dizer era “horse” [cavalo], uma palavra bué de específica para quem não sabe dizer mais nada. Mas a cena é que o Amid, o condutor, era criador de cavalos. Não sei bem como, passado um pedaço estávamos os três, mais os dois putos que lá trabalhavam, no seu quarto, adjacento ao estábulo onde tinha 24 cavalos, ao lume a beber mais uns copos. Mostraram-me os animais todos (pombos, cavalos, cães, galinhas e perus) e ainda tive oportunidade de andar um bocado a cavalo. Nunca tinha montado um animal na minha VIDA! Ah pois! Foi demais. Contado não é bem o mesmo, mas foi uma grande experiência, e o mais incrível é que a nossa comunicação seguia de todos os modos menos pela palavra.
O Amir ligou ao pai, que pelos vistos falava algum inglês, e disse-me que amanhã eu ia para Kerman, significando que lá ficava essa noite. Ok, no problem. A noite foi-se abatendo e foi chegando mais pessoal, o pai do Amir incluído. “Horse, sex!”, diz-me o Mohammed, puto de 19 anos que lá trabalhava, chamando-me com a sua mão. Pois que era? Os gajos iam tentar engravidar uma das éguas com o rebento do cavalo cujo nome não recordo, bi-campeão nacional iraniano! Ver aquilo, à noite no Irão, meio entrado, foi das experiências mais fascinantes da minha VIDA. Ok, basicamente aquilo era violar a égua, que não parecia estar muito virada para o sexo (não assim, de qualquer maneira), mas foi interessante, de todo o modo. A égua estava amarrada a um corrimão no meio, e com as patas traseiras também amarradas a uma corda que ia até ao seu pescoço, isto para limitar a potência dos coices. Os gajos andavam aos tombos, o cavalo e a égua, era relinchar por todo o lado, uma pila preta de meio metro lá a abanar e o pessoal como que a dar instruções aos animais. Infelizmente para o cavalo, não deu... foi quase, a um momento, mas acho que foi só a pontinha. O gajo entrou com a força toda, mas depois quando a égua já parecia estar convencida da sua fixeza, o méne estava meio cansado. Talvez aconteça hoje.
Depois o Amad foi comprar pizas e jantámos todos no quarto do Amir, quarto esse onde eu, o Amad e o Amir, passámos a noite. No chão, claro.
Hoje acordei com ideia de ir até Zahedan, a última cidade antes do Paquistão. Demos as despedidas, o Amir deu-me uma pequena estátua p’rai de 2kg de um cavalo para eu levar comigo, a prenda ideal para quem anda com uma mochila, e eu, sem nada para lhe dar, dei-lhe a minha lanterna da quechua que comprei em Portugal p’rai por 6 euros. O Amad tinha-me dado uma pulseira prateada, de ferro com inscrições em Persa, no dia anterior, e eu gostava de lhe ter dado uma pulseira das minhas, mas essas foram todas dadas por alguém, por isso não deu...
O Amir deixou-me na praça de táxis, com (o equivalente a) 10 dólares na mão. Eu tinha tentado explicar que ia à boleia, mas ele insistiu que eu fosse de táxi até Kerman. Então lá fui, primeiro cerca de cem quilómetros até dada cidade. O pessoal que vinha comigo no táxi deu 4 dólares ao taxista mas quando eu ia dar, ele disse que não, e apontou para outro táxi. Não percebi a cena muito bem, mas pensei que se calhar pagava a totalidade quando chegasse a Kerman. De onde estava até esta cidade foram mais uns 60km. Mais uma vez, o pessoal que veio comigo no táxi deu 4 dólares ao taxista, e quando eu perguntei quanto era, ele disse-me que eram 2 dólares! Ok, porreiro. E foi assim que, apesar de, no dia 27 deste mês ter comigo 20 dólares, hoje de manhã, no dia 4, tinha 26!
O taxista deixou-me no terminal e eu estava indeciso entre ir à boleia e usar o restante dinheiro num hostel, ou ir de autocarro. É que já eram duas da tarde e tinha 600km pela frente. Assim, decidi usar os 8 dólares restantes dos 10 que o Amir me tinha dado, num autocarro que partia às 5 da tarde, e usar o tempo de espera para encontrar net, para poder mandar mensagem a dizer que estava tudo porreiro comigo (nem sempre tenho net e às vezes passo três dias sem a mesma) e procurar sofá em Zahedan.
A ver vamos... liguei a um couchsurfer, que me disse para lhe ligar passado duas horas. Quando pararmos para o condutor descansar peço a alguém. Que sede!
18h29-2ª-4-4-11
Algures entre Kerman e Zahedan
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